Capítulo 3. Grupos sociais
p. 91-144
Texte intégral
1Tal como em muitas outras comunidades da Europa Meridional, a terra constitui a base da desigualdade social em Fontelas. Enquanto o sistema de hierarquia dentro da aldeia envolve uma multiplicidade de factores económicos e sociais que conferem posições elevadas a algumas casas e posições inferiores a outras, a posse da terra continua a ser, aos olhos dos aldeãos, o critério fundamental desta diferenciação. Todos os grupos domésticos se encontram directamente ligados à produção agrícola ou pastoril, de uma forma mais ou menos intensa — trata-se, em todos os sentidos, de uma autêntica comunidade rural. Apenas 8 adultos dos 187 habitantes auferem rendimentos habituais a partir de ocupações não agrícolas: são eles os dois taberneiros, as duas professoras primárias, o padre, um pedreiro, o guardafiscal e o guarda-florestal. Embora desempenhando funções especializadas, todos estes indivíduos se dedicam também, por pouco que seja, a actividades agrícolas. Apesar desta total dependência da lavoura, nem a posse da terra nem o seu usufruto estão equitativamente distribuídos dentro da comunidade. Estas «diferenças materiais básicas de riqueza» (Davis 1977:81-9) constituem o tema principal deste capítulo.
2Se bem que as desigualdades no tamanho e na estrutura das explorações agrícolas formem o núcleo de um campo muito mais vasto de grupos sociais estratificados, não pretendo afirmar que tais desigualdades constituem forças totalmente determinantes. Tal como Pierre Bourdieu fez notar no caso das aldeias da região de Béarn no Sudoeste da França: «Uma família ‘importante’ é identificada não apenas pela extensão das suas propriedades mas também por todo um conjunto de sinais, entre os quais o aspecto exterior da sua habitação...» (1976:123). Este conjunto de sinais caracteriza o padrão geral da hierarquia social do campesinato em Fontelas, e inclui tanto factores económicos e materiais — a terra, a dimensão da casa, os rendimentos, o número de cabeças de gado — como diversos factores linguísticos e sociais — formas de tratamento, títulos, educação e prestígio social. Porém, a forma essencial que reveste esta hierarquia baseia-se fundamentalmente nas desigualdades na posse da terra.
3O meu objectivo principal é mostrar como as categorias de diferenciação social expressas pelos aldeãos coincidem com a minha própria análise das «diferenças materiais básicas de riqueza» relativamente à distribuição da terra. Um problema fundamental que surge a partir destes dados é a definição do chamado «campesinato médio»; os elementos apresentados neste capítulo sugerem que tal termo, em vez de esclarecer, só torna mais obscura a estrutura dos laços entre os diversos grupos sociais no que respeita à posse da terra e às relações de produção. Em Fontelas, um pequeno núcleo de casas abastadas detém e controla enormes quantidades de terra, ao passo que um grupo mais numeroso de pequenos agricultores continua a depender de explorações diminutas, do trabalho à jorna e do arrendamento de terras daquele núcleo. No caso da povoação de Becedas, na Espanha Central, Brandes defende que «cada um desfruta de uma posição social média como proprietário independente, e a interdependência efectiva entre aldeãos, com ou sem terra, foi totalmente eliminada» (Brandes 1975:75-6; o sublinhado é meu). Apesar dos recentes surtos migratórios em ambas as regiões, parece dar-se um processo inteiramente diferente em Fontelas: esta interdependência não foi eliminada, e a maioria dos habitantes não se situa a si própria num nível económico médio. Só os proprietários abastados sublinham que «aqui todos somos iguais» (tentando assim subestimar as suas posições superiores), enquanto a maior parte dos vizinhos salienta com frequência as desigualdades internas e a sua posição inferior1.
a) A terra e os grupos sociais
4O Quadro 3, a seguir, apresenta-nos uma análise detalhada da dimensão e estrutura de todas as explorações agrícolas de Fontelas — encontramos no Apêndice I uma descrição do método utilizado para a obtenção destes valores. Impõe-se neste momento o exame atento deste quadro, uma vez que aponta os aspectos básicos da desigualdade na comunidade, aos quais nos vamos referir ao longo deste trabalho.
5A primeira coluna do Quadro 3 ordena todas as casas da aldeia (à excepção da do motorista da camioneta de carreira — Casa 17) de acordo com a área total de cada exploração cultivada. Este total é depois subdividido nos valores referentes a terra possuída, terra arroteada nos baldios, terra arrendada e terra dada de arrendamento. Por exemplo, no meio do quadro, verificamos que Ricardo cultiva uma exploração com o total de 9,58 hectares, dos quais 6,75 são possuídos pelo próprio e pela mulher; incluídos nestes 6,75 estão os 2,67 hectares que Ricardo abriu nos baldios. Os restantes 2,83 hectares são arrendados dè outros, enquanto nenhuma terra deste casal é dada de arrendamento. Portanto, para a maioria dos gupos domésticos, a área total de terra cultivada pode ser obtida adicionando os totais possuídos e arrendados. Para as famílias que dão terras de arrendamento, o total da propriedade cultivada pode ser obtido subtraindo a quantidade dada de arrendamento da quantidade de terra possuída. A partir do modo como o quadro se encontra organizado, obtemos uma informação global tanto sobre a posse de terra como sobre o seu uso.
6Os quatro principais grupos sociais da povoação podem ser ordenados quer de acordo com a área total das propriedades que exploram, quer em relação à área total das terras que possuem. Por exemplo, a maioria dos lavradores arrendam terras de outros, além de terem arroteado grandes parcelas nos baldios — a sua posição é pois definida pela área total das terras que cultivam, embora possuam quantidades substancialmente mais pequenas. Por outro lado, a posição das 11 casas mais abastadas é definida pela área possuída, uma vez que dão de arrendamento grandes extensões de terra a outros e arrotearam muito pouco terreno baldio.
7Neste quadro estão também incluídas informações referentes ao tamanho de cada fogo (membros residentes), à posse de uma junta de vacas e à ocupação do chefe de família. Quando esta não se especifica, entende-se que ela é a agricultura, embora posteriormente se acrescentem mais alguns dados acerca dos tipos específicos de lavoura e trabalho assalariado característicos destes pequenos camponeses. Quando se referem duas ocupações, como é o caso de «lavrador/pastor», isto indica que existe uma dupla actividade na casa, com predominância da primeira.
8A quantidade de terra possuída pelos aldeãos residentes é de 513,92 hectares2. Deste total (que inclui os 31,82 hectares de baldios arroteados) 31,34 hectares são dados de arrendamento a outros moradores de Fontelas. Existem três outros tipos de terra arrendada que explicam a discrepância (9 hectares) entre o total de terra arrendada de outros e o total de terra dada de arrendamento. São eles: a) 5,42 hectares dados de arrendamento por sete habitantes emigrados em França; b) 2,66 hectares de donos não mencionados, mas que são provavelmente residentes da povoação, e c) 0,92 hectares (dois pequenos poulos) dados de arrendamento pela Igreja. Assim, o total de terra cultivada em Fontelas inclui o total de terra possuída pelos moradores, mais 9 hectares adicionais, ou seja, um total de 522,92 hectares; este número também inclui todas as parcelas possuídas mas temporariamente incultas. Deste modo, o total de terra arrendada representa apenas 7,8% do total de terra possuída.
9A este valor devemos acrescentar os 93 hectares de baldios não susceptíveis de serem lavrados, que são actualmente usados para pastagem e apanha de estrume e lenha, o que significa que os habitantes utilizam, no total, 615,92 hectares de terra arável e de pastoreio. A quantidade de terra arroteada nos baldios representa apenas 6,2% do total de terra possuída. No conjunto, as quantidades de terra arrendada e arroteada (72,16 hectares) representam 14% do total de terra possuída. Esta distribuição da propriedade fundiária revela que Fontelas é predominantemente uma aldeia de camponeses, donos da sua própria terra.
10Outro tipo de terra aproveitada para arrendamento é a possuída por aldeãos emigrados em França, Alemanha e Espanha, ou residentes noutras zonas do País. Não foi feita qualquer investigação sistemática sobre as propriedades destes emigrantes, mas alguns vizinhos referiram-se a parcelas possuídas pelos irmãos emigrados e que lhes foram «entregues» temporariamente. Por exemplo, ao pequeno agricultor Matias e à sua mulher, Bernarda, foram-lhe entregues 7,75 hectares (dos quais cultivam 1,25) que pertencem aos quatro irmãos de Bernarda residentes em Lisboa, Brasil, Espanha e França3. Estes casos, em que os emigrantes emprestam ou confiam terras a outrem, são as únicas excepções ao sistema fechado de posse da terra neste lugar; ninguém arrenda terra nas aldeias vizinhas e também ninguém vem arrendar a Fontelas. Apenas um indivíduo (o pequeno agricultor Marcos) comprou e cultiva terra numa povoação vizinha. Os totais de terra cultivada em Fontelas são provavelmente uma estimativa por defeito do total de terra cultivável. São de considerar também as parcelas arroteadas nos baldios pelos não residentes, bem como as leiras que alguns habitantes arrotearam mas que posteriormente abandonaram devido às ínfimas quantidades de centeio que produziam; a maior parte desta terra podia, teoricamente, ser de novo cultivada. Um cálculo aproximado dar-nos-ia um valor total para as terras cultivadas e cultiváveis da aldeia (tanto particulares, como baldios) de cerca de 700 hectares4.
11As casas do Quadro 3 foram divididas em quatro grupos sociais principais, de acordo com a extensão das suas explorações agrícolas. Que outros critérios de diferenciação são usados pelos moradores para definir estes grupos, e como é que estas definições se relacionam com as diversas áreas das suas propriedades?
1. OS PEQUENOS AGRICULTORES
12Designei o primeiro grupo por «pequenos agricultores» (smallholders); presentemente, estas casas exploram propriedades com áreas até 6 hectares. Originariamente, a maioria destas pessoas eram jornaleiros, e como tal são referidos nos documentos administrativos e nos Registos Paroquiais desde os meados do século xix até aos anos 60. Hoje, a palavra «jornaleiro» é raramente utilizada em Fontelas, não só porque apenas existe um pequeno número de aldeãos (cinco) que trabalha à jorna regularmente, mas também porque aquele termo tem conotações de dependência e pobreza. No entanto, os pequenos agricultores usam o termo para designar as ocupações dos seus parentes nas respectivas genealogias. Outra palavra, hoje caída em desuso mas presente nos documentos históricos, é cabaneiro; este termo refere um pequeno agricultor que não trabalhava à jorna mas que também não possuía terra suficiente para manter uma junta de vacas. A palavra sugere tanto «cabana» como o verbo «cavar»; o último significado é o mais frequente em Fontelas. Os habitantes utilizam o termo «cabaneiro» sem o associarem a habitações ou cabanas: relacionam-no com a forma de trabalho característica desses indivíduos — cavar e não lavrar. As únicas alfaias dos cabaneiros eram as enxadas e as picaretas, sendo eles contratados para o trabalho manual e pagos em dinheiro ou géneros. Se bem que o termo jornaleiro seja ainda hoje utilizado na aldeia, a palavra cabaneiro nunca é empregue excepto em referências ao passado.
13Uma variedade de palavras é utilizada por outros vizinhos, com propriedades maiores, para se referirem a estes agricultores: uma das razões pela qual os designo de «pequenos agricultores» é, precisamente, porque não existe hoje qualquer termo de uso corrente para os denominar. Os pequenos agricultores são conhecidos por cultivarem explorações muito exíguas, ou simplesmente «umas pequenas leiras». Os donos de propriedades com menos de 3 hectares de área são particularmente lastimados, e até por vezes ridicularizados pelos outros; é frequente o comentário: «ele/ela tem só uma pequena cortinha e algumas leiras-nada». Outro dito referido amiúde pelos aldeãos em conversas sobre a propriedade é o seguinte: Muito tens, muito vales/Nada tens, nada vales. A divisão no meio do grupo dos pequenos agricultores separa dois subgrupos: aqueles possuindo entre 3 e 6 hectares, e os mais pobres com menos de 3. Esta divisão é um pouco arbitrária; note-se contudo (Quadro 3) que são somente os pequenos agricultores com mais de 3 hectares que arrendam sistematicamente terra de outros e arroteiam parcelas nos baldios. No entanto, seis das casas deste grupo têm alguma terra dada de arrendamento a outros.
14É de realçar que os pequenos agricultores com menos de 3 hectares raramente têm terras arrendadas de outros vizinhos — só duas destas famílias o fazem (Vilfredo e Engrácia). Porém, sete pequenos agricultores com propriedades um pouco mais extensas arrendam maiores porções de terra. Por exemplo, Eduardo arrenda 3,41 hectares para alargar a sua própria exploração de 2,46 hectares. Enquanto as 16 casas mais pobres arrendam apenas 0,54 hectares de outros, as restantes 15 casas de pequenos agricultores arrendam uma área muito maior (8,22 hectares). No conjunto, os 31 pequenos agricultores arrendam 21,7% da área total das terras arrendadas; além disso, o primeiro grupo dos 15 pequenos agricultores arrotearam parcelas de baldio muito maiores do que as das 16 famílias mais pobres: ao passo que estas somente abriram 1,25 hectares, os primeiros arrotearam 11,66. Os valores indicam que a pequena margem de alguns hectares a mais possuídos por estas 15 casas, em relação às 16 mais pobres, se encontra associada ao arrendamento, arroteamento e cultivo de parcelas de terra substancialmente maiores.
15Em termos de ocupação, a maior parte dos pequenos agricultores, bem como os seus pais e avós, eram originariamente jornaleiros ou criados em casas abastadas. As actuais ocupações dos pequenos agricultores podem ser resumidas do seguinte modo: apenas cinco destes aldeãos trabalham à jorna («à jeira»); estas jornas eram de 200 escudos em 1976, tendo subido para 500 escudos em 1978. Mesmo hoje, os pequenos agricultores mais velhos, ao lembrarem a sua infância, referem-se às jeiras de «só 7 escudos» ou unicamente «um bocado de pão ou vinho». Dois membros deste grupo (o pedreiro e o guarda-florestal) têm rendimentos fixos, respectivamente provenientes da construção de casas e dos Serviços Florestais da vila, mas cultivam também pequenas cortinhas e uma ou duas leiras de cereal e batata; ambos são de fora da povoação, e compraram a sua terra em Fontelas há muitos anos. O antigo sapateiro, Simão, considerado paupérrimo pelos padrões da comunidade, consegue cultivar uma pequena cortinha apesar da sua avançada idade e fraca saúde5. No grupo dos pequenos agricultores, estão incluídos os dois taberneiros, que cultivam algumas leiras como complemento dos rendimentos obtidos nos seus comércios. Por último, o ferreiro da aldeia trabalha apenas durante os meses de Inverno, e a tempo parcial, e dois habitantes (Silvério e Eduardo) são pastores de rebanhos de ovelhas pertencentes às duas casas das proprietárias abastadas (D. Elvira e D. Sofia); como as famílias daqueles dois pastores têm pouca terra própria, os rebanhos que eles apascentam são levados para os lameiros das duas casas ricas. Os restantes pequenos agricultores tiram o seu sustento de minúsculas propriedades com a ajuda de outros vizinhos.
16Nenhum dos pequenos agricultores possui uma junta de vacas; nalguns casos, a vaca ou mula de um é jungida com a vaca ou mula de outro. Consequentemente, a maioria destas casas depende doutros aldeãos que possuam vacas ou tractores para lavrarem os seus parcos campos de cereal e outras culturas; estes serviços são descritos (pelos lavradores) como «favores aos pobres», mas são normalmente retribuídos pelos pequenos agricultores com mão-de-obra ou dinheiro. As explorações mais pequenas são tão minúsculas que é praticamente impossível a estas pessoas fazerem trocas de trabalho ou bens com as famílias mais abastadas; muitos dos pequenos agricultores trabalham, portanto, não por um salário mas por uma refeição ou pequenos donativos em alimentos. A situação económica destes 15 fogos é geralmente precária, e se não fossem as recentes melhorias em subsídios estatais e o envio das remessas dos emigrantes após 1964, a maioria deles encontrar-se-ia abaixo do nível de indigência das 16 casas mais pobres. Destas 15 famílias, oito têm irmãos ou filhos emigrados em França, e seis em Espanha ou no Brasil. Por outro lado, só quatro das 16 casas mais pobres têm irmãos ou filhos emigrados em França, e outras quatro têm parentes em Espanha ou no Brasil. Em doze dos 31 fogos de pequenos agricultores vivem indivíduos sozinhos (destes, duas são viúvas e um é viúvo). A mulher de um vizinho não reside na aldeia, e os restantes oito são todos idosos e solteiros (sete homens e uma mulher).
17No conjunto, os 31 pequenos agricultores possuem somente 79,29 hectares, ou seja, 15,4% do total da terra possuída. Os 16 moradores mais pobres possuem apenas 23,15 hectares, ou seja, 4,5%. Desta forma, a área média de exploração agrícola neste grupo é de 2,5 hectares. Os valores são reveladores, uma vez que do total de 57 grupos domésticos, 31 pertencem a pequenos agricultores; assim, mais de metade das casas da povoação possui apenas 1/6 das terras.
2. OS LAVRADORES
18Os membros deste grupo distinguem-se dos pequenos agricultores, não só pela dimensão das suas explorações (entre 6 e 20 hectares) mas também pela posse de uma junta de vacas. É importante notar que o termo lavrador é utilizado hoje pelos aldeãos para se referirem a outros vizinhos: é um termo local de uso corrente e não uma invenção do etnógrafo. Um morador que não possua dois animais de tiro raramente será chamado de «lavrador»; o mesmo acontece com os pequenos agricultores que têm um arado e que juntam um animal seu com o de outra casa. A palavra, assim, sublinha o significado do verbo lavrar. Ser «lavrador» implica, no sentido restrito, a posse de uma junta de vacas e não apenas a de um arado ou de um animal de tracção. A palavra é de origem muito antiga, e termos idênticos foram referidos em muitas outras partes da Europa Meridional. Ao debruçar-se sobre o campesinato francês, Georges Duby (1978:187) salientou: «A distinção social básica, já evidente na França rural do século x, acabou por separar o campesinato em dois grupos distintos: os que tinham de trabalhar a terra com as próprias mãos e, muito acima destes, os laboratores, que eram suficientemente ricos para possuírem uma junta de vacas»6.
19O Quadro 3 mostra-nos três casas que não possuem juntas de vacas e que foram incluídas neste grupo devido à dimensão das propriedades e à sua situação socioeconómica. O genro de Cristina é guarda-fiscal numa aldeia próxima onde passa parte da semana; para a sua lavra, esta família tem de recorrer ao aluguer do tractor de um dos proprietários mais abastados da povoação. Do mesmo modo, os campos de Rosa são lavrados pelo irmão, residente num lugar vizinho, e que vem a Fontelas com o seu tractor: o marido de Rosa é emigrante em França, e esta vive em Fontelas com os filhos pequenos. Finalmente, o velho Benigno mora sozinho e os seus dois filhos são emigrantes em França e Alemanha: Juliana, nora de Benigno, pede ao seu filho mais velho para lavrar as poucas leiras do sogro. Todas estas três casas possuíam há alguns anos juntas de vacas, e as suas propriedades eram consideradas «médias» pelos outros aldeãos. Estas três famílias, embora hoje hão possuam juntas de animais e, por conseguinte, não sejam tecnicamente lavradores, são manifestamente reconhecidas como membros deste grupo pelos outros vizinhos.
20Comparando os lavradores com os pequenos agricultores, deparamos imediatamente com um certo número de fortes contrastes. Primeiro, a dimensão de exploração necessária para manter uma junta de vacas tem de ser de 6 ou mais hectares: uma casa pode não possuir esta extensão de terra, mas deverá obrigatoriamente ter acesso a um total de 6 hectares de modo a sustentar dois animais de tiro. Os 6 hectares podem, portanto, ser uma combinação de terra possuída, terra arrendada de outros e terra arroteada nos baldios, mas deverão incluir pelos menos 1,5 hectares de lameiro: esta é a área mínima indispensável para alimentar duas vacas ou bois. Três dos fogos deste grupo (os de Claudina, Jacinto e Elias) possuem muito menos do que 6 hectares, mas arrendam outras terras — o que faz com que o total das suas propriedades ultrapasse os 6 hectares referidos. Encontramos uma excepção a este esquema: Fortunato é um antigo criado, actualmente meeiro da grande exploração de 40,83 hectares de D. Sofia. Embora Fortunato conduza o tractor de D. Sofia, os aldeãos sublinham frequentemente que ele não possui nem o tractor nem a terra que cultiva a meias; mesmo assim, chamam-lhe lavrador, dado que na povoação não existe uma palavra específica para meeiro ou seareiro7. Ao medir a área das terras que Fortunato cultiva para D. Sofia, obtive um valor aproximado de 20,84 hectares, calculando assim que a terra cultivada para a sua própria casa seja de 10,42 hectares (Nota a do Quadro 3). Parte dos restantes 20 hectares pertencentes a D. Sofia são dados de arrendamento, ficando outra parte por cultivar. O caso de Fortunato indica, além disso, que o termo lavrador se refere menos à posse da terra do que à actividade da lavra, quer se faça em terra própria ou na de outrem.
21Em segundo lugar, os lavradores arrendam muito mais terra do que os pequenos agricultores. Os valores são surpreendentes: estas 14 casas arrendam no conjunto 30,50 hectares, ou seja, 75,6% dos totais de terra arrendada. Estas famílias arrotearam também enormes quantidades de baldios: 14,42 hectares, ou seja, 45,3% do total de arroteamentos efectuados na aldeia. Qualquer destes 14 fogos aumentou a sua propriedade efectuando arroteamentos ou arrendamentos, ou ainda as duas coisas, no caso de 9 das 14 famílias. Contudo, os lavradores, por norma, não dão de arrendamento quaisquer leiras a outros — o seu esquema de utilização de terra é tão intensivo que eles cultivam virtualmente todos os centímetros de terra que conseguem adquirir.
22Em terceiro lugar, quatro destas casas de lavradores aliam a pastorícia à actividade agrícola. Ao contrário do que acontece com Silvério e Eduardo (pastores e pequenos agricultores), os rebanhos pertencentes a estas quatro famílias constituem apenas um rendimento suplementar, e não o principal meio de subsistência.
23Em quarto lugar, a dimensão dos 14 fogos é superior à dos pequenos agricultores. Algumas destas casas têm 6, 7 ou 8 membros; o tamanho médio do fogo neste grupo é de 4,6 pessoas, valor que se encontra bastante acima da média de 2,6 entre os 15 pequenos agricultores e de 1,9 entre os 16 pequenos agricultores mais pobres.
24Assim, a posse de uma junta de vacas coloca estes grupos domésticos num plano inteiramente diferente no âmbito do sistema produtivo da aldeia. Estas 14 casas possuem 115,21 hectares de terra, ou seja, 22,4% da área total de terra possuída. A área média da exploração agrícola de um lavrador ronda os 8 hectares. Representando 1/4 das Casas da povoação, este grupo possui aproximadamente 1/4 das terras. Contudo, cultivam uma quantidade de terra um pouco superior, se considerarmos os 30,50 hectares que arrendam de outros vizinhos. De facto, a terra que arrendam e a terra que arrotearam, representa, em conjunto, 31% dos 145,58 hectares que cultivam. Por outras palavras, este grupo encontra-se muito dependente de terras arrendadas e arroteadas. No entanto, em comparação com os pequenos agricultores, e graças ao uso de animais de tiro, os lavradores podem cultivar muito mais terra, obterem maiores colheitas, transportarem mais lenha ou estrume e venderem mais gado.
25A situação económica deste grupo é substancialmente melhor do que a dos pequenos agricultores, o que se deve não só às suas juntas de vacas, à maior dimensão dos seus grupos domésticos e, portanto, superiores recursos em mão-de-obra, mas também às remessas dos emigrantes. Onze das 14 famílias têm irmãos ou filhos actualmente emigrados em França e membros de três destas 11 casas compraram pequenas parcelas de terra com as poupanças conseguidas no estrangeiro. Todavia, seria exagerado designar este grupo de campesinato médio ideal; de facto, como a coluna «terra arrendada» nos mostra, eles estão mais dependentes do arrendamento do que todos os pequenos agricultores. Além disso, muitos dos lavradores possuem nas suas genealogias uma enorme proporção de parentes que foram jornaleiros no passado, tendo alguns, durante períodos difíceis, servido como criados ou pastores em casas mais abastadas. Por conseguinte, muitos aldeãos deste grupo só se tomaram lavradores recentemente, através de uma combinação de factores que compreendem o arrendamento, a compra de terras e o arroteamento de baldios.
26A principal característica que define este grupo — uma junta de vacas — dá-lhes uma certa «auto-suficiência»: hoje em dia, neste grupo, ninguém trabalha à jorna. Mas a junta de vacas não lhes garante riqueza, nem um estatuto particularmente elevado no seio da hierarquia social. Se lhe pedíssemos para se situarem num dos grupos, ricos ou pobres, a maioria escolheria o último.
3. OS LAVRADORES ABASTADOS
27O terceiro grupo social é o dos lavradores abastados: estes possuem individualmente entre 20 a 30 hectares de terra. Existe um termo específico para referir estes camponeses — «lavradores remediados» —, o que significa na verdade abastados ou ricos; de novo, o Quadro 3 mostra-nos que, ao contrário das 14 casas de lavradores, estas 7 (com uma única excepção) não arrendam terra de outros mas, pelo contrário, dão-na de arrendamento. Os valores são mínimos (2,04 hectares dados de arrendamento), mas acrescentados às minúsculas quantidades de terra que estes fogos arrendam de outros e às pequenas parcelas de terra arroteadas nos baldios (4,49 hectares), começa a surgir uma imagem da «casa camponesa auto-suficiente». Mais que as dos lavradores, estas famílias aproximam-se desta auto-suficiência: cultivam a sua própria terra.
28Quase toda a terra possuída por seis destas sete casas foi herdada: por exemplo, Daniel comprou a maior parte das leiras da sua exploração, e Delfim comprou uma parte substancial de terra (8,3 hectares) antes de casar. Enquanto Miguel arroteou 4,16 hectares de baldio, tanto este como Delfim herdaram muito mais terra do que compraram ou arrotearam. Muitas destas famílias estão relacionadas por laços de parentesco com as quatro casas mais ricas da aldeia, e normalmente cooperam com mais frequência dentro do seu próprio grupo ou com as referidas casas abastadas do que com o resto da povoação. Um caso extremo que ilustra este padrão é o de Gabriel, um fanático religioso que divide o tempo entre as suas leiras, a igreja e as conversas com o seu vizinho, o padre. Gabriel é regularmente criticado por algumas vezes ir lavrar para os sulcos dos campos vizinhos, prática indicadora da excessiva paixão que este grupo tem pela propriedade privada e das constantes tentativas para aumentar as suas já bem grandes colheitas e explorações.
29As suas ocupações, e a preferência pela agricultura mecanizada, também distinguem estas famílias das dos lavradores. Temos, por exemplo, o caso de dois camponeses abastados (Julião e Bernardo) que exercem as funções de cabos de polícia, título este que dá mais nas vistas pela palavra do que pelos factos; não obstante, confere-lhes alguma autoridade administrativa delegada pela Junta de Freguesia de Mosteiro, pela qual são nomeados. Outro lavrador abastado, Delfim, foi o primeiro habitante de Fontelas a comprar um tractor (1965). Assim, a casa de Delfim não usa normalmente uma junta de vacas, embora duas das suas sete vacas sejam por vezes jungidas (para além do tractor) por uma das suas filhas, durante os períodos mais activos da lavra. Consequentemente, a maior parte destes grupos domésticos produz maiores colheitas do que os lavradores ou pequenos agricultores, e tendem a empregar tractores, mais do que animais de tiro, para as lavras e transportes. Por outro lado, em 1978, Julião requereu ao Grémio da Lavoura da vila a concessão de um empréstimo para a compra de um tractor. Enquanto as quatro casas de proprietários podem ser designadas como family capitalists (Franklin 1969:74)8, poderíamos considerar estes lavradores abastados simplesmente como «camponeses ricos» ou aldeãos com aspirações capitalistas.
30A situação económica geral deste grupo é apreciavelmente superior à dos lavradores; somente dois indivíduos pertencentes a este grupo (Bernardo e Julião) emigraram temporariamente para França nos anos 60, e ambos voltaram após curtos períodos. Nenhum dos filhos da actual geração adulta destas casas são emigrantes, e dois dos quatro filhos de Daniel tomaram-se guardas-fiscais em outras aldeias do concelho, em vez de optarem por emigrar. As grandes quantidades de terra possuída e herdada por estas famílias têm superfícies bem superiores ao mínimo de 6 hectares exigidos para manter uma junta de vacas; eles estão, por isso, menos dependentes dos arrendamentos de terra, do arroteamento de baldios ou das remessas dos emigrantes. Ao passo que os lavradores têm como norma consolidar as suas actuais propriedades graças a uma variedade de meios, estas casas nunca tiveram necessidade de o fazer.
31Uma vista de olhos às colunas do Quadro 3 que se referem a baldios e arrendamentos revela-nos uma modificação abrupta nos padrões da utilização da terra entre os 14 lavradores e estes 7 fogos. Tal como acontece com os proprietários, estas casas também têm cortinhas maiores e, consequentemente, turnos mais longos nas rotações de irrigação. As genealogias das pessoas deste grupo contêm muito mais parentes que foram lavradores ou proprietários do que simples jornaleiros, e no caso de Vitória (mulher de Daniel) um enorme número de familiares teve ocupações militares. Estes fogos não possuem habitualmente rebanhos de ovelhas, uma vez que, sob o seu prisma, na ocupação de pastor (tal como na de jornaleiro) subsistem aspectos ligados à pobreza e dependência. Nunca tendo sido criados, os lavradores abastados têm normalmente criados ao seu serviço.
32Bem cientes das suas enormes riquezas em terras, comparadas com as dos pequenos agricultores e lavradores, os membros deste grupo dirigem por vezes um sorriso de superioridade às áreas de terra, aos seus olhos ridiculamente pequenas, possuídas pelos agricultores mais pobres. Os proprietários ricos, pelo contrário, tentam sempre, nos seus comentários sobre os pobres, dar uma nota de piedade cristã. Os lavradores abastados não se consideram «iguais» aos pobres, antes demonstram uma atitude paternalista para com eles. No conjunto, estas sete casas possuem 149,01 hectares, ou seja, 29% do total da terra possuída na aldeia; neste grupo, a área média de exploração é de 25 hectares, aproximadamente. Nenhum dos seus membros pensaria sequer em trabalhar como assalariado, e em termos de escolha de grupo social, estes camponeses não se definiriam como pobres, mas sim como ricos.
4. OS PROPRIETÁRIOS
33Os proprietários constituem o quarto grupo social, e possuem explorações com mais de 30 hectares. A palavra proprietário9 é entendida, no seu significado local em Fontelas, como dono de grandes extensões de terra, e não deverá ser confundida com o significado mais genérico que designa o possuidor de qualquer propriedade, de área ou valor não especificado. Estas quatro casas constituem a élite dos notáveis da comunidade, firmemente estabelecidas no topo da hierarquia social, devido à dimensão das suas explorações e ao facto de preservarem a posição histórica das suas famílias no que respeita à influência administrativa, poder político e alto nível moral.
34Tal como os lavradores abastados, os proprietários herdaram praticamente toda a terra que possuem. As casas de Cláudio e doP.e Gregório, juntamente com as de Bernardo e do seu pai, Bento, cultivavam a mesma propriedade antes da partilha; muitos moradores referem-se a esta antiga habitação (a chamada Casa do Conselho) como tendo possuído «metade das terras da aldeia». Um determinado número de pequenos agricultores e lavradores, quando jovens, trabalhou para estas famílias como criados e pastores. A Casa do Conselho (hoje pertencente ao padre) possui a única televisão (que funciona a baterias), bem como o único carro da povoação. Tratase de uma construção imponente (Mapa 3-Casa 29) que, com o prédio adjacente (Casa 28), constitui a maior unidade habitacional de toda a comunidade.
35A exploração de D. Elvira (50,83 hectares) nunca foi dividida em partilha, por esta ser filha única; tanto D. Elvira como D. Sofia compraram tractores em 1970 e estes são conduzidos, respectivamente, por Valentim e pelo meeiro de D. Sofia, Fortunato. Esta última possui a única debulhadora da povoação, que também é manejada por Fortunato e alugada a outros habitantes; ambas as casas (bem como a de Delfim) possuem ceifeiras para cortar feno e emprestam ou arrendam regularmente esta maquinaria a outros vizinhos. A maior parte destes grupos domésticos ou têm uma junta de vacas ou máquinas agrícolas (tractores), o que evita o uso da tracção animal. (As terras do padre são lavradas pelo seu irmão Valentim, condutor do segundo tractor.) Por conseguinte, duas destas famílias, juntamente com a do lavrador abastado Delfim, possuem toda a maquinaria agrícola existente na aldeia.
36O Quadro 3 mostra claramente que estas quatro casas não só não arrendam terra de outros como nunca arrotearam quaisquer parcelas de baldio. Pelo contrário, dão de arrendamento a outros as maiores extensões de terra da comunidade: 23,39 hectares, ou seja, mais de metade de toda a terra arrendada. D. Elvira dá de arrendamento um lameiro com a área de 2,25 hectares ao lavrador Ricardo, pelo qual recebe o maior pagamento em renda de toda a povoação — 120 alqueires de centeio por ano (equivalente a 6400 escudos). Apenas dois indivíduos deste grupo emigraram para França, e um deles (Valentim) pelo curto período de dois anos, quando a emigração aumentou em meados dos anos 60; outros frequentaram estabelecimentos escolares ou optaram por carreiras militares ou eclesiásticas. Por exemplo, D. Sofia é a actual professora primária de Fontelas e o seu irmão, Dr. Custódio, é director de um colégio em Lisboa. A irmã do padre, D. Prudência, é professora num lugar vizinho, e a outra irmã, D. Constância, casou com um sargento da Guarda Fiscal. O guarda-fiscal reformado, Cláudio, completa o conjunto: casou na aldeia e dentro do grupo dos proprietários. A maioria dos indivíduos deste grupo encontra-se separada do resto da comunidade, não só em termos de ocupação profissional mas também linguisticamente, através dos títulos deferenciais de Doutor, Dona e Padre10.
37As casas dos proprietários também se distinguem das outras fisicamente: essas habitações são muito maiores do que as dos lavradores ou pequenos agricultores, e as cozinhas não abrem directamente para a rua, mas sim para grandes pátios interiores. Os aposentos e os corredores destas casas são também mais amplos e mais numerosos do que os das outras. Durante a Visita Pascal às casas da povoação (algumas deliberadamente fecham as suas portas) P.e Gregório e os seus jovens acólitos param invariavelmente durante muito mais tempo nas amplas salas dos proprietários para uma breve merenda. Este grupo é também considerado mais religioso, e a sua presença na missa e a participação em outras actividades da Igreja é particularmente assídua; muitos dos aldeãos, contudo, explicam esta participação frisando que a maioria dos proprietários são parentes do padre. Além disso, as mulheres deste grupo não realizam qualquer tarefa manual, e quando o fazem, esta limita-se a trabalhos nas cortinhas que se encontram junto da casa. As mulheres proprietárias, sobretudo quando casadas, nunca fazem qualquer das fainas mais pesadas executadas com tanta frequência pelas mulheres dos lavradores ou pequenos agricultores.
38As genealogias dos proprietários revelam uma predominância de alianças matrimoniais com outros membros deste grupo e com alguns lavradores, mas raramente com jornaleiros ou indivíduos com ocupações de menor prestígio. A história das parentelas e linhas familiares destas pessoas também demonstra padrões de grupos domésticos do tipo famille souche (Laslett 1972:16-23) bem como grande número de criados residentes, oriundos das casas mais pobres de pequenos agricultores (O’Neill 1981). No que respeita à contratação de pessoal para seu serviço, este grupo ocupa uma posição inversa à dos pequenos agricultores: não sendo nunca criados ou jornaleiros, os proprietários são habitualmente os contratadores de trabalho alheio.
39Aqui, as alianças matrimoniais realizam-se sob controlo estrito. Em consequência do sistema de herança post-mortem e por partilhas, a propriedade não é transferida por dotes de casamento, mas exclusivamente à morte de ambos os pais (Capítulo 7). Dentro desta ordem de ideias, o matrimónio normalmente não estabelece um novo lar, e o casal não obtém uma parcela de terra ou outros recursos centralizados na nova unidade conjugal. De facto, não existe qualquer nova unidade conjugal, dado que é prática frequente que ambos os cônjuges residam, após o casamento, com os respectivos pais (residência «natolocal»): embora o marido durma com a mulher, volta de manhã cedo para casa dos seus pais. Nenhuma possibilidade de herança existe para os esposos até que os pais morram; os pais de cada cônjuge mantêm o filho casado a trabalhar nos seus próprios grupos domésticos11.
40Assim, a menos que um proprietário case com uma proprietária, as quantidades de terra possuídas por ambos os consortes podem eventualmente diminuir em área em consequência de uma partilha (se houver outros irmãos). Dois casos aconteceram em Fontelas em anos recentes. O lavrador abastado, Bento, foi desde muito novo um dos proprietários da Casa do Conselho; no entanto, o seu matrimónio com a criada Tomásia (nascida noutra aldeia) e a herança de 1/4 das propriedades da sua casa natal colocao hoje no grupo dos lavradores abastados. Do mesmo modo, a irmã do padre, Angelina, casou com o lavrador abastado Miguel; embora vasta em área, a terra possuída por Angelina (1/6 da propriedade da mãe), juntamente com a do marido, não tem a extensão da dos outros proprietários, e o casal não é reconhecido como proprietário. Ambos estes exemplos ilustram um aspecto particular dentro do topo da hierarquia social: é mais fácil nascer-se pertencente ao grupo dos proprietários do que aí se conservar, a menos que alianças de casamento cuidadosas e bem controladas mantenham as posições de ambos os cônjuges, tanto em riqueza fundiária como em prestígio social. É importante notar aqui que estas estratégias matrimoniais não são unicamente económicas, com a finalidade de preservarem explorações de grandes dimensões, intactas e economicamente viáveis; são também estratégias sociais e políticas destinadas a çonservar a elevada situação de cada casa de proprietário dentro da respectiva hierarquia (voltarei a este assunto no Capítulo 7). Cada partilha de uma grande exploração dentro deste grupo, ou uma série de casamentos com os escalões hierárquicos inferiores, pode baixar a posição não só dos indivíduos em questão mas também de todo o grupo dos proprietários.
41Os proprietários, apesar de serem donos de terra no sentido mais restrito, estão longe de serem Senhores absentistas geralmente criticados pelos trabalhadores locais. Dão terras de arrendamento e contratam jornaleiros e criados para trabalhar nas suas enormes propriedades; mas as posições dos proprietários, como residentes da comunidade, obrigam-nos a manter uma distância e uma certa altivez. Por outras palavras, estes proprietários não constituem uma «classe» abstracta de exploradores ausentes: todos eles vivem na povoação e estão em contacto diário com os outros aldeãos. Porém, mantêm uma certa forma de distância social; esta distância, contudo, é frequentemente quebrada no interior daquelas casas, se existe uma «adopção» de criados pobres. Em Fontelas o tipo de vínculo proprietário/criado não é frio e retraído como entre patrão e empregado; trata-se antes de uma relação de trabalho conceptualmente convertida numa forma de parentesco fictício. Os criados de longa data tomam-se assim «como família». Ironicamente, os casos de criados adoptados revelam que a única maneira de entrar para o grupo de proprietários é a partir do cimo da hierarquia ou da sua base: ou se nasce dentro deste grupo ou se casa nele. As únicas excepções são os criados adoptados, subindo directamente de pobres para ricos: ninguém conseguiu comprar o acesso a este grupo.
42A situação económica destas quatro casas é muito boa, não obstante pretenderem mostrar-se «tão pobres» quanto as restantes famílias da aldeia e igualmente vítimas da inflação monetária. A coberto desta atitude de comunhão com os tempos difíceis, encontra-se um sentimento de desfasamento, em grande parte devido ao declínio do estrato dos proprietários como representantes da antiga aristocracia rural dominante. A Revolução de 1974 pouco afectou este concelho no que respeita aos aspectos da Reforma Agrária, e raras das medidas adoptadas eram aplicáveis às regiões de pequena propriedade; não foram expropriadas terras nesta zona, e as palavras herdade e latifúndio nunca são empregues pelos aldeãos. Um certo número de proprietários de Fontelas e arredores temeram contudo que a evolução política nacional (normalmente identificada com «os comunistas») iria a longo prazo «tirar-nos as nossas propriedades». Uma das poucas mudanças que afectou a povoação foi o cancelamento, após 1975, de todos os impostos sobre terras com valores inferiores a 2000 escudos de rendimento colectável: isto é, ficaram isentos todos os que pagavam um imposto anual (19% deste rendimento colectável) inferior a 380 escudos. Esta modificação só afectou os pequenos agricultores e alguns lavradores do lugar, e nenhum dos lavradores abastados ou proprietários.
43Este grupo possui hoje 170,41 hectares de terra, o que significa que apenas quatro casas possuem 33,2% do total das terras possuídas da aldeia. A área média de exploração deste grupo é de 43 hectares, aproximadamente. Embora a sua capacidade em obter mão-de-obra dentro do povoado esteja a diminuir, estas famílias ainda mantêm o controlo directo de uma grande parte (1/3) das terras, e possuem quase toda a maquinaria agrícola existente. Ansiosos por mostrarem que a sua situação é muito semelhante à dos seus inferiores hierárquicos, ou que fazem parte de uma comunidade marginal de camponeses oprimidos e isolados num canto esquecido do País, os proprietários são localmente considerados como um núcleo de indivíduos ricos situados no topo da escala social.
44Os dados do Quadro 3 foram exaustivamente tratados, de modo a apresentar com clareza as diferenças nas áreas das propriedades possuídas por diversas casas e grupos sociais. Mas a classificação apresenta-nos alguns problemas analíticos: até que ponto se podem definir estes grupos, não apenas em função das diferenças materiais (terras), mas também através de formas paralelas de diferenciação social? Em que medida são rígidas ou flexíveis as linhas que separam os pequenos agricultores dos lavradores, ou os lavradores abastados dos proprietários? Poderão as pessoas de um grupo deslocar-se para cima ou para baixo dentro da hierarquia devido a mudanças a longo prazo na posse da terra, à emigração, ou em consequência das situações individuais que possam surgir com heranças favoráveis ou desfavoráveis?
45Não é minha intenção conferir aos valores referentes às propriedades um papel totalmente fixo ou determinante. Contudo, a importância da terra não pode ser subestimada; em vez de constituírem unidades estáticas cristalizadas no presente, cada exploração agrícola pode ser entendida como um resultado temporário de uma série contínua de decisões individuais e colectivas relacionadas com a terra, o trabalho, o casamento e a herança. No entanto, estas decisões variam amplamente segundo a posição de determinadas pessoas ou casas dentro da hierarquia social. Os estudos de caso que se seguem, bem como os do Capítulo 5, vão tentar mostrar que esta hierarquia não constitui um sistema fluido, no qual a mobilidade para cima ou para baixo seja principalmente função da iniciativa ou fracasso individual. Ao contrário, a hierarquia social assenta sobre um sistema de estratificação, historicamente condicionado, que separa os ricos dos pobres.
46O Quadro 4 apresenta um resumo dos valores totais do quadro anterior, e inclui as áreas médias de propriedade possuída por cada grupo social. Observados em conjunto, os dois quadros permitem-nos fazer um certo número de reparos: o Quadro 4 indica que cada grupo possui maiores quantidades de terra do que o grupo imediatamente abaixo na escala hierárquica. Além disso, estas quantidades estão concentradas num número cada vez menor de explorações, cuja área aumenta à medida que subimos na hierarquia.
47Torna-se logo aparente o problema da definição dos dois grupos de lavradores como um «campesinato médio». Uma observação do Quadro 4 revela que ambos os grupos podem ser considerados intermédios, possuindo 20 explorações de tamanho médio que totalizam 264,22 hectares, o que representa 51,4% do total de terra possuída. Como o Quadro 3 nos mostra, as casas destes grupos são maiores, a maior parte delas têm juntas de vacas, e o mesmo termo é utilizado pelos outros aldeãos quando a eles se referem. Todavia, seria igualmente possível ligar os lavradores abastados aos proprietários, dado que estes dois grupos constituem portanto um grupo superior que possui 319,42 hectares, o que representa 62,2% do total de terra possuída. Assim agrupadas, 11 casas (menos de 1/5 da aldeia) controlam quase 2/3 da terra.
48É significativo notar que existe uma concentração de oito fogos com explorações agrícolas muito grandes nas zonas centrais da povoação (Mapa 3). Quatro destas oito casas são as dos proprietários e as restantes pertencem todas aos lavradores abastados; seis destas oito famílias estão ligadas por laços de parentesco. Assim, tanto espacialmente como em termos de relações sociais, os lavradores abastados estão intimamente associados com os proprietários; além disso, como os valores do quadro anterior mostraram, os aspectos que caracterizam a posse da terra por este grupo apresentam muito mais semelhanças com os proprietários do que com os lavradores. Estes sete grupos domésticos arrendam muito menos terra e também arrotearam um número inferior de baldios em comparação com os outros dois grupos mais pobres. Tal como as quatro famílias ricas, estas sete também dão mais terra de arrendamento. A coluna «terra arrendada» no Quadro 3 é particularmente reveladora: por exemplo, considerados em conjunto, estes dois grupos superiores incluem apenas uma das 21 casas que pagam renda por terras. Além disso, ambos os grupos incluem somente duas das 25 famílias que arrotearam baldios. Poderá, então, o termo local lavradores remediados ter mais significado do que parece à primeira vista?
49Esta forma de divisão agruparia os 14 lavradores e as 31 casas de pequenos agricultores, constituindo assim um grupo de maior dimensão com o total de 45 fogos (quase 80% da aldeia) que em conjunto possuem 194,50 hectares, ou seja, apenas 37,8% da terra. Mas, além destas mudanças de valores e percentagens, outros aspectos contribuem para tal divisão12. Em contraste com a aglomeração de casas abastadas no centro da povoação, as casas dos pequenos agricultores e de alguns lavradores distribuem-se espacialmente fora do centro, em particular nas secções de leste e oeste nos extremos opostos da comunidade (Mapa 3). São precisamente estas secções mais pobres que se verifica pelo Capítulo 4 possuírem os mais pequenos turnos nas rotações de rega: as suas minúsculas cortinhas reflectem de facto as pequenas áreas totais das suas propriedades.
50Este capítulo, bem como os que se seguem, mostrar-nos-á que, historicamente, os lavradores não foram camponeses independentes (quase o não são hoje), mas antes jornaleiros dependentes. Longe de corresponderem a uma categoria teórica de camponeses médios, cuja imagem ideal mal reproduzem, os lavradores e pequenos agricultores constituem «os pobres» da aldeia. Embora a gente pobre de Fontelas não se possa directamente comparar com o mais vasto proletariado dos trabalhadores rurais da freguesia alentejana de Vila Velha (Cutileiro 1977), nesta comunidade de pequenas explorações também se encontram aspectos de desigualdade material e social. Mas estas formas de desigualdade são articuladas, no seio da estrutura social, de um modo bastante diferente; a pequena dimensão da povoação não deverá afastar a nossa atenção das suas próprias divisões, bem nítidas, entre as diversas categorias sociais. Se bem que o lugar, no seu conjunto, pareça ser de camponeses donos das suas terras, isto não se aplica totalmente à maioria das casas. Tal como a designação «pequenas explorações familiares» dá uma impressão falsa de uniformidade dentro de uma comunidade camponesa de minifúndio, também a designação «campesinato médio» sugere uma continuidade enganadora no seio de uma estrutura social que se encontra intemamente muito mais diferenciada.
51Mesmo afectando profundamente a aldeia de diversos modos, a emigração durante os anos 60 não alterou radicalmente o sistema local de posse da terra, nem tão-pouco eliminou as desigualdades em termos de propriedade ou as divisões entre os grupos sociais. Essas divisões são ainda consideradas por muitos vizinhos como uma dicotomia entre a minoria dos ricos e a maioria dos pobres. A percepção destes aspectos não está completamente desligada da efectiva distribuição da terra; a divisão crucial dentro da hierarquia da comunidade não aparece entre os pequenos agricultores e o grupo dos lavradores (algo mais prósperos), que atingiram um certo bem-estar graças ao arrendamento e compra de terras, ao arroteamento e à emigração; ela revela-se antes entre os lavradores, cujo passado foi o de pobres jornaleiros, e os lavradores abastados, cujos antepassados — tal como os dos proprietários — sempre tiveram maior riqueza fundiária. Estes dois últimos grupos (o dos proprietários e o dos lavradores abastados) constituem a élite dominante da povoação. A divisão fundamental do Quadro 3 é então a barreira dos 20 hectares, que separa a comunidade em dois grandes grupos de aldeãos — aquele que possui propriedades abundantes, e outro com terras exíguas. Assim agrupados, a visão que os lavradores e os pequenos agricultores têm da hierarquia social não corresponde a uma divisão entre ricos, remediados e pobres, mas antes a uma cisão entre os ricos e os outros. Não se encontra aqui, pois, um autêntico «campesinato médio».
b) Cinco estudos de caso
52Até que ponto as divisões existentes entre os camponeses se encontram patentes nos casos individuais? Escolhi cinco famílias diferentes, cada uma pertencente aos quatro grupos sociais principais (e a casa de uma pequena agricultora) apresentando, em termos breves, a suas posições em relação à terra e ao estatuto social. Estes estudos de caso são deliberadamente curtos, já que tencionam em primeiro lugar dar uma imagem inicial que antecipará os estudos de caso mais aprofundados do Capítulo 5. Pretende-se fazer notar, acima de tudo, o papel da terra como critério básico na formação das categorias sociais.
53O Quadro 5 apresenta-nos aspectos mais pormenorizados das explorações agrícolas pertencentes a estes cinco fogos. Ao longo dos cinco estudos de caso, julgamos útil que o leitor consulte este quadro. Antes do exame de cada exemplo, uma comparação sumária revela-nos de imediato os seguintes aspectos: são particularmente óbvias as diferenças entre as explorações de D. Elvira e de Bento e as outras três; por outro lado, cada tipo de terra (com excepção das vinhas) pertencente a D. Elvira é, em área, superior ao dobro de todos os possuídos por Bento. Alguns dos tipos de terra de D. Elvira perfazem mais de três vezes a área das propriedades do lavrador André. Tanto D. Elvira como Bento têm terras dadas de arrendamento. Por seu turno, o tamanho da exploração deste último é o dobro do de André. Os 5 hectares de lameiros de Bento permitem que tanto a sua casa como a do filho possam, à vontade, ter cada uma a sua junta de vacas; além disso, nem D. Elvira nem Bento arrendam terras de outros, bem como não arrotearam quaisquer parcelas de baldio.
54Por outro lado, as explorações das outras três casas são extremamente pequenas; 10 das 15 diversas fracções de terra possuídas por estas famílias têm menos de 1 hectare cada. Tanto André como Eduardo arrotearam leiras nos baldios e as três casas arrendam terras de outros. André arrenda 0,29 hectares de lameiro para acrescentar aos seus escassos 1,62 hectares, e assim o total dos seus prados atinge 1,91 hectares, valor que se encontra pouco acima do mínimo exigido para se poder manter dois animais de tiro. A área total dessa exploração agrícola (12,66 hectares) é considerada média pelos outros aldeãos. Aproximadamente 2/3 da propriedade pertencente a André é composta de leiras de cereal, mato e alguns soutos de castanheiros, mas só metade pode ser anualmente cultivada em consequência do sistema de campos abertos de duas folhas. Sem o arrendamento desta parcela adicional de 0,29 hectares, os lameiros de André teriam uma área que mal ultrapassaria os 1,5 hectares necessários para alimentar uma junta de vacas. Com uma área um pouco inferior de lameiro, André seria obrigado a alugar um dos tractores existentes na povoação para poder lavrar as suas leiras, ou então pedir a outro lavrador os serviços de lavra, «pagando» em troca com o seu próprio trabalho braçal.
55O pequeno agricultor Eduardo arrenda ainda mais terras — 3,41 hectares; assim, mais de metade do total de 5,87 hectares que explora são arrendados de outros. Se não fossem essas parcelas arrendadas, a propriedade de Eduardo (na realidade pertencente a sua mulher) não teria senão a área mínima de 2,46 hectares, dos quais apenas 0,37 de lameiro, área que se encontra muito abaixo do mínimo exigido para manter dois animais de tiro. Trabalhando como pastor para D. Sofia, Eduardo ocasionalmente junge a sua mula com a do vizinho (o pequeno agricultor Matias) para efectuarem uma lavra conjunta.
56Por último, a mais pequena exploração — a da pequena agricultora Engrácia — é considerada minúscula pelos padrões da comunidade. Esta propriedade não tem sequer terra suficiente para manter um animal de tiro, nem dá colheitas capazes de sustentarem os seus quatro filhos ilegítimos13; esta não possui lameiros ou vinhas e não arroteou nenhuma terra nos baldios. Mal conseguindo subsistir, Engrácia não troca quaisquer tarefas com outros aldeãos do mesmo nível económico, mas esporadicamente consegue ajuda ou favores de parentes e outros vizinhos que têm pena dela. Solteira e com um agregado familiar que pouco a ajuda no trabalho, ela tem de pedir ao seu irmão, o lavrador Elias, que lhe lavre os poucos campos que possui. Estes factores levaram este a dizer uma vez: «A minha irmã Engrácia deve ser a pessoa mais pobre de toda a aldeia».
1. A CASA DE D. ELVIRA
57A casa de D. Elvira (Mapa 3 — Casa 38) apresenta um determinado número de características que constituem o arquétipo do grupo de proprietários. Sendo filha única, D. Elvira (hoje com 74 anos) ocupa uma posição incontestada como única herdeira da fortuna dos seus pais. Todas as suas terras foram herdadas; não só nunca comprou terras como chegou a vender, há alguns anos, várias parcelas a habitantes da aldeia de Mosteiro. Embora solteira, é chamada pela gente local «Senhora Dona Elvira», e em consequência do seu elevado nível social é também conhecida localmente como a fidalga. Culta, e possuindo um elevado prestígio não só em Fontelas como em muitas das povoações vizinhas, ela é a última de uma linha de notáveis da zona. Não obstante a designação que lhe é dada — a fidalga — ela não pertence contudo à nobreza da região. As ricas vivendas nobres e eclesiásticas da área são habitualmente identificadas pelos brasões e capelas anexas; nenhum destes símbolos se encontra na casa de D. Elvira ou nas dos outros proprietários da freguesia (existem alguns solares deste tipo na vila próxima).
58Existem provas concretas de que, historicamente, esta casa foi uma das mais influentes em toda a paróquia. Tanto o avô como o pai de D. Elvira foram vereadores na Câmara Municipal, e o seu bisavô, Miguel Pires, serviu como vereador na Câmara de Mosteiro durante os anos em que esta povoação foi elevada ao nível de concelho (1837-1854). Quando em 1851 foi realizado o recenseamento dos eleitores no extinto concelho de Mosteiro, Miguel Pires foi registado como um dos mais ricos lavradores da freguesia, pagando a terceira décima mais alta dos 91 homens registados; na lista encontrava-se também o sobrinho de Miguel, o Reverendo Venâncio Pires, tio-avô de D. Elvira.
59Os arquivos paroquiais, que serão examinados no Capítulo 5, revelam que a casa de D. Elvira possuía uma estrutura permanente de criados residentes desde fins do século xix, característica que mantém ainda hoje. A Figura 1 apresenta-nos a estrutura deste fogo em 1977 e inclui alguns membros da genealogia de D. Elvira14.
60O criado Lucas (Geração 3-pessoa g) bem como a sua companheira15 Leónida (3h) residem hoje na casa de D. Elvira (Lucas já lá vivia muito antes de Leónida). A sua filha, a jovem criada Gracinda (2g), tomou-se ao longo dos anos como que «uma filha» de D. Elvira; isto deveu-se em parte à longa permanência nesta casa do criado Lucas; é Gracinda, e não a sua mãe Leónida, que dirige grande parte da economia doméstica. Gracinda casou com o proprietário Valentim, um irmão do actual pároco, P.e Gregório (2c), que também é proprietário e residente em Fontelas. Por meados dos anos 60, antes do matrimónio, Valentim emigrara para França apenas por dois anos; quando do seu regresso a Fontelas e depois de ter casado com Gracinda, comprou um tractor com as suas poupanças e alguma ajuda de D. Elvira. Valentim ainda continuou a residir com os seus pais durante cerca de 5 anos, vindo somente à noite para dormir em casa de D. Elvira (Capítulo 6). A herança dele corresponde a 1/6 (10,83 hectares) da grande propriedade de sua mãe (65 hectares); esta herança foi adicionada aos 38,33 hectares de D. Elvira quando Valentim passou a viver em casa desta. Com os 1,67 hectares de Leónida, a área actual desta exploração agrícola é de 50,83 hectares. Os boatos locais dizem que todas as terras de D. Elvira foram testamentadas à sua criada Gracinda e ao irmão desta, Mateus (2h), que é hoje estudante universitário no Porto. Tal como a irmã Gracinda, Mateus foi aos poucos sendo «adoptado»16 por D. Elvira, que tinha sido escolhida como sua madrinha de baptismo.
61O casamento de Valentim com Gracinda, de facto, não fez senão reviver os laços de parentesco já existentes entre as famílias de D. Elvira e do padre, uma vez que a mãe do padre, Manuela (3b), era prima em segundo grau de D. Elvira. O matrimónio de Gracinda com o proprietário Valentim culminou a ascensão daquela dentro da hierarquia da aldeia: filha ilegítima de uma criada pobre, a longa permanência dela na casa do patrão do pai colocou-a numa posição de quase parentesco em relação a D. Elvira, idosa e sem descendentes. O caso de Gracinda é um dos vários exemplos de criadas que subiram da base até ao topo da hierarquia social; ao contrário da sua irmã Angelina (2d) que casou com o lavrador abastado Miguel, e portanto casou «abaixo», Valentim manteve-se no grupo dos proprietários através do seu matrimónio com a criada adoptada por D. Elvira. Este elo íntimo entre o casamento e a riqueza fundiária é constantemente sublinhado pelos proprietários e lavradores abastados. Na verdade, alguns vizinhos referem a esperteza de Valentim, dizendo que «ele não se casou com a mulher mas com as terras de D. Elvira».
62A dimensão da lavoura desta casa é consideravelmente mais vasta do que a maioria das outras famílias em Fontelas. Possuindo não só um tractor mas também uma ceifeira-atadeira («segadeira») e uma ceifeira para cortar feno, Valentim aluga os serviços do seu tractor a outros aldeãos. Esta casa vende grandes quantidades de batata, castanha, uvas, vinho e gado, bem como leite proveniente das suas três vacas leiteiras («tourinas»), O seu rebanho de 150 cabeças de ovelhas, guardado pelo cunhado de Leónida (o pequeno agricultor e pastor Silvério — 3j), dá um lucro anual estimado em 40 000 escudos, que é dividido entre os dois fogos. Um cálculo aproximado dos rendimentos totais de D. Elvira dá-nos para o ano de 1978 pouco mais de 180 000 escudos. Além disso, D. Elvira contrata ocasionalmente um dos cinco jornaleiros de Fontelas, por alguns dias consecutivos, durante as tarefas agrícolas de ponta.
63A prosperidade económica desta família reflecte-se ainda na sua boa reputação de casa «rica mas generosa», o que a distingue de «uma casa rica», designação pejorativa utilizada frequentemente por muitos vizinhos para se referirem a outras casas de proprietários de Fontelas e povoações circundantes. Esta atitude ambivalente e de quase desprezo é particularmente evidente nos casos de algumas pessoas que «treparam» da sua situação de criados (nas casas dos seus patrões) para o estatuto de proprietários; destes criados-virados-proprietários, diz-se que acabaram por adoptar os maneirismos avarentos dos patrões. Os aldeãos referem constantemente a péssima reputação de tais indivíduos com o seguinte ditado — Nunca sirvas a quem serviu —, o que significa que «os antigos criados são os piores patrões». Nada que se pareça com esta má reputação é sugerida no caso de D. Elvira ou da criada Gracinda. Efectivamente, o próprio Valentim compartilha do elevado prestígio da família em que casou: na eleição, em 1976, de quatro moradores para a comissão directiva destinada a administrar os futuros recursos dos baldios, três outros habitantes receberam entre 6 e 8 votos cada, enquanto Valentim recebia uma clara maioria de 25.
64Bem ciente da sua elevada posição económica e social dentro da comunidade, a casa de D. Elvira não se considera rica mas «menos pobre», não desempenhando um papel de exploradora mas sim de protectora dos pobres. Este comportamento manifesta-se nos donativos oferecidos aos ajudantes voluntários que aparecem durante as suas colheitas. A mesma atitude está também patente nos comentários cristãos de D. Elvira sobre o valor do trabalho honesto e árduo, e a «pouca sorte» daqueles infelizes rústicos que não possuem os recursos suficientes para poderem trabalhar. A escassez de propriedade entre os pobres nunca é explicada pelos proprietários em termos que não sejam pessoais ou individualizados: «têm muito pouco porque os pais já tinham pouco». Esta argumentação circular, por parte dos ricos, só vem reforçar a ideia simplista de que a pobreza se reproduz ao longo das gerações unicamente por culpa dos indivíduos que «não querem trabalhar».
65Mas, por outro lado, tanto D. Elvira como Valentim e os outros proprietários frisam constantemente a pobreza generalizada da aldeia em relação às regiões mais ricas e desenvolvidas de Portugal. No mais clássico sentido marxista, os proprietários tentam esconder as suas diferenças internas como classe distinta, preferindo realçar o seu modo de vida comum como camponeses «...do mesmo modo como, por exemplo, um saco com batatas forma um saco-de-batatas» (Marx 1852:503). Obviamente diferentes dos outros não só em termos de riqueza como de prestígio, os membros desta casa optam contudo por apresentar a imagem da pobreza uniforme dos camponeses, quando afirmam que «aqui todos nós somos igualmente pobres».
2. A CASA DE BENTO
66A Figura 2 apresenta-nos a genealogia parcial do lavrador abastado Bento (3d). Bento (já um homem idoso) e o seu filho Bernardo (2c) são ambos lavradores abastados que cultivam a mesma exploração agrícola, residindo em casas adjacentes. Bento vive com a mulher, Tomásia, enquanto Bernardo vive com a mulher, Olímpia (2d), dois filhos pequenos e a sogra, Florência. Como a propriedade em Fontelas é divisível entre todos os irmãos unicamente após a morte dos pais, a exploração de Bento mantém-se ainda intacta e é suficientemente vasta para sustentar duas juntas de vacas e dois fogos separados. Sendo primo em segundo grau de D. Elvira, Bento é também aparentado com todas as outras três famílias de proprietários de Fontelas; ele é irmão de Manuela (3f) e de Margarida (3h), e portanto tio do padre (2h) por linha materna. Bernardo, por conseguinte, é primo direito do padre (um facto, aliás, muito sublinhado por ele). Para além de estar relacionado com as casas das duas irmãs proprietárias, Bento também se encontra ligado à de D. Sofia através do seu matrimónio com Tomásia (3e), tia por linha materna de D. Sofia. É de salientar que tanto Tomásia como a irmã, Liberata (3c), vieram para Fontelas como criaditas, mas tiveram mais sorte que os seus dois irmãos mais velhos (não incluídos na figura). Estes são hoje pequenos agricultores pobres, vivendo ambos com as companheiras e os filhos ilegítimos destas. Assim, tanto Liberata como a irmã Tomásia surgem como dois outros exemplos de mulheres pobres que treparam até ao topo da hierarquia social graças aos seus casamentos com homens ricos.
67Bento e Bernardo moram em habitações separadas que faziam parte da antiga Casa do Conselho, propriedade dos pais de Bento (Mapa 3-Casas 31 e 32). Nem a de Bento nem a de Bernardo têm pátio próprio, embora ambas utilizem uma grande eira em conjunto com a irmã do padre, Angelina (Casa 30). Sendo o mais velho de quatro irmãos, dos quais apenas um emigrou para o Brasil (Porfírio: 3g), Bento herdou uma extensão substancial de terra que lhe é suficiente para prescindir do arroteamento de baldios e do arrendamento de terra de outros aldeãos. Contudo, o seu casamento foi notoriamente «descendente» dentro da escala social, já que a sua mulher Tomásia, que viera para Fontelas em pequena, era uma antiga criada. Não contribuindo com terras para o matrimónio (de qualquer forma, um acontecimento raro dado o sistema de heranças e residência natolocal) Tomásia casou não obstante «acima» numa casa de lavrador abastado. Na geração seguinte, Bernardo, filho de Bento, é o segundo de três irmãos: o seu irmão mais velho Ambrósio (2b) e a irmã mais nova Paula (2e) casaram ambos e foram para o Brasil antes do surto migratório para França nos anos 60. Tal como acontecera a seu pai, Bernardo também casou com uma mulher de outra aldeia (a lavradora Olímpia), que não trouxe para o matrimónio quaisquer terras. Mesmo assim, a propriedade do pai de Bernardo (22,25 hectares) é suficientemente vasta para manter os dois casais, a mãe de Olímpia e os dois filhos pequenos de Bernardo — ou seja, um total de 7 pessoas.
68Em contraste com a casa de D. Elvira, que juntou as propriedades de vários indivíduos numa única exploração de grande dimensão, Bento manteve intacta a parte que herdou da antiga e vasta propriedade dos seus pais. A exploração agrícola de Bento é um pouco mais pequena do que as das irmãs, que incluem terras que lhes foram deixadas por testamento pelos irmãos solteiros do pai de Manuela (Capítulo 5). Apenas uma ínfima porção da terra de Bento se encontra por cultivar, sendo dadas de arrendamento a outros apenas 0,25 hectares, área inferior àquela dada de arrendamento por D. Elvira. Nem Bento nem o filho contratam jornaleiros ocasionais, e nenhuma das duas casas tem criados residentes.
69Enquanto Bento e a mulher mantêm um ritmo de lavoura lento e relativamente independente, o filho Bernardo cultiva a sua propriedade com uma junta de vacas ou com o tractor conduzido pelo seu primo direito, o proprietário Valentim. Embora sendo duas casas razoavelmente prósperas, as fracções das colheitas vendidas por Bernardo são ligeiramente mais pequenas do que as vendidas por D. Elvira e Valentim. Apesar de ter emigrado por um curto período para França durante os anos 60, Bernardo não investiu as suas poupanças quer em maquinaria agrícola quer na compra de terras. Também eleito para a comissão directiva dos baldios, Bernardo obteve 8 votos. Ele é um dos dois cabos de polícia de Fontelas encarregados de notificar pequenas infracções ou ofensas à Junta de Mosteiro, e de um modo geral de «manter a ordem pública».
70Em oposição a muitos dos lavradores e pequenos agricultores, Bernardo entende que a agricultura local se deve desenvolver, evitando o recurso à emigração. Com propriedades de área suficiente para manter dois grupos domésticos, Bernardo está atento às evoluções da agricultura e política nacionais na perspectiva de futuras mudanças no sistema de crédito agrícola, empréstimos, mecanização e na melhoria geral da situação dos «pequenos camponeses». Contrariamente aos pequenos agricultores e lavradores, Bernardo e outros indivíduos do seu grupo não se encontram sujeitos ao empobrecimento que as subdivisões sucessivas de propriedades provocam nos agricultores mais pobres.
71As sete casas de lavradores abastados estão interessadas nos métodos agrícolas e, além disso, possuem os meios adequados para o seu desenvolvimento. Por exemplo, outro lavrador abastado (Delfim: Casa 40) explora uma propriedade de 29,17 hectares com um tractor, e, como já referimos, Julião (Casa 19) solicitou um empréstimo para comprar um tractor que irá utilizar na sua exploração de 27,80 hectares. Na realidade, sempre que grandes grupos de trabalho se organizam para executar as maiores tarefas colectivas e comunais (limpeza dos regos de água, consertos de caminhos públicos, etc.) Bernardo e o seu amigo Julião (também seu compadre) acabam sempre num debate acalorado sobre a situação económica e política do País. Os outros aldeãos frequentemente escarnecem deles, chamando-lhes «políticos», mais preocupados com discussões abstractas sobre acontecimentos a nível nacional do que com os aspectos práticos das reparações locais. Por outras palavras, em vez de fugirem da aldeia de uma vez para sempre (como têm feito os pobres) os lavradores abastados pretendem melhorar o seu nível de vida através das vias já existentes. Consequentemente, prestam grande atenção às modificações económicas e políticas nacionais.
72A distribuição da terra, que colocou os lavradores abastados numa posição particularmente favorável, explica em grande parte esta atitude. Em vez de (como os lavradores e pequenos agricultores) recorrerem à emigração permanente como fonte de riqueza monetária que permita às suas famílias um nível de vida razoável, Bernardo e outros membros deste grupo conservaram um elevado nível de vida graças às grandes quantidades de terras recebidas por herança. Tal como os proprietários, estas casas procuram manter o controlo sobre as vastas extensões de terra que já possuem. Não é provável que percam esse controlo, excepto no caso de lavradores abastados que casam sucessivamente abaixo na escala social ao longo de várias gerações, ou de partilha de uma propriedade em numerosas pequenas fracções; esta última hipótese é rara, dado que alguns irmãos têm por hábito casar fora da povoação e outros ficam solteiros. Da mesma maneira, os membros deste grupo estão muito cientes da sua riqueza, mas ainda procuram apresentar a imagem da pobreza uniforme dos camponeses; também eles tendem a sublinhar que «aqui todos somos igualmente pobres».
3. A CASA DE ANDRÉ
73Embora sendo um lavrador que possui uma junta de vacas, André (Mapa 3 — Casa 36) ocupa uma posição completamente diferente da de Bento ou de Bernardo. A maior parte da terra cultivada por André e pela mulher foi herdada (9,08 hectares), mas uma parte substancial foi obtida através de outros meios: 0,29 hectares são arrendados, 1,67 foram arroteados e outros 1,67 foram comprados. (Do Quadro 3 ressalta que a maioria dos outros lavradores arrendam extensões de terra muito maiores do que André.) Nem André nem a mulher têm os pais vivos; embora os pais de André fossem jornaleiros e os de Joaquina lavradores (Figura 3), aquele herdou mais terra do que a mulher já que o património dos pais dele foi dividido entre ele e o único irmão, o ferreiro Justino (2d). Joaquina obteve 1/4 da propriedade de seus pais, que foi dividida entre ela e os três irmãos. Tanto a família de André como a de Joaquina eram de nível relativamente igual — nem um nem outro casou «acima» ou «abaixo».
74André e Joaquina têm cinco filhos — os três mais velhos deixaram Fontelas, ao passo que os dois mais novos ficaram. A primeira filha, Umbelina (1f), casou numa povoação vizinha e teve dois filhos; Umbelina, o marido e os filhos visitam Fontelas assiduamente e o contacto entre a casa dela e a dos pais é frequente. O segundo irmão (Crispim: lg) casou com uma mulher de outra aldeia vizinha e emigrou para o Brasil, onde se estabeleceu com uma padaria; este casal também teve dois filhos, mas as suas visitas à terra natal são menos frequentes. O terceiro irmão (Lídia: lh) casou com um pequeno agricultor de Fontelas, que emigrou em 1966 para a Alemanha. Lídia e a filha seguiram para aquele país em 1969, enquanto o filho ficou com Umbelina na povoação desta. O marido de Lídia trabalha numa fábica de ferragens, e comprou diversos lameiros em Fontelas que estão entregues aos pais de Lídia, embora não sejam cultivados por eles. As visitas deste casal a Fontelas são também assíduas: vieram passar algumas semanas durante dois dos três verões que lá permaneci. Finalmente, os irmãos mais novos Salvador e Geraldo (1i/1j) vivem ainda em casa. Os três anos de serviço militar de Salvador, durante a guerra colonial em Moçambique, deram-lhe uma experiência do mundo exterior e um desejo de escapar à pequena agricultura de Fontelas; na fase final do meu trabalho de campo, Salvador preparava-se para um exame de admissão à Guarda Fiscal. O mais novo, Geraldo, destinado a continuar a exploração da propriedade, permanece em casa e tomará conta dos pais quando estes envelhecerem.
75Note-se que, no caso deste grupo doméstico, não é o irmão mais velho que continua em casa, mas alguns dos mais novos; além disso, surgem dois tipos de emigração relativamente aos filhos de André e de Joaquina. O primeiro é uma emigração antiga e a longo prazo para o Brasil, sendo as visitas à aldeia muito raras, o que implica um abandono de facto (mas não de jure) dos direitos à propriedade natal aquando da sua partilha. O segundo tipo, posterior mas também a longo prazo, é uma emigração para França e Alemanha: esta forma de emigração permite visitas mais frequentes, possíveis compras de terra, e a manutenção dos direitos de facto a quinhões do património natal (se bem que estas parcelas de terra estejam frequentemente emprestadas a parentes ou dadas de arrendamento a outros vizinhos). Em contraste com os filhos dos proprietários e lavradores abastados, que por via de regra emigram temporariamente com vista a um regresso a Fontelas para depois investirem na mecanização da agricultura, os jovens do grupo dos lavradores, pelo contrário, emigram permanentemente. Além disso, os seus casamentos são contraídos no seio do próprio grupo ou com pequenos agricultores mais pobres, e não com proprietários ou indivíduos com estatuto profissional ou militar. Enquanto os membros dos dois grupos superiores tendem a ficar na comunidade e a casar com proprietários de terras ou com «a própria terra», os lavradores habitualmente ou casam fora ou se apressam a abandonar a aldeia.
76Embora a casa de Bernardo mantenha uma entreajuda contínua com dois dos quatro fogos de proprietários de Fontelas, as trocas de André são efectuadas mais frequentemente com as casas do seu vizinho, o lavrador abastado Daniel (Mapa 3 – Casa 34), e da lavradora Claudina (Casa 47). É de referir que a família de Daniel é a única destas sete que «comprou» o acesso ao grupo dos lavradores abastados, devido às sucessivas aquisições de terra no decorrer do tempo; mas dada a pequena dimensão do seu grupo doméstico (3 pessoas) uma grande parte da terra mantém-se por cultivar. Como a dimensão da lavoura das duas casas é idêntica, a de André e as de Claudina e Daniel fazem contínuas trocas de trabalho ao longo do ciclo agrícola. Nem André nem a mulher trabalham à jeira. Do ponto de vista social, este é considerado um aldeão muito discreto que «leva a sua vida», independente e respeitavelmente.
77Nem o irmão de André nem quaisquer dos irmãos de Joaquina se encontram em situações análogas. Clementina (2g), irmã de Joaquina, casou com um dos dois taberneiros da povoação; embora a taberna permita um nível de vida razoável, mas de nenhum modo luxuoso, Clementina (Casa 7) pensa, esperançosa, nos proventos futuros provenientes da emigração da filha para França. Estes benefícios já se materializaram numa casa recentemente construída em Fontelas (extremo esquerdo do Mapa 3). Os dois irmãos de Joaquina tiveram muito menos sorte; Celestino (2i) mora com a irmã Clementina e o marido desta (o taberneiro) e há alguns anos sofreu uma doença que o incapacitou para qualquer trabalho agrícola. Celestino é também o pai natural do primeiro filho ilegítimo da pequena agricultora Engrácia (Roque: 1k). O irmão mais novo de Joaquina, Tomé (2k), hoje jornaleiro mas anteriormente carpinteiro, vive sozinho (Casa 35) e é um alcoólico crónico. Assim, nenhum dos três irmãos de Joaquina conseguiu sair do grupo dos pequenos agricultores.
78Nenhum dos irmãos de André teve melhor sorte; Justino (2d) é pequeno agricultor e também o ferreiro ocasional da aldeia, e mora com a sua companheira, oriunda das Astúrias no Norte de Espanha. Vivendo ainda com esta última, já muito depois do nascimento dos seus três filhos (não incluídos na figura) Justino teve mais dois filhos: um filho adulterino (Albino: 1c), que morreu com 4 anos de idade, e uma filha adulterina (Felícia: 1d), ambos da tecedeira Crusanda (2b). Esta, anteriormente casada, foi abandonada pelo marido — o proprietário Porfírio (2a) — que partiu para o Brasil menos de um ano após o matrimónio. Felícia ficou na comunidade, tendo casado com o pequeno agricultor e pastor Eduardo (le), natural de uma povoação próxima.
79Com efeito, a ilegitimidade caracterizou um certo número de outras uniões na parentela de André. O próprio pai de André era filho adulterino de uma jomaleira que vivia separada do marido (facto referido explicitamente no assento de baptismo do pai de André no Registo Paroquial em 1880). O próprio André, antes de casar, foi pai de uma filha adulterina (1b) nascida de uma união com Crusanda, a mesma mulher que se ligaria mais tarde com o seu irmão Justino (esta criança morreu com alguns meses de idade). Este facto foi mencionado por Joaquina como um pomo de discórdia que afectou o seu casamento subsequente com André: os pais de Joaquina consideravam a existência de um filho ilegítimo do futuro marido como um aspecto negativo, pondo em causa a sua reputação. Por conseguinte, embora sejam hoje lavradores, todos os irmãos de André e Joaquina apresentam características do grupo mais pobre dos jornaleiros: uniões consensuais, abandonos do lar, ilegitimidade e relações adúlteras.
80A dimensão da lavoura de André é mais pequena do que a do lavrador abastado Bernardo, e minúscula em relação à do proprietário Valentim. Uma estimativa dos rendimentos anuais de uma outra casa de lavrador (a propriedade um pouco maior de Lourenço, com 14,33 hectares) dá-nos um valor aproximado de 50 000 escudos anuais; esta quantia é substancialmente inferior aos rendimentos de Valentim, que ultrapassam os 180 000 escudos. Os proventos de André (não incluindo as remessas pecuniárias do genro que vive na Alemanha) são provavelmente ainda mais pequenos do que os valores calculados para a casa de Lourenço. A atitude de André perante a agricultura não é tão positiva como a de Bernardo; ele pensa que o aguarda um futuro de mera subsistência, não empreendendo quaisquer melhorias em termos de mecanização ou alargamento da sua propriedade. A extensão desta exploração constitui mais um problema — quando ele e a mulher morrerem é natural que seja dividida entre os cinco filhos. Em tal situação é corrente que os herdeiros não residentes (como no caso de duas irmãs do padre) cedam por empréstimo ou vendam as suas porções de terra aos irmãos que ficam a tomar conta da casa. Embora dois dos filhos de André (Umbelina e Crispim) decerto não venham a necessitar da parte que lhes cabe dos 12,37 hectares, a partilha final da propriedade em cinco fracções de 2,47 hectares cada não proporcionará a qualquer dos três herdeiros mais novos uma exploração agrícola viável.
81Em contraste com o lavrador abastado Bento, cuja ampla exploração é por si só suficiente para sustentar a mão-de-obra e os animais de tiro de duas casas independentes, a propriedade de André mal dá para a sua família — apenas uma combinação do arrendamento, da compra de terra, do arroteamento de baldios e da junção das heranças dos dois cônjuges permitiram a André e a Joaquina consolidar recursos bastantes que os colocaram no grupo dos lavradores. Ao contrário dos dois grupos sociais superiores, tanto André como outros aldeãos em situações idênticas frisam que «aqui todos somos desiguais».
4. A CASA DE EDUARDO
82Eduardo e a sua mulher Felícia são pequenos agricultores (Mapa 3 — Casa 22). A área total da propriedade que exploram (5,87 hectares) é inferior ao mínimo de 6 hectares necessários para manter uma junta de vacas; são donos apenas de 2,46 daqueles 5,87 hectares, sendo os restantes 3,41 arrendados de outras seis casas (Nota b do Quadro 5). Toda a terra que possuem pertence a Felícia, uma vez que Eduardo era anteriormente pequeno agricultor numa aldeia vizinha. O Apêndice 1 contém uma lista, parcela a parcela, de todas as terras que compõem esta propriedade: de um total de 27 parcelas cultivadas, 17 são de Felícia. Para além da sua limitada actividade agrícola, Eduardo trabalha como pastor para a proprietária D. Sofia, e assim tem acesso a 2,17 hectares de lameiros para apascentar o seu rebanho guardado a meias. Estes prados (6 parcelas separadas) são aproveitados exclusivamente para a pastagem de ovelhas e não para animais de tiro. Eduardo e Felícia acrescentam aos dois pequenos lameiros desta última (0,37 hectares no total) um outro com 0,83 hectares, arrendado da pequena agricultora Sância; estes prados são utilizados para alimentar a mula e os porcos da casa, visto que a exploração não atinge a extensão necessária para sustentar uma junta de vacas. Para poderem lavrar a sua pequena superfície de terra arável (1,71 hectares) Eduardo junge a sua mula à do pequeno agricultor Matias. A mãe de Eduardo, casada e viúva por duas vezes, não possui terra própria (os seus maridos eram ambos pequenos agricultores), mas serve-se de uma pequena cortinha de 0,02 hectares emprestada por Felícia.
83A lavoura da casa de Eduardo é muito mais pequena do que a de André, e exígua em comparação com as de Valentim e Bernardo. A principal fonte de recursos de Eduardo provém do rebanho de ovelhas que ele guarda para D. Sofia; os proventos da venda destes animais são divididos equitativamente entre Eduardo e D. Sofia, e esta, por seu lado, partilha a sua metade com o meeiro Fortunato. A venda de 30 grandes ovelhas e de 12 pequenas, efectuada por Eduardo em 1977, rendeu 111 500 escudos. Deste total, já bem inferior aos rendimentos anuais do proprietário Valentim, Eduardo guardou apenas metade (55 750): uma grande parte desta quantia foi utilizada para pagar dívidas. Os rendimentos obtidos por Eduardo como jornaleiro totalizaram naquele ano apenas 6000 escudos, correspondentes a 30 dias de trabalho pago a 200 escudos por dia. Para além daqueles valores, Eduardo e Felícia recebem abono de família por dois dos três filhos (aqueles com menos de 14 anos de idade) no valor de 240 escudos mensais, o que corresponde a 5760 escudos anuais. Os rendimentos totais de Eduardo no ano de 1977, incluindo as vendas de ovelhas, as jornas e os abonos de família, atingiram pois 67 500 escudos. Sem considerar a venda de gado lanígero, este fogo obtém rendimentos substancialmente inferiores (11 750 escudos) aos da casa do lavrador Lourenço (50 000 escudos).
84Quando, em meados de 1978, D. Sofia decidiu vender todo o seu rebanho, houve uma discussão acalorada entre Eduardo e o meeiro de D. Sofia, Fortunato («vizinho da porta» de Eduardo-Casa 23). Eduardo tinha guardado durante um ano o rebanho de D. Sofia; de modo a poder restituir a esta o capital inicial (112 000 escudos), ele próprio vendeu grande parte do rebanho e reembolsou-a de 109 000 escudos, reservando para si um pequeno rebanho. Uma vez efectuada esta transacção, D. Sofia proibiu-o imediatamente de apascentar o rebanho (de 30 cabeças) nos seus 2,17 hectares de lameiro, dantes utilizados para o pasto do grande rebanho comum. Em termos legais, D. Sofia actuou correctamente; no entanto, Eduardo ficou desgostoso porque o feno proveniente dos 2,17 hectares de prados foi dado ao meeiro de D. Sofia, Fortunato, com quem Eduardo e a mulher já se davam mal. A mulher de Fortunato (oriunda de uma casa de lavradores abastados) começou então a escoar a água do seu telhado para os estábulos de Felícia, levando-a quase a cortar todas as relações. Sem a sua principal fonte de rendimentos (um grande rebanho) Eduardo foi obrigado a recorrer mais frequentemente a trabalhos à jeira.
85O caso foi considerado, por muitos aldeãos, um abuso por parte dos proprietários abastados, lesando pequenos agricultores. Também foi muito comentado o favoritismo de D. Sofia para com o seu meeiro, já muito criticado para cobrar taxas exorbitantes pelo aluguér/hora do seu tractor, correspondendo uma hora apenas a cerca de 50 minutos de trabalho efectivo. Por outro lado, alguns vizinhos apontaram o erro de Eduardo em não pedir que o acordo oral fosse confirmado por contrato escrito, garantindolhe o usufruto dos lameiros de D. Sofia após a divisão do rebanho comum. Outros habitantes repetiam o dito nunca sirvas a quem serviu: tanto a mãe de D. Sofia como Fortunato tinham sido, quando jovens, criados adoptados pela casa do pai de D. Sofia. Estavam, assim, menos inclinados a oferecer ou cooperar do que a «apanhar» ou «explorar»17.
86Existem laços de parentesco entre o grupo doméstico de Eduardo e o do lavrador André. Os dois meios-irmãos de Eduardo (pelo primeiro casamento da mãe) emigraram, um para França e outro para a Alemanha: este último é Lúcio (3g), marido da filha de André, Lídia (3h). (Note-se que André figura duas vezes na Geração 4.) Os dois irmãos germanos e as duas irmãs germanas de Eduardo (não incluídos na figura) saíram de Fontelas. dois foram para Espanha, um para a vila próxima e outra para Lisboa. O próprio Eduardo (3e) tentou emigrar para França após o seu matrimónio com Felícia, mas a morte da mãe desta trouxe-o de novo para Fontelas, impedindo-o de regressar a França. Dos sete irmãos, Eduardo foi pois o único que ficou na aldeia.
87Na sequência do incidente atrás descrito, vários outros acontecimentos durante o ano de 1978 mergulharam a casa de Eduardo numa série de contrariedades que culminaram com o trágico suicídio da sua mulher. A filha de Eduardo e Felícia, Clara (2b), começou em 1977 uma relação amorosa com Cesário (2a), jovem pequeno agricultor de uma povoação vizinha que recentemente entrara para a Guarda Republicana. Embora o seu futuro casamento fosse mencionado pelos outros vizinhos, nenhum dos dois aludia a planos concretos. Nos fins de 1977 tomou-se evidente a gravidez de Clara, os aldeãos fizeram-lhe notar a sua posição delicada, dizendo-lhe que, tendo em conta a gravidez e os seus parcos bens, deixara de ser uma noiva aliciante para Cesário e, com mais razão, para qualquer outro pretendente. A criança nasceu ilegítima, mas o caso não provocou qualquer escândalo particular na comunidade. Clara continuou a viver na casa dos pais e a criança recebeu o nome da avó, Crusanda. Na realidade, o bebé foi baptizado nestas condições, embora o pai fosse a única pessoa que veio da sua povoação para assistir à cerimónia. O próprio baptizado não foi menos opulento e festivo do que o de qualquer criança nascida legitimamente. O casamento realizou-se apenas meses mais tarde, tendo ambos os cônjuges continuado a viver na casa dos respectivos pais, nas aldeias natais.
88As visitas de Cesário à casa dos pais de Clara tomaram-se mais frequentes e os dois casais, juntamente com os dois filhos mais novos de Eduardo e Felícia, passaram muitos serões de Inverno à lareira nos princípios de 1978. A certa altura, contudo, Eduardo fez constar que descobrira a mulher, Felícia, e o genro, Cesário, sozinhos, abraçando-se e beijando-se junto ao lume. Incrédulo com o que via, Eduardo gritou, enquanto Felícia imediatamente fugia da casa com Cesário, atravessando a fronteira de Espanha e dando assim «provas da sua culpa». No dia seguinte, Eduardo, com alguns parentes, seguiu-os para lá da fronteira, descobrindo-os numa das principais cidades da província de Orense.
89Os acontecimentos que se seguiram não podem ser interpretados como «crimes de honra», se bem que Eduardo mostrasse a pistola que trazia e tornasse clara a intenção de a usar, caso Cesário voltasse a Fontelas. Felícia voltou para casa e continuou a viver com o marido; embora se soubesse que durante longos meses discutiam em altos gritos, os poucos relatos de violências físicas entre os dois não passaram de mexericos. As opiniões dos moradores variaram, quer acusando Felícia por admitir a sua culpa ao fugir para Espanha com o genro «para lá dormir com ele», quer culpando Eduardo, de quem se dizia ter imaginado toda a cena num momento de «loucura». Esta última explicação tinha pouco fundamento dada a reputação passada de Eduardo como pastor honesto, calmo e respeitável. Por outro lado, ninguém acusou particularmente Cesário, dado que os supostos avanços a Felícia eram compreensíveis tendo em conta os seus contactos frequentes e a proximidade das idades. Eduardo e Felícia continuaram a morar juntos durante muitos meses, enquanto a filha Clara foi para casa dos pais de Cesário na aldeia destes, não tendo havido qualquer ruptura nos dois matrimónios. Embora os habitantes especulassem sobre o assunto, Eduardo e Felícia não dividiram os bens (tanto a casa como a propriedade pertenciam a Felícia) nem se separaram, nem sequer Eduardo exigiu que Felícia abandonasse o lar. Sabia-se no entanto que o casal, durante algum tempo, dormia na mesma cama com as cabeças em extremidades opostas.
90Por esta altura, os aldeãos começaram a notar que «o adultério era comum na família». A própria Felícia era a segunda filha adulterina da tecedeira Crusanda (4c) e do ferreiro Justino (4d) (irmão de André). Vimos anteriormente que Crusanda também tinha tido uma filha adulterina de André. Crusanda fora casada com um dos proprietários da grande Casa do Conselho (Porfírio: 4a), mas lembramos que menos de um ano após o casamento civil o marido deixou-a, indo residir para o Brasil: alguns vizinhos pensam que ele morreu lá, ao passo que outros crêem que ainda é vivo. O casal teve um filho, Gonçalo (3a), que morreu com a idade de 18 anos. Consequentemente, Felícia foi a única de dois meios-irmãos e de dois irmãos germanos que sobreviveu. Dos três irmãos, um era filho legítimo (o meio-irmão Gonçalo), outro era filha adulterina (sua meia-irmã) e o terceiro filho adulterino (o seu irmão germano. Albino). Felícia herdou, assim, toda a propriedade (que não era particularmente grande) de sua mãe, mas nenhuns bens do marido da mãe, Porfírio, bens esses actualmente na posse dos proprietários da Casa do Conselho (Figura 2: 3d, 3f, 3h).
91Além disso, pouco antes do seu casamento, Eduardo teve uma filha ilegítima (Amélia) da lavradora Glória (3f). Glória sofreu um ataque de meningite em criança e, devido a essa doença, ficou surda e não consegue falar bem. Ela vive presentemente em casa da mãe (a lavradora Cristina). Eduardo recusou-se a perfilhar a criança, e o caso foi a tribunal; embora não fosse possível provar que Eduardo era o pai, ainda hoje os aldeãos referem a sua parecença física com Amélia. Tanto Glória como os seus familiares cortaram relações com Eduardo.
92Lembramos que Felícia tem dois outros meios-irmãos nascidos da união consensual do seu pai natural com a espanhola Cármen (ver Figura 5). As relações entre Felícia e o pai, Justino, são distantes e esporádicas — este nunca a perfilhou. Por sua vez, o próprio Justino teve dois filhos de Cármen (Ramón e Hortênsia). Em 1978, Hortênsia provocou outro escândalo na vila, onde ela e o marido exploravam uma pensão e um restaurante. Consta que, uma noite, Hortênsia foi apanhada pelo esposo com outro homem e que fugiram os dois, embora ela tivesse voltado para casa, partido de novo alguns meses mais tarde e finalmente regressado. O seu segundo regresso, no momento em que o marido introduziu o pedido de divórcio no tribunal, impediu a ruptura do matrimónio. Este segundo caso de adultério provocou um alvoroço muito maior do que a fuga de Felícia com o genro, devido à posição mais destacada deste casal na vila, sede do concelho.
93Estes dois casos de infidelidade conjugal destas «mulheres de Fontelas» (ambas meias-irmãs) criaram uma reputação pouco digna para a povoação em 1978. Em 1979, estando eu em Londres, comunicaram-me por carta que Felícia se tinha suicidado numa das suas leiras, ingerindo um frasco de pesticida para batatas. A filha de Eduardo, Clara, reside actualmente na aldeia natal do marido, em casa dos sogros, deixando exclusivamente ao seu pai a tarefa de criar os dois filhos mais novos em Fontelas. Sabe-se que Eduardo se mudou recentemente para a casa de uma vizinha (Casa 24), a pequena agricultora Bernarda18, também ela mãe de quatro filhos ilegítimos de três pais diferentes.
94Estes incidentes mostram não só a frequência das uniões «irregulares» (e nalguns casos adúlteras) neste grupo, mas também a natureza frágil dos laços matrimoniais entre as camadas mais pobres; ambos os aspectos se relacionam com a carência de bens e com a posição inferior destas famílias na escala social da comunidade. Ao passo que entre os proprietários abastados o casamento implica a posse, por um (ou ambos) dos cônjuges, de enormes extensões de terra e de elevado prestígio social, nenhum destes factores é pertinente entre os pequenos agricultores. Na ausência de propriedade, o prestígio destes não é tão salvaguardado como o dos membros dos grupos superiores. Quando esse prestígio mínimo é posto em causa, ou, como no caso de Eduardo e Felícia, inteiramente minado, aos pequenos agricultores só resta cair ainda mais baixo na hierarquia social.
5. A CASA DE ENGRÁCIA
95A casa de Engrácia é uma das mais pobres de Fontelas por diversas razões (Mapa 3 — Casa 44). A área da sua exploração agrícola, incluindo a terra que arrenda de outros, perfaz apenas 2 hectares, e mal chega para a sua subsistência e para a dos dois filhos que moram com ela; esta área encontra-se muito aquém do mínimo indispensável para se manter uma junta de vacas. Sendo a quarta de sete irmãos ilegítimos, a parte herdada por Engrácia do já pequeno património de seus pais foi diminuta. Tendo recebido apenas 0,66 hectares de terra, Engrácia arrenda do pequeno agricultor Vitorino um lameiro, uma cortinha e uma leira que totalizam 0,29 hectares (Nota c do Quadro 5). Além disso, a sua meia-irmã Helena empresta-lhe um campo de 0,13 hectares. Juntando todas estas minúsculas parcelas, Engrácia ainda assim cultiva uma propriedade de área inferior à média das explorações dos pequenos agricultores (2,5 hectares).
96O irmão mais velho de Engrácia, o lavrador Elias, realiza as poucas tarefas de lavra de que ela necessita e empresta-lhe uma das suas pequenas cortinhas de 0,02 hectares. Em vez de trocar o seu trabalho com parentes ou outros vizinhos, hipótese impraticável dada a dimensão da sua propriedade, Engrácia oferece-se para ajudar nas colheitas das casas mais ricas em troca de uma refeição e de algumas pequenas dádivas em comida e vinho; ocasionalmente recebe uma jorna. Conta ainda com 240 escudos por mês de abono de família por cada um dos três filhos mais novos (com idades de 16, 13 e 10 anos, respectivamente). A maioria das restantes tarefas são executadas pelos outros irmãos e irmãs a título de favor. Nenhum dos filhos que moram com ela tem ainda idade para lavrar e os outros dois vivem noutros bairros da povoação. Mesmo quando puderem lavrar e participar noutras actividades agrícolas mais pesadas, nenhum dos quatro filhos de Engrácia conseguirá sustentar uma junta de vacas naquela minúscula propriedade sem o empréstimo, o arrendamento ou o arroteamento de, pelo menos, mais 4 hectares de terra.
97A casa onde Engrácia nasceu (Casa 47) situa-se noutra secção da aldeia, e nela continuam a viver em comum a irmã mais velha, Júlia (2b), e os irmãos mais novos Claudina (2h) e Inocêncio (2j). O irmão mais velho, Elias (2d), reside noutra zona do lugar. Elias permaneceu na casa natal durante aproximadamente seis anos após o casamento com a pequena agricultora Leocádia (2e), só passando a viver com os sogros (Casa 21) depois da morte do pai e da mãe e a subsequente partilha da propriedade. (Foi também nesta altura que Engrácia deixou a casa natal para ir viver no seu próprio lar.)19 Os irmãos de Engrácia são também lavradores, se bem que se vejam forçados a arrendar uma grande porção de terra (2,63 hectares) para acrescentar às suas próprias parcelas, que em conjunto somam apenas 4 hectares.
98A irmã mais velha de Engrácia (a falecida Marcelina: 2a) foi em tempos jornaleira em Fontelas, como o tinham sido os pais de Engrácia e ambas as avós (4a/4d). Somente um dos cinco irmãos ainda vivos de Engrácia (o penúltimo — Antónia: 2i) emigrou, não pensando em voltar; Antónia casou com um lavrador da vila próxima e os dois vivem hoje em França. Na casa natal, a irmã mais velha de Engrácia, Júlia, é pastora, enquanto Inocêncio faz a lavra e os trabalhos agrícolas pesados e Claudina a maioria das tarefas domésticas e refeições. Tanto Engrácia como Elias visitam assiduamente a casa onde nasceram e as fainas das colheitas, bem como as festas familiares, são frequentemente realizadas em conjunto. Tanto Júlia como Claudina tiveram filhos bastardos que vivem com elas: Hermenegildo (1b) — um dos três filhos ilegítimos de Júlia, e David (1j) — filho natural de Claudina. Engrácia, por seu lado, teve quatro filhos ilegítimos de quatro pais diferentes. O mais velho (Roque: 1 f) é criado numa casa de lavrador abastado, enquanto o terceiro (Vicente: 1h) vive na casa natal de Engrácia com os tios. Por último, Albina (1a), filha ilegítima da irmã mais velha de Engrácia, Marcelina, passou a viver com as tias em finais de 1977.
99Os casos de ilegitimidade de Engrácia e das irmãs são típicos do grupo de pequenos agricultores e particularmente do antigo grupo de jornaleiras solteiras de Fontelas. No Capítulo 5 examinaremos detalhadamente estes aspectos, mas neste momento só pretendo assinalar a ligação entre a ilegitimidade, as pequenas explorações agrícolas e os grupos sociais mais baixos. Nem Engrácia nem as duas irmãs, Júlia e Claudina, ou o irmão Inocêncio casaram. Elias casou com a pequena agricultora Leocádia (2e), mas tanto ele como a mulher já tinham filhos bastardos antes de casarem: Elias teve uma filha ilegítima, Eulália (1c), da pequena agricultora Bernarda, e Leocádia foi mãe de uma filha ilegítima, Emília (1e), antes do seu matrimónio com Elias. Emília vive na casa da mãe, tratando Elias como padrasto, se bem que, tecnicamente, o vínculo entre Elias e Leocádia não seja de segundas núpcias. A irmã mais velha de Engrácia, Marcelina (2a), teve três filhos ilegítimos do mesmo pai, enquanto Júlia (2b) teve três filhos ilegítimos, cada um de seu pai. O único dos sete irmãos que casou «honradamente» foi Antónia (a segunda a contar do mais novo) que emigrou para França. O irmão mais novo, Inocêncio, ficou solteiro e não tem filhos. Não é provável que alguma das três irmãs residentes em Fontelas se venha a casar e os aldeãos lamentam que Claudina, agora com 41 anos (criada e cozinheira na vila, desde há longos anos), tenha poucas possibilidades de encontrar um marido prestigioso, uma vez que tem um filho ilegítimo.
100A situação de Engrácia é ainda pior: com quatro filhos ilegítimos, as suas hipóteses de casamento são ainda menores agora que se vai tomando mais velha (tinha 45 anos em 1977). O mais novo destes quatro filhos, na realidade, foi o resultado de uma união entre parentes próximos (Figura 7). Vítor é filho de Engrácia e do «meio-sobrinho» desta, Justiniano (com 35 anos em 1977); por sua vez, Justiniano é filho do meio-irmão de Engrácia pelo lado paterno (Lourenço). Embora o seu pai e Engrácia não sejam irmãos germanos, em Fontelas os filhos (legítimos ou não) de meios-irmãos são considerados primos carnais do mesmo modo que o são os primos direitos (filhos legítimos ou ilegítimos de irmãos germanos). Neste caso, através da união com a sua «meia-tia», o lavrador Justiniano é simultaneamente o pai e o primo direito de Vítor20.
101Ao contrário da série de acontecimentos invulgares que ocorreram com Eduardo, e de que falámos anteriormente, a história de Engrácia e dos irmãos é típica do grupo de jornaleiros. Podíamos afirmar aqui que a ilegitimidade não constitui a excepção mas a regra, não só entre os pequenos agricultores como também no caso de alguns lavradores. Herdando pequenas terras e compelidos a tomarem-se criados, cozinheiras e jornaleiros, não só em Fontelas como fora, os descendentes de criados e jornaleiros «reproduzem» ao longo das gerações um padrão de baixo prestígio social e de bastardia. Alguns (por exemplo, Elias) conseguem subir na hierarquia social e alcançar até a posição de lavrador. Outros (o caso de Engrácia) nunca ultrapassam a condição de pequeno agricultor, nunca casam, e são incapazes de ir além de uma produção agrícola insignificante. Impossibilitados de obter quantidades de terra suficientes, muitos dos pequenos agricultores ficam na dependência dos irmãos, ou vendem a sua própria força de trabalho e a dos filhos — a sua situação continua inevitavelmente precária.
102Se bem que todos os pequenos agricultores sejam considerados substancialmente mais pobres do que os dois grupos superiores de proprietários e lavradores abastados, a posição de pessoas como Engrácia é particularmente má. As 16 casas mais pobres deste grupo (1/4 da povoação) possuem em conjunto apenas 4,5% da terra (Quadro 3). Sem meios para alimentar uma junta de vacas e sem a mão-de-obra indispensável no seu grupo doméstico para conseguirem um nível de vida razoável, os pequenos agricultores permanecem no extremo inferior da hierarquia; os aldeãos na situação deplorável de Engrácia mal se destacam do nível de pobreza dos ciganos locais, latoeiros e mendigos. Antes de começar a emigração dos anos 60, a única saída (sobretudo para as mulheres) era tomarem-se criadas numa casa abastada e, com o tempo, esperarem vir a ser adoptadas. Todavia, para além de poucas criadas serem de facto adoptadas por famílias de proprietários, a grande maioria das mulheres do grupo dos pequenos agricultores ficou na situação de Engrácia.
103A emigração não alterou substancialmente este quadro, e os pequenos agricultores são considerados falhados, quer económica quer moralmente; trata-se de um grupo nitidamente marginal, que é deplorado e assistido por parentes, amigos ou outros vizinhos dispostos a ajudá-los com favores de ocasião. O passado destes jornaleiros e criados, no que se refere à dependência e ilegitimidade, deixaram-lhes poucas possibilidades de obter um mínimo de prestígio social. Os mais pobres dos pequenos agricultores não possuem os meios de produção nem a mão-de-obra necessária para a manutenção de uma exploração agrícola ou grupo doméstico capaz de os sustentar. Sentindo-se algo «enganados» pelos grupos superiores dos «ricos», não compreendem claramente nem conseguem explicar coerentemente como chegaram a esta situação.
104Normalmente, os pequenos agricultores que cultivam entre 3 e 6 hectares têm a possibilidade de variar em diferentes alturas entre, por um lado, o trabalho à jorna e o pastoreio a meias e, pelo outro, o cultivo das suas próprias terras. Trata-se de uma posição de flexibilidade parcial sublinhado por Cabral (1976) muito mais característica de um semiproletariado do que de um campesinato com terra21. Para além disso, os pequenos agricultores mais pobres (com menos de 3 hectares) constituem o subgrupo mais desamparado na escala social; nem a emigração dos anos 60 nem a Revolução de 1974 ofereceram a este grupo soluções satisfatórias.
Notes de bas de page
1 Refiro-me aqui, concretamente, à visão que os grupos mais pobres têm da sua posição no interior da comunidade aldeã, e não ao sentido mais amplo da «posição subalterna do campesinato» face ao Estado (Shanin 1973: 15). A dominação dos camponeses pelos «de fora» (decerto evidente em Fontelas) não deve obscurecer aspectos paralelos de domínio por parte dos «de dentro»; entre muitos dos pequenos agricultores do lugar, deparamos com uma forma algo diferente de posição subalterna e «percepção de inferioridade» relativamente aos proprietários abastados. Até há bem pouco tempo, estes agricultores ocupavam a posição de jornaleiros dentro da aldeia e de trabalhadores migrantes e temporários em outras zonas da província de Trás-os-Montes. Este modo de vida definiu-os mais propriamente como semiproletários com mobilidade do que como camponeses independentes com terras próprias.
2 Comparando este total com a dimensão das grandes herdades latifundiárias do Sul de Portugal (Cutileiro 1977:54), a área de terra possuída em toda a povoação de Fontelas é equivalente à de uma única propriedade de um latifundiário em Vila Velha!
3 Na sua análise das explorações agrícolas na aldeia castelhana de Valdemora, Susan Tax Freeman também exclui as propriedades dos emigrantes (Freeman 1970:17).
4 Compare-se este total com as áreas muito maiores de terra cultivada na vila de Pisticci no Sul de Itália (22 216 hectares), em Genuardo na Sicília (13 648 hectares), e em Vila Velha no Sul de Portugal (8900 hectares) (ver Davis 1977:82-4). Em termos de dimensão, mais relevante seria a comparação com os totais de terra cultivada na vila de Belmonte de los Caballeros na Espanha Central, com 2182 hectares (Lisón-Tolosana 1966:20), e em Valdemora com 87,61 hectares (Freeman 1970:17). Na realidade, Fontelas apesenta características estruturais muito mais comparáveis às das duas comunidades espanholas anteriormente referidas do que às da freguesia alentejana de Vila Velha.
5 O funeral de Simão, em 1977, foi particularmente triste; não tinha qualquer parente em Fontelas ou nas proximidades (uma parente afastada foi chamada de Espanha para assistir ao enterro) e alguns aldeãos referiram-se à sua abjecta pobreza e falta de higiene. Um comentário evocou um dito popular local, referindo-se a algumas pessoas que são tão descuidadas que parece terem tomado «apenas dois banhos durante toda a sua vida — o primeiro quando foram baptizadas e o segundo quando morreram».
6 Na França rural, Marc Bloch sublinhou um contraste semelhante entre camponeses «lavradores» (laboureurs) e trabalhadores manuais (manouvriers): «Desde a Idade Média observamos uma separação bem nítida entre as duas categorias de camponeses: por um lado um grupo (claramente o mais abastado) com juntas de animais de tiro — cavalos, bois ou burros — e por outro os que não tinham mais do que a força dos seus braços. A antítese surgia entre os cultivateurs (camponeses que possuíam ‘cavalos para o seu trabalho’) e os trabalhadores manuais, laboureurs de bras, brassiers ou ménagers. As listas medievais de serviços de trabalho (corvées) faziam uma cuidadosa distinção entre os dois grupos... é óbvio que a clivagem essencial se dava entre os brassiers (trabalhadores manuais) e os laboureurs» (Bloch 1978:193-4).
7 Uma vez mais, a comparação com Vila Velha é reveladora; a palavra «seareiro», que tem parecenças com a palavra inglesa sharecropper, é utilizada nesta última comunidade (Cutileiro 1977:69-75), mas é completamente desconhecida em Fontelas.
8 As duas casas de proprietários com tractores e outra maquinaria agrícola são frequentemente designadas pelos outros vizinhos, num tom algo jocoso, como os capitalistas da aldeia.
9 Se bem que a palavra seja a mesma que a utilizada em Vila Velha para o grupo social que se situa entre os latifundiários mais ricos e os seareiros mais pobres (Cutileiro 1977:63-9), ela reveste-se em Fontelas de um significado completamente diferente. Tanto hoje como no passado, os proprietários desta aldeia ocuparam as posições mais elevadas na comunidade em termos de riqueza e prestígio social. Embora não sejam proprietários absentistas, são em alguns aspectos mais comparáveis com os latifundiários do que com o grupo menos rico de proprietários de Vila Velha. Contudo, o fosso que divide os latifundiários das massas de trabalhadores rurais sem terras em Vila Velha é, obviamente, menos profundo numa comunidade tão pequena como Fontelas.
10 Qualquer pessoa que tenha concluído um grau universitário é automaticamente chamada Doutor ou Doutora pelos aldeãos. A designação Dona é empregue para mulheres que não estudaram na Universidade mas que, não obstante, têm escolaridade mínima; é também uma designação de respeito utilizada para mulheres de estatuto social mais elevado (casadas ou solteiras) e particularmente as que pertencem ao grupo dos proprietários.
11 Esta forma de residência natolocal (Fox 1978) é outro indicador da importância dada em Fontelas às relações «verticais» de descendência e filiação em oposição aos laços matrimoniais «horizontais» (Capítulos 6 e 7). Este último laço é ainda menos firme entre os grupos mais pobres, devido à inexistência de quantidades avultadas de terra. A formação de uma nova casa, e a residência neolocal, não são a regra em Fontelas, embora sejam por vezes referidas como ideais: o sistema de herança por partilhas depois da morte e a ausência de dotes de casamento favoreceram, em conjunto, a residência natolocal, uxorilocal e virilocal. Susan Tax Freeman relata uma forma semelhante (menos prolongada) de residência natolocal para a aldeia de Valdemora, onde ambos os cônjuges, por costume, ficam durante um ano com os respectivos pais até que se realize a primeira colheita (1970:75-7). Enquanto legalmente a partilha de uma propriedade em Fontelas pode decorrer após o falecimento de um dos pais, esta prática é mais rara do que a partilha posterior na sequência da morte dos dois. Tanto a partilha adiada como a residência natolocal apontam para estratégias que têm como objectivo manter intactas a casa natal e a propriedade, em termos de fonte de mão-de-obra e da conservação de um património unificado.
12 As tendências partidárias também variam consoante os grupos sociais. Encontrava-me em Fontelas quando da realização de três eleições nacionais importantes: em 25 de Abril de 1976 para a Assembleia da República, em 27 de Junho de 1976 para a Presidência da República, e em 12 de Dezembro de 1976 para as Autarquias Locais. Na altura de duas destas eleições (25 de Abril de 1976 e 12 de Dezembro de 1976) as discussões na aldeia indicavam uma tendência geral na preferência de partidos: de um modo geral, o grupo dos proprietários apoiava o Centro Democrático Social (CDS), alguns dos lavradores abastados o Partido Popular Democrático (PPD), e um certo número de lavradores e pequenos agricultores o Partido Socialista (PS). Poucos votos na freguesia foram dados, em qualquer das três eleições, a candidatos do Partido Comunista Português (PCP) ou aos partidos da extrema-esquerda (consulte-se Ministério da Administração Interna 1976 e 1977).
13 Devo esclarecer aqui que nenhuma das minhas referências à ilegitimidade e outras relações análogas deverá ser considerada como um julgamento moral sobre o comportamento quer dos indivíduos em questão (em vida ou mencionados nos Registos Paroquiais) quer do seu grupo social ou aldeia. Os problemas em estudo são realidades com variadas raízes históricas e sociológicas que tentei aprofundar com a maior objectividade possível.
14 Nem todos os matrimónios entre indivíduos aparentados com o grupo doméstico em questão foram incluídos nestas genealogias; por exemplo, Bento (3a) casou e teve filhos e netos. As ocupações são as actuais ou as registadas nos documentos paroquiais ou administrativos.
15 Emprego a palavra companheiro(a) para referir qualquer dos membros de uma «união consensual». Havia quatro uniões deste tipo em Fontelas em 1976-78, e os documentos paroquiais fornecem-nos ainda outros casos em épocas passadas. Note-se, porém, que o termo não é utilizado na aldeia: os habitantes dizem destas pessoas que são amigadas, amantizadas ou simplesmente que juntaram-se. Apenas o clero local e algumas famílias de proprietários (referindo-se a estes indivíduos como amancebados) encaram este tipo de relação de maneira depreciativa; para todos os efeitos, os outros moradores aceitam estas uniões em pé de igualdade com as que derivam do casamento legal.
16 A adopção formal em Fontelas é extremamente rara, mas existem alguns casos de adopção «social» de criados por proprietários. Neste caso, Gracinda tomou-se «como que uma filha» em relação a D. Elvira embora nenhum processo jurídico de adopção tivesse tido lugar. O irmão de Gracinda (Mateus) é, contudo, afilhado de D. Elvira — portanto, a ligação patrão/criada existente entre D. Elvira e Gracinda alargou-se, no caso de Mateus, a um parentesco espiritual. Na ausência da adopção legal, os criados de longa data não podem herdar bens directamente dos patrões a par dos herdeiros legítimos, mas podem ser recipientes de uma parte do património através de um testamento.
17 A subida de Fortunato do estatuto de criadito ao de administrador de uma casa de proprietários é visto pelos outros aldeãos com grande desconfiança. Esta atitude é, por si só, outra evidência do funcionamento de uma hierarquia social que coloca grande ênfase na posição social atribuída (ascribed status) em função da posse da terra, relegando para segundo plano a posição social alcançada (achieved status) através dos esforços pessoais.
18 Foi-me possível observar esta mudança de residência durante uma visita breve à aldeia, em Março de 1981: o marido de Bernarda, Matias (do qual ela não teve qualquer criança), morreu em 1979. Ao longo deste estudo utilizo o termo «relação irregular» (irregular union), embora com algumas reservas, para refèrir uma união que compreende características de certa maneira anómalas relativamente aos modelos oficiais e eclesiásticos: inclui-se nesta rubrica tanto laços de coabitação permanente como ligações sexuais temporárias. Assim, a palavra irregular não implica nenhuma forma de frequência temporal, mas antes é empregue para evitar os adjectivos «ilegítima», «ilícita» ou «anormal».
19 Esta forma de residência natolocal parece estar infimamente ligada à transferência de propriedade, realizada unicamente post-mortem em Fontelas. Voltarei a este tema no Capítulo 6.
20 A relação pai/filho é, neste caso, a mais frequentemente usada para referir o laço entre Justiniano e Vítor. A relação é contudo distante — não se realizam quaisquer celebrações ou festas em conjunto, e não existem trocas entre as duas casas. Nem mesmo as relações entre Engrácia e Lourenço (meios-irmãos consanguíneos) são particularmente íntimas.
21 Não sendo proletários sem terra, dependentes do salário de um ou mais membros do agregado doméstico, os jornaleiros poderiam, em tempos críticos, recorrer às suas minúsculas propriedades e fazer trabalhos ocasionais e suplementares pagos à jorna. Não eram, pois, nem camponeses que vivessem totalmente de terra própria, nem proletários rurais tout court dependentes predominantemente do trabalho assalariado; os jornaleiros combinavam, em vários graus, ambas as formas de trabalho. Eram assim mais «semiproletários» do que camponeses em sentido restrito. Este grupo dispunha de poucos meios materiais (terra, equipamento ou mãode-obra) que lhes permitisse atingir o nível de lavradores. Dificilmente seriam camponeses «agarrados aos seus diminutos pedaços de terra» porque a sua relação com essa terra foi, logo de início, provavelmente muito ténue.
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