Comentários finais1
p. 165-170
Texte intégral
1Como concluir três dias de comunicações e debates que nos levaram de África à França, passando, como não poderia deixar de ser, por Portugal e por Lisboa? Aliás, será realmente necessário concluir, e correr o risco de ser redundante, quando já o fizeram com talento uns e outros, com palavras suscitadas pelas investigações vivas que são as suas neste momento? E que, como investigadores competentes que são, não se limitam a apresentar conclusões mas abrem novas pistas de investigação. No final deste colóquio, quem poderá afirmar o contrário?
2Ao historiador que sou, sempre foi familiar a abordagem antropológica. Esta foi aliás utilizada, e com sucesso, para as cidades do Antigo Regime por investigadores como Arlette Farge, Daniel Roche e tantos outros. E eis aqui hoje, ainda desconhecidos, pois apenas iniciam as suas carreiras, Alexandre Nugues-Bourchat e Roland Bizien com trabalhos sobre as cidades de Lyon e Brest do século xix respectivamente.
3A composição do público deste colóquio que agora termina não deixa de demonstrar que o encontro entre as duas disciplinas está mais desenvolvido em Portugal do que em França, onde permanecemos enleados em oposições, onde é raro que os etnólogos convidem os historiadores a participar nos seus trabalhos e vice-versa. Aqui estão reunidos há três dias para o melhor, porque de onde quer que venham é o mesmo objecto que os ocupa, seguindo as pisadas da Escola de Chicago, que se aplicou, desde as suas origens, a esclarecer “o caos das cidades vivas”, retomando ao historiador-sociólogo norte-americano Charles Tilly uma fórmula de Bertold Brecht. No decorrer dos debates eu próprio me senti dividido entre as duas abordagens, perante o mundo complexo da cidade vista da rua, que se encontra em incessante mutação quando se esperava enfim apreendê-la e compreendê-la. A realidade, se é que esta palavra faz sentido, escapa-se no preciso momento em que temos a impressão de nos apoderar dela. E é sem dúvida necessário reflectir sobre a relação entre as duas disciplinas e o decurso do tempo. Mas por ora a minha ambição é mais modesta, fica entre a referência às comunicações e alguns comentários de historiador insatisfeito.
4Por um lado, encontram-se aqui investigadores que decidiram servir-se da rua para pôr um pouco de ordem onde esta não existe. Já não se fala do bairro, que foi durante muito tempo o espaço privilegiado das análises urbanas. Talvez por este ter demonstrado, no final, os limites de um espaço escolhido, justamente devido ao seu carácter invertebrado, estendendo-se para lá das fronteiras administrativas até ao nível das vivências dos seus habitantes. Todos os estudos de bairro, e são inúmeros de ambos os lados do Atlântico pois a cada instante se inicia um novo, acabaram por demonstrar a esterilidade dessas abordagens. “Abandonemos o bairro sem dó nem piedade”2, pois há muito que estes estudos tendem a encerrar-se numa tautologia que confunde hipóteses de trabalho e conclusões. Quantos estudos partem laboriosamente à procura do bairro, para finalmente, após terem mobilizado investigadores de todos os quadrantes, desde historiadores a geógrafos, a sociólogos, etc., concluírem que este não existe? O que não impede que, no decorrer do processo, se tenha constituído uma grelha de conhecimento das populações urbanas perfeitamente frutífera. Então, esquecese o bairro? E “viva a rua”?
5Não seria a rua, noutro contexto histórico, um desses “não-lugares” de que fala o etnólogo Marc Augé, sem função específica, onde não se vive, e que não tem verdadeira identidade? De facto, a rua, tal como a conhecemos e a vivemos hoje, é o resultado de uma longa história, específica do mundo ocidental e caracterizada por símbolos e sistemas de organização próprios e por uma toponímia complexa. E sabemos até que ponto o ocidental se vê desorientado quando não os encontra nas cidades japonesas ou chinesas, onde obedecem a princípios diferentes, nas cidades do mundo árabo-muçulmano onde as casas não são viradas para a rua, que assim deixa de ter existência real, pois é para o espaço privado que se converge e é nele que se vive. E como fazer numa cidade onde as ruas não têm nomes e as casas não têm números?
6Tanto assim é que toda a história das cidades ocidentais se encontra marcada pelo esforço incessante de reforçar o edificado pela armadura hierarquizada das ruas. No início, e durante muito tempo, predominou o cruzamento do “cardo” e do “decumanus” sobre o qual se alinhavam as vias secundárias. É da leitura desse plano primitivo que nasce o plano “alexandrino” que, apesar de nem sempre ser respeitado, não deixa de ser adoptado, quer se trate de uma nova cidade ou de uma simples reordenação. A partir do “campo”, cujo modelo não é apenas africano mas sim uma forma espontânea de reagrupamento dos neo-citadinos. Contra a desordem, a organização viária de vocação universal de tipo alexandrino, ilustrada pelo Marquês de Pombal na reconstrução do centro de Lisboa quando este foi destruído pelo terramoto. Mais comummente, os arquitectos e os urbanistas europeus exportam o modelo, que se torna universal, e se dissemina pela América do Sul, posteriormente pela América do Norte e pelas ndias inglesas, até hoje, e para o pior. Vejam a Bucareste de Ceausescu e a futura Pequim dos Jogos Olímpicos.
7A rua é assim, bem antes dos ordenamentos sofisticados da modernidade, uma ferramenta do poder tanto mais fácil de exercer quanto os seus instrumentos são simples: é mais fácil impor a ordem em ruas que se cruzam em ângulos rectos do que no emaranhado de ruas característico das cidades medievais. Num primeiro momento, tratou-se simplesmente de acomodar populações recém-chegadas que se amontoavam umas a seguir às outras. Vimos a importância dos “campos” africanos, mas eis que surge o vilarejo do Far West, popularizado por toda uma tradição cinematográfica. Sem ruas mas com trilhos poeirentos vindos de nenhures e que se dirigem tão só para o deserto, ou seja, para o vazio; mas onde as casas e os hangares acabam por se alinhar, esboçando o que serão no futuro as ruas. Será possível encontrar melhor concretização da definição de cidade avançada pelo historiador do urbanismo François Loyer, o edifício e a rua, mesmo tendo esta sido formulada a partir do exemplo francês?
8No fim do século xix o governador-civil de Briey, numa Lorena transtornada pela industrialização, evoca igualmente o Far West para falar das populações desordenadas vindas um pouco de toda a parte com as suas doenças do corpo e do espírito. Este espaço sem pontos de referência foi, de facto, o primeiro local de vida dos operários da indústria, vindos de longe para as bacias hulhíferas das Ilhas Britânicas e do Norte de França, antes de terem vindo povoar as periferias das grandes cidades, nesses subúrbios da miséria e da anomia que se limitam a amontoar homens e actividades, uns em cima dos outros. Na cintura vermelha de Paris em 1945, os propagandistas comunistas não se conseguiam encontrar na balbúrdia urbana. Uma situação que é, aliás, a das favelas da América Central e, um pouco por todo o lado, como na França dos anos 1950, a dos bairros de lata. Pois a autoconstrução foi a norma para as populações deslocadas pelas mutações económicas e sociais em curso desde meados do século xix. Para elas, o aparecimento da rua é uma ruptura fundamental, da qual os habitantes são os primeiros agentes, antes mesmo da intervenção, com outras motivações, dos poderes públicos.
9Impondo ordem na desordem, a rua atrai toda uma série de intervenções e outros tantos actores, habitantes ou não. Surgem então os construtores, promotores, investidores, proprietários, todos aqueles para quem a rua significa uma relação com o dinheiro. Um mundo desconhecido e que pode reservar algumas surpresas. Mas também os operários da construção civil, durante a curta duração da construção propriamente dita, e ainda, com os seus cem ofícios, para manter e reparar, os concierges, de quem se conhece o sucesso literário, mais tarde rebaptizados gardiens d’immeubles, etc. Ao serviço, desta vez, de toda a comunidade: os acendedores de lampiões; os homens do lixo; mais tarde, os cantoneiros e todos os que têm a responsabilidade da distribuição e do controle desses novos fluidos, gás ou electricidade, cujas redes tecem uma réplica subterrânea da cidade. Enfim, os carteiros que possuem um conhecimento excepcional dos habitantes de quem separam o correio e, por conseguinte, o classificam, antes de o distribuir.
10Conhecemos mal estas populações, talvez por o seu horizonte não se limitar ao da rua, mas também porque a análise económica que deveria preceder o discurso social e a abordagem antropológica passou de moda? Adivinhamos mais do que conhecemos, mas não nos recusemos esse prazer, é todo um mundo, muito antigo, da loja e da oficina, mais tarde dos teatros, dos cabarets e depois dos cafés, num zunzum de gritos, de ruídos, de arengas cuja natureza e força variam de acordo com a hora (começa-se a saber como era Paris à noite há um século atrás) e o lugar. No fundo, o único verdadeiro homem da rua seria aquele que por ela se passeia. Para o melhor e para o pior, pois a rua é também o lugar das transgressões e de todas as tentações, tão bem encarnado pela figura da prostituta, que é omnipresente e que resume, no debate sobre o seu estatuto, um outro, mais lato, sobre a oposição público/privado entre as meninas da rua e as das casas de alterne. Em Lisboa, claro, mas também em todas as grandes cidades europeias. E eis que surge o último actor da rua: o polícia.
11A acção policial toma precocemente conta do tecido urbano pela regularidade precoce das suas rondas, pela implantação dos seus postos, pela acção dos seus agentes que assim organizam e moldam o espaço-tempo da rua. A história da polícia é uma disciplina ainda jovem, talvez devido ao descrédito paradoxal dos seus agentes. Trata-se de um mundo ainda mal conhecido, que, no entanto, se alargou e intensificou à medida que as ruas se prolongavam. Não é estranho que os historiadores, à distância de cem anos, confiem nos seus testemunhos sem questionar as suas práticas do momento?
12Identificar uma rua, atribuir-lhe (ou reconhecer-lhe) uma identidade: trata-se de uma construção social complexa na qual participam os próprios habitantes, as suas actividades, as suas formas de vida e também toda uma herança, uma história e uma memória. Como compreender de outra forma a inalterabilidade das toponímias? Estas podem remeter para uma paisagem agreste há muito desaparecida, Rue des Lilas, Unter den Linden, quando não para um simples edifício industrial, Rue du Gazomètre. Mas porque se continua a falar da Place du Pont, em Lyon, mais de meio século após esta ter sido rebaptizada Place Gabriel Pérí, nome de um jornalista fuzilado durante a ocupação nazi? E noutros locais, nas cidades mineiras onde a tradição socialista permanece intacta, continua ainda a chamar-se Rue de l’Est ao que se tornou Rue Jean faurès há quase um século.
13Para além destes buracos negros que subsistem na história das ruas, e dos quais aqui se citaram dois exemplos, a rua não deixa de desempenhar com sucesso o seu papel disciplinador, o de impor a ordem onde esta não existia. Contudo, simultaneamente, ela desgasta-se tendendo, inevitavelmente pensamos nós, para o desaparecimento. Não imaginou Le Corbusier, uma das coqueluches urbanísticas dos tempos modernos, uma cidade sem rua, uma sucessão de barras e de torres e que, sobretudo, separaria as diferentes circulações? De facto, há muito que o desenvolvimento dos transportes colectivos e da circulação automóvel tem vindo a ganhar terreno à rua tradicional. A população da rua espalha-se: encontramos, nas caves dos edifícios e nas escadas, os marginais e os jovens dos meios populares; nas praças, nos campos de desporto e de jogos improvisados, etc., outros menos desfavorecidos; até mesmo nas hortas podemos encontrar alguém...
14Será que a rua ainda é a rua? A medida que o tecido urbano cresce, as avenidas, os boulevards e os pátios alargam-se, mas vêem afastar-se, ou mesmo desaparecer, todas as actividades que não a circulação. O automóvel ocupa o espaço e à medida que nos afastamos do centro ele reduz a rua à estrada, da qual é uma espécie de afluente, e que olha para o exterior para uma região plana ou para as redes de auto-estradas onde impera outra confusão. Daqui em diante, podemos distinguir uma cidade antiga, onde a rua desempenha o seu papel tradicional, mas que tem sobretudo uma função de conservação patrimonial; e uma cidade nova, no centro das novas circulações, onde vivem as classes médias em trajectória de ascensão social. Não deixa de ser verdade que, muitas vezes em resultado de vários séculos de história, toda a cidade se encontra encerrada e cingida na teia formada pelas ruas que a atravessam. Mas será isto a rua, a sua contemporaneidade? Ou estaremos em presença dessa “beleza do morto” de que falava Michel de Certeau, um objecto, neste caso um lugar, que só interessa porque vai deixar de existir? Enquanto isso, a rua esvazia-se em benefício de um outro sítio que já nem é o subúrbio. E quem não vê o que tem de irrisório o “mobiliário urbano”, ali colocado pelos poderes públicos, e que é mudo, enquanto que a rua de outrora era ruído e furor.
15No início dos 1920 um companheiro libertário desfilava em Paris pela primeira vez. Réné Michaux, era o seu nome, conta nas suas memórias a felicidade de marchar juntos, simplesmente, ao longo da rua, “com o coração dilatado de amor”! Meio século mais tarde, o historiador militante Eric Hobsbawm descreve a sua participação na última manifestação comunista de Berlim, em Janeiro de 1933, e evoca, mesmo muito tempo depois, o fogo interior que o devorara e que não hesita em comparar com um orgasmo. Recuemos um pouco no tempo para falar de um outro anarquista que, na Belle Époque, mantinha a sua janela aberta toda a noite para ser o primeiro a precipitar-se ao primeiro barulho insólito vindo da rua, que não poderia ser senão o sinal da Revolução.
16É algo paradoxal terminar este texto com a evocação do conceito, supostamente arcaico, de “luta de classes”. Mas a rua de hoje é ainda uma caixa de ressonância política: de facto é ainda na rua que se faz, ou pelo menos que se inicia, a revolução; vejam os movimentos de rua que, na Europa Central e Oriental, precederam a queda do muro de Berlim, e os que lhe sucederam. E em Lisboa, como evitar pensar no tempo dos cravos, se bem que tenha começado noutro sítio? Mais interessante para o historiador político é a forma como, num mundo em que o debate democrático é cada vez mais alargado, a rua não renuncia totalmente ao papel que foi outrora o seu. Ela aparece simplesmente como o último recurso quando a escolha democrática saída das urnas é ameaçada... ou considerada perigosa. Não houve, na Primavera de 2007, em França, militantes que sonharam, em caso de insucesso da esquerda, com uma terceira volta, social, e, forçosamente, na rua? Sabemos o que aconteceu.
17Teremos então de concluir que a rua renunciou ao seu papel político? O último século foi, no entanto, fértil em grandes manifestações, onde se podia ainda morrer: quando se era argelino em Paris no Outono de 1961, ou comunista em Charonne em Fevereiro de 1962. Mas este é também o tempo das manifestações de soberania, em que se sai à rua para apoiar o poder estabelecido. Como interpretar a mobilização de centenas de milhares de homens e mulheres hostis à Frente Nacional em França, na Primavera de 2002? No fim, foi o voto democrático que afastou a ameaça. No entanto esta bela partilha de funções recorda-nos que, outrora, a democracia nasceu na rua.
Notes de bas de page
Auteur
Historiador, Université Lumière Lyon 2.
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