Capítulo 10. A política na rua. Festa liberal e festa contra-revolucionária no portugal do século xix
p. 155-164
Texte intégral
1Se as monarquias absolutas da Europa Moderna investiram na festa enquanto cerimónia pública em que o poder se representava e dava a ver, em conjunto com a hierarquia social do Antigo Regime, as revoluções dos finais do século xviii e do início do século xix não apostaram menos na celebração de festividades públicas que procuraram refundir enquanto espaços simbólico-rituais.
2Os regimes liberais, que se implantaram um pouco por toda a Europa Ocidental na primeira metade do século xix e se institucionalizaram ao longo da segunda, ocuparam-se igualmente em promover novas formas de inscrição da festa no espaço público, concebendo-a como ritual cívico, instância de socialização e identidade política e forma de produção de memória.
3Em Portugal novas práticas e rituais políticos emergiram também com a primeira revolução liberal, a revolução de 1820, que se preocupou desde o início em apoiar a consolidação do regime através de diversas formas de ritualização e celebração de que são exemplo os vários juramentos políticos que as juntas de governo promoveram ainda antes da reunião das primeiras cortes liberais e, sobretudo, os juramentos constitucionais exigidos a todas as autoridades do país, mandados celebrar com “regozijo público”, e que incluíam manifestações de carácter sagrado e profano – desde os Te Deum às iluminações, aos dramas alegóricos e outras representações teatrais.
4As primeiras cortes liberais preocuparam-se igualmente com o estabelecimento de um novo calendário comemorativo e festivo, diverso do das festas religiosas e do das celebrações dos fastos da monarquia, estabelecendo “dias de festividade nacional” destinados a comemorar as datas consideradas fundadoras do novo regime, contribuindo assim para produzir uma outra memória colectiva que se pretendia liberal e nacional.
5Nesse novo calendário comemorativo distinguiam-se os dias mais marcantes da instituição da nova ordem política como os dias 24 de Agosto e 15 de Setembro, datas que celebravam os movimentos militares revolucionários do Porto e de Lisboa, ou o dia 26 de Janeiro, data da primeira reunião das cortes constituintes.
6Apesar do seu carácter revolucionário, o regime vintista não deixou, no entanto, de ser um regime monárquico onde não só os fastos da monarquia continuaram a ser celebrados, mas onde mesmo alguns dos dias do calendário monárquico tradicional foram elevados à nova categoria de dias de “festividade nacional”, como foi o caso do dia do aniversário do rei e do dia do Santo do seu nome.
7Mais do que produzir dois calendários separados tratava-se de nacionalizar alguns dos dias em que a monarquia era celebrada através do seu monarca, consolidando assim o seu carácter constitucional, e também de instaurar outros que, pelas suas características, se destinavam a tornar-se emblemáticos da nova natureza do regime, como era o caso da celebração do dia em que, ainda no Brasil, o rei prestara juramento de fidelidade à futura Constituição.
8A importância político-simbólica desses processos de celebração pública tinha sido bem ilustrada pelas tensões em torno da chegada do rei a Lisboa vindo do Brasil, a 4 de Junho de 1821, momento-chave do vintismo, para o qual Valentim Alexandre chamou pela primeira vez a atenção na obra Os sentidos do Império (Alexandre, 1992), e no qual as questões do protocolo do desembarque do soberano na cidade e do seu percurso até ao Palácio de Queluz, que seguia o regimento das ‘entradas régias” do Antigo Regime, se revelou um momento essencial no confronto de poderes entre o rei e as cortes.
9O investimento das primeiras cortes liberais na festa e na celebração políticas foi acompanhado por outras formas de produção simbólica, como o estabelecimento do azul e branco como “cores nacionais” e a criação do “laço nacional” onde essas cores publicamente se exibiam, laço que todos os cidadãos constitucionais eram convidados a ostentar mas cujo uso era obrigatório para os militares e os funcionários do Estado, e pelos vários hinos “nacionais e constitucionais” que foram compostos e publicamente executados nos curtos três anos de duração do regime. O vintismo apostou, assim, muito claramente, na criação de um forte dispositivo simbólico que Isabel Nobre Vargues foi a primeira a estudar no seu conjunto (Vargues, 1997).
10A ênfase posta pela primeira revolução liberal na simbólica e no ritual políticos não teve uma verdadeira continuidade ao longo dos cerca de 70 anos que a monarquia constitucional durou em Portugal após a vitória definitiva dos liberais sobre os absolutistas em 1834. Na verdade, o regime moderado pelo qual o país se regeu durante quase todo esse período, baseado na Carta Constitucional outorgada por D. Pedro, insistiu muito menos na pedagogia do ritual e da simbólica políticas, da celebração e da comemoração, não tendo conseguido consagrar rituais públicos regulares ligados à instauração do regime, referentes, por exemplo, à outorga da Carta ou à vitória sobre o miguelismo.
11Embora recorrentemente aparecessem afloramentos desse tipo de processo associados à figura de D. Pedro ou a datas mais significativas da gesta liberal, como a entrada dos liberais em Lisboa a 24 de Julho de 1833 durante a Guerra Civil, o cartismo não instaurou a figura do dia de festividade nacional ligado à sua fundação no qual, para citar Maurizio Ridolfi, “os símbolos e rituais públicos do Estado renovassem o sentimento patriótico dos cidadãos” (Ridolfi, 2004: 8)1.
12A distância e a perda de sentido com que as comemorações desses acontecimentos eram vistas nas últimas duas décadas do século podem ser ilustradas por dois breves exemplos: a verrinosa crítica de Ramalho Ortigão às celebrações públicas da morte de D. Pedro, publicada nas Farpas, e algumas bem-humoradas páginas do popular Lisboa em camisa de Gervásio Lobato dedicadas à entrada dos liberais em Lisboa em 1833.
13Sobre as primeiras, escrevia Ramalho Ortigão em 1881 um curto texto com este prometedor início: “De cada vez que vem ao mundo o dia 24 de Setembro o país cobre-se de crepes e arranca do seu peito um ai decretado pelo Diário”. O artigo terminava com um apelo ao “respeito do esquecimento” e à “consideração do silêncio” ou, pelo menos, ao choro exclusivamente doméstico sobre “um sujeito que morreu há cerca de meio século, que ninguém da nossa geração teve a honra de conhecer e que ninguém viu mais gordo” (Ortigão, 1944).
14Com uma menção humorística ao 24 de Julho, iniciava Gervásio Lobato o segundo capítulo de Lisboa em Camisa nos termos que seguem:
“No dia 23 de Julho o Sr. Justino Antunes recolheu a sua casa às Ave-marias. Queria deitar-se cedo, para no dia imediato assistir no Rossio à grande cerimónia patriótica de ver romper no Rossio a aurora da liberdade. Nunca estivera em Lisboa nessa madrugada memoranda e por isso queria gozá-la bem desde o l.° ao último foguete; (...) ainda o Jornal da Noite não se apregoava nas ruas já a família Antunes dormia na cama o sono que precede as grandes solenidades.” (Lobato, 1997 [1880]: 23)
15A herança mais duradoura do cartismo neste domínio foi, sem dúvida, a popularização do chamado “hino da Carta”, executado durante quase todas as cerimónias públicas, sem com isso assumir verdadeiramente as características de um hino nacional, e a consagração do azul e branco como cores do regime monárquico-constitucional.
16Nem mesmo o setembrismo, a corrente mais radical do liberalismo português, que em 1836 repôs em vigor a Constituição Vintista e que tinha naquele regime alguma filiação doutrinária, conseguiu recuperar e dar continuidade ao edifício simbólico-ritual criado com a Revolução de 1820 apesar de, durante o governo de Passos Manuel, terem sido tomadas algumas medidas legais que faziam parte do mesmo desígnio de nacionalização da política e de formação do cidadão constitucional, como, por exemplo, a criação de um Panteão Nacional.
17Seríamos assim tentados a considerar que o processo de ritualização moderna da política, iniciado no início dos anos vinte do século xix, não teve herdeiros próximos no tempo e que a herança do vintismo só seria passível de ser encontrada, quase 100 anos depois, no republicanismo e na l.a República.
18Esta visão das coisas arrisca-se, no entanto, a silenciar uma dimensão menos conhecida, mas não menos importante, do uso de rituais e símbolos na política portuguesa da primeira metade do século xix: a que foi utilizada de forma intensiva pela contra-revolução miguelista antes da tomada do poder por D. Miguel e durante os anos do seu governo.
19Constituindo-se no período de 1820-1823, durante a primeira experiência liberal portuguesa e em reacção contra ela, o miguelismo inspirou-se de facto muito directamente nas novas práticas políticas elaboradas durante aquele período.
20Essa inspiração é perceptível tanto no uso que a contra-revolução fez dos novos dispositivos constitutivos do espaço público liberal, como os jornais ou os clubes políticos, apesar das inúmeras e veementes críticas que os publicistas contra-revolucionários produziram contra uns e outros, como no repertório festivo que a contra-revolução elaborou em resposta às novas formas de ocupação simbólica dos espaços públicos, convocando para o efeito já não apenas as dimensões de encenação do poder e da ordem social presentes nas celebrações do Antigo Regime, mas também as dimensões arcaizantes e carnavalescas que nelas subsistiam e eram passíveis de promover a mobilização política das camadas populares.
21A importância atribuída à comemoração e à festa pelos círculos ultra-realistas que rodeavam D. Miguel e a rainha Carlota Joaquina é perceptível logo após o golpe da Vilafrancada que, como se sabe, implicou a queda da Constituição e o regresso ao absolutismo, no contexto da luta mais ou menos surda que os opunha ao rei e aos moderados de que este se tinha rodeado. Sob o impulso dos primeiros, a restauração do absolutismo implicará, de facto, a organização de um ciclo festivo e comemorativo que se inicia em Lisboa a 24 de Junho, dia de S. João, o dia do Santo do nome do rei, e só termina a 26 de Outubro, o dia do aniversário do próprio D. Miguel.
22Assim, a primeira destas datas, o dia de S. João de 1823, que se situava cerca de um mês depois do golpe militar de D. Miguel, foi comemorado com a entrada triunfal na capital do exército de Trás-os-Montes, comandado pelo conde de Amarante, cuja revolta, uns meses antes, tinha constituído o primeiro sinal significativo de rebelião contra as cortes liberais.
23As festividades que celebravam o regresso ao absolutismo iriam prosseguir a 3 de Julho, com a comemoração do regresso do rei a Lisboa vindo do Brasil, celebrado com cerimónias na Corte e “festividades públicas” que culminaram com uma grande parada militar organizada pelo próprio D. Miguel que, depois da Vilafrancada, tinha sido elevado à categoria de comandante-em-chefe do exército. No contexto deste ciclo comemorativo houve ainda celebrações públicas em Lisboa durante três dias em honra da queda de Cádis e da “libertação” do rei de Espanha, ou seja, do fim do liberalismo no país vizinho, e do regresso a Lisboa do CardealPatriarca, exilado por determinação das cortes, regresso comemorado com grande pompa, com celebrações de carácter religioso mas também profano.
24Finalmente, o dia 26 de Outubro, dia do aniversário do Infante, foi celebrado com importantes cerimónias na Corte e festas na cidade, com tiros de canhão nas fortalezas, luminárias, concertos nas casernas e representações teatrais.
25Subsequente à Vilafrancada, e num curto espaço de tempo, assistimos assim à emergência de um novo calendário festivo que associa os fastos da monarquia a datas politicamente significativas para o movimento contra-revolucionário em estruturação, como as já citadas da queda de Cádis ou do regresso do patriarca a Lisboa, ou, ainda, do aniversário de D. Miguel, que se passa a comemorar de uma forma nova, como dia de “grande gala na Corte”, por causa do papel desempenhado pelo Infante na restauração dos direitos soberanos do seu pai.
26A partir de 1828, depois da tomada do poder por D. Miguel, a contra-revolução adoptará, de forma mais consequente, um calendário comemorativo próprio, diverso do que começara a ser ensaiado na sequência da Vilafrancada, e adaptado às novas circunstâncias. Agora, às tradicionais festas de celebração do soberano, como o seu aniversário ou o dia do Santo do seu nome, vir-se-ão juntar as grandes datas do miguelismo, como o desembarque de D. Miguel em Lisboa, em Fevereiro de 1828, o dia da reunião das antigas cortes que o tinham proclamado legítimo herdeiro do trono e, naturalmente, o dia da sua aclamação.
27A dimensão religiosa impregnava profundamente estas festividades, não apenas sob as formas rituais tradicionais da missa de acção de graças e do Te Deum, mas também através das novas práticas que tinham emergido com a ascensão do miguelismo e tinham acompanhado o seu desenvolvimento, como os sermões que exaltavam D. Miguel como herói da luta contra os ímpios ou como Anjo protector de Portugal, as orações onde o seu nome era invocado, a exposição de retratos seus no interior dos templos e as procissões onde era transportada a sua efígie2.
28Se nas primeiras manifestações públicas de celebração contra-revolucionária, associadas à Vilafrancada e ligadas às funções de D. Miguel como comandante-chefe do exército, o processo de mitificação e glorificação do infante aparece muito claramente ligado às suas novas funções militares, manifestando-se na presença do exército no espaço público, com o afastamento de D. Miguel do país, em 1824, após o fracasso da Abrilada, a celebração e a festa contra-revolucionárias assumirão novos contornos.
29De facto, será a partir de então que se irão manifestar, de forma mais original, as modalidades que o miguelismo usou para trazer a política para a rua e, através da festa, promover a mobilização das camadas populares no espaço público, procedimento que o liberalismo, quer na sua versão mais radical de 1820-23, quer na sua mais moderada versão cartista, tinha quase sempre procurado evitar.
30O ritual mais emblemático da mobilização popular pelo miguelismo é o dos “enterros da Constituição”, referenciado desde os anos de 1823-24 mas particularmente praticado a partir de 1826, data da morte de D. João VI e da outorga da Carta Constitucional por D. Pedro.
31Neste tipo de prática pública e festiva encenava-se parodicamente o enterro do novo código liberal, às vezes apelidado de “a menina”. De um “enterro” ocorrido em Viana, no Minho, em 1828, chegaram-nos os seguintes versos:
A menina já morreu,
Foi-se enterrar à maré.
Disseram os peixes todos:
– “Isto que diabo é?” (Caldas, 1990 [1903])
32Às vezes a designação preferida não era a de “enterro” mas a de "queima”, porque o folguedo terminava com a queima de um boneco de palha personificando a Constituição ou a Carta.
33Do ponto de vista morfológico os enterros aproximavam-se de vários tipos de rituais carnavalescos e de irrisão presentes no espaço ibérico, em particular dos que se encenavam a meio da Quaresma em Portugal, como a “serração da velha” ou o “enterro da sardinha” em Espanha. A partir dos exemplos que conhecemos é possível também estabelecer um paralelo com o “charivari”, ou seja, com as “assuadas” de que eram vítimas os casamentos tidos localmente por transgressores, como os dos viúvos. A comparação é particularmente pertinente quando os “enterros” eram acompanhados da leitura de um testamento.
34Temos exemplos de enterros burlescos em vários pontos do país, principalmente no Norte rural, mas encontramo-los também em meios urbanos como Viana, no Minho, Faro, no Algarve, e mesmo em Lisboa.
35O moderado abade de Rebordãos (Trás-os-Montes) deixou-nos um breve mas eloquente testemunho de semelhantes manifestações na sua província. Referindose aos sucessos imediatamente posteriores à Vilafrancada e à restauração do absolutismo escrevia:
“Logo depois de tão portentosos acontecimentos soa, por todo o reino e particularmente nesta província desolada e ressentida, um grito de ódio e de morte contra a Constituição (...). Então este código sagrado dos direitos do homem e do Cidadão Lusitano experimenta dos homens e dos Cidadãos Lusitanos, a quem ele fazia Soberanos, os efeitos da sua soberania e os maiores ultrajes. Uns em monas de palha a despedaçam a pancadas e tiros de espingarda, outros a queimam e espalham suas cinzas, e outros conduzindo-a em divertido funeral (...) a enterram nas cavalariças e currais do Concelho, com mil imprecações contra ela e seus Autores, os Pedreiros Livres.” (Sepúlveda, 1826: 65)3
36Evocando parodicamente a morte e enterro do novo regime circulavam, também, desde o fim do vintismo, impressos em folhetos, opúsculos e jornais, testamentos da “D. Constituição”, alguns deles extensos e cheios de referências eruditas (Silva, 1993: 141).
37Na verdade, apesar da sua aparência popular, estes rituais nem sempre foram protagonizados pelas classes baixas. O clero mostrou ter também uma clara apetência pelo seu cultivo. Num dos primeiros enterros de que há notícia, que teve lugar em Faro em 1823, participaram eclesiásticos, com máscaras, cuja decifração exigia bastante erudição, ostentando dísticos escritos em latim4.
38Mas é igualmente verdade que alguns “enterros”, exclusivamente protagonizados por populares, chocaram certos membros da hierarquia da Igreja pela sua rudeza e pelo desrespeito que demonstravam pelas coisas sagradas. Foi o que aconteceu em Setúbal, já durante o governo de D. Miguel, quando um grupo de pescadores da vila, adornados com cornos, enterrou um montão de ossos, os ossos da Constituição, que aspergiam também com um corno como se fosse um hissope (Ferrão, 1940).
39Segundo Oliveira Martins, aquando do desembarque de D. Miguel em 1828, os frades de um convento de Lisboa, depois de armarem um arco que iluminaram durante três noites em sinal de regozijo, encerraram a celebração com a queima dos constitucionais em efígie e o enterro de um Judas figurando a Carta Constitucional (Martins, 1881: 86).
40Depois do desembarque dos liberais no Porto em 1832, e mesmo depois da vitória liberal na guerra civil em 1834, ainda se continuaram a fazer enterros não só da Carta mas também do próprio D. Pedro. Um deles, ocorrido no distrito de Bragança, teria sido encomendado pelo padre de uma pequena localidade “aos bêbados da sua freguesia”. Para o efeito, o sacerdote dispensou mesmo vestes sacerdotais e apetrechos religiosos (Ferreira, 2002).
41A mobilização das camadas populares para a festa (não apenas como espectadoras mas como agentes) não se esgotou nestas manifestações de aparência espontânea.
42Durante o reinado de D. Miguel muitos municípios custearam grandes festejos para comemorarem “com regozijo público” as principais datas do reinado e do regime: o aniversário do rei, o dia da sua aclamação ou o do aniversário de sua mãe, a rainha D. Carlota Joaquina. O regozijo público incluía, em geral, para além de cerimónias religiosas, luminárias, foguetes, danças, corridas de touros e máscaras, segundo consta de um relato de festas realizadas em Angra em 1824. Rogério Borralheiro mostrou, para o caso de Chaves, que durante o reinado de D. Miguel esse tipo de festejos tinha pesado fortemente sobre as finanças municipais (Borralheiro, 1997).
43Na verdade, como Armando Malheiro da Silva observou no seu livro Miguelismo: Ideologia e Mito, “luzes, foguetes e festa rija foi o que mais houve em Portugal de Fevereiro a Dezembro de 1828, além da profusão de procissões e de missas e de Te Deum Laudamus em acção de graças, que se sucederiam até ao final do reinado e por todo o país” (Silva, 1993: 265).
44Um exemplo particularmente ilustrativo é o das festas que se realizaram em Eivas por iniciativa da Câmara Municipal, em Outubro de 1829, celebrando simultaneamente o aniversário de D. Miguel e o seu reconhecimento pela Espanha como rei de Portugal. Elvas terá estado quase permanentemente em festa desde o dia 16, em que o reconhecimento foi celebrado, e os dias 25, 26 e 27, em que foi comemorado o aniversário do Infante: os seus 27 anos.
45Ao longo deste ciclo festivo tiveram lugar todo o tipo de celebrações – religiosas e profanas, civis e militares (com uma imponente parada) e também populares. Os festejos apresentavam conteúdos políticos bem explícitos e neles se pretendia, claramente, envolver todos os grupos sociais. As festividades foram anunciadas publicamente e o povo expressamente convocado a participar, encenando entremezes e ostentando máscaras, num claro apelo à mobilização da cultura carnavalesca e à satirização dos liberais.
46Para mobilizar a população os magistrados camarários e os respectivos escrivães percorreram a cidade escoltados por contingentes militares, a pé e a cavalo, e acompanhados por uma banda de música e um pregoeiro. Entre os sons da música e dos tambores o pregoeiro lia um edital convocando os habitantes a participar nos festejos. Depois de se terem convocado os directores das danças (certamente danças tradicionais das corporações de ofícios) para ensaiarem as suas entradas o edital acrecentava:
“(...) Ficando-vos livres comparecer com quaisquer invenções, máscaras e demonstrações de júbilo, em que não se ofenda a modéstia e decência ou se perturbe o sossego público e não (se) originem desordens.” (Gama, 1973)
47As expectativas das autoridades municipais não foram defraudadas. A participação em farsas, entremezes e outros divertimentos foi forte. A praça foi circundada de camarotes de onde espectadores de ambos os sexos assistiram a demonstrações várias que se iniciaram com o desfile de um carro triunfal transportando a real efígie de D. Miguel I, seguida do desfile de cavaleiros vestidos à turca, banda de música, transportada num outro carro triunfal, uma companhia de corcovados com seus cacetes, que marchavam a toque de pífaro e violão, uma mata ambulante que transportava uma companhia de negros, cavaleiros em trajes antigos, uma guarda figurando tropa espanhola, além de guardas e contrabandistas. Estes últimos três grupos representaram uma farsa, certamente sobre o contrabando e a sua repressão, tanto mais que a cena se passava numa localidade próxima da fronteira espanhola.
48De entre as várias danças e farsas (em que brilhou a dos alfaiates a matarem uma aranha) cabe destacar a representada pela “companhia dos corcovados”. Os corcovados simbolizavam os adeptos de D. Miguel que os liberais apelidavam de “corcundas” por causa da sua postura subserviente face ao trono. Numa das trovas que o grupo cantou ao som do violão dizia-se:
“Eis aqui vão os corcundas
Com os seus cacetes alçados
A defenderem o Trono
Das perfídias dos malhados.” (Gama, 1973)
49“Malhados” era um termo pejorativo que os miguelistas usavam para designar os liberais. Os cacetes que os corcundas empunhavam representavam o recurso à violência, um elemento constitutivo de uma parte do discurso miguelista e também, por vezes, da prática dos seus partidários. Os liberais tinham mesmo baptizado de “caceteiros” esse tipo de truculentos partidários do regime. A acção dos “caceteiros” miguelistas, que corriam as ruas de Lisboa, é um lugar comum nos relatos dos contemporâneos e nos escritos dos historiadores liberais sobre o reinado de D. Miguel, particularmente durante o processo da tomada do poder.
50Um dos aspectos mais curiosos das festividades de Eivas tem a ver com o facto de os epítetos que exprimiam o desprezo dos constitucionais pelos miguelistas terem sido ali encenados jocosamente e assumidos como símbolos de identidade.
51Podemos considerar assim, para concluir, que, para além de ter também cumprido as funções de legitimação e criação de memória e identidade que as festas constitucionais se tinham proposto assumir, sobretudo durante o vintismo, a festa miguelista foi também, uma forma privilegiada de trazer a política para a rua mobilizando as camadas populares.
52Ora se consideramos, como o faz Pierre Rosanvallon em La démocratie inachevée, que “a questão da rua e dos seus usos constituiu, desde 1789, uma verdadeira metáfora da questão política no seu conjunto”, “lugar da festa, ligada à felicidade social” mas, também, “associada à multidão descontrolada”, encarnação “daquilo que ameaça a ordem pública e nessa medida o duplo do motim” (Rosanvallon, 2000: 335) temos de reconhecer que, para além das similitudes, a rua, como espaço festivo e comemorativo, foi usada pelo o campo contrarevolucionário de uma forma bastante distinta da do campo liberal.
53De facto, para encontramos do lado da revolução episódios passíveis de serem postos em paralelo com os “enterros da Constituição” teríamos de nos deslocar, no espaço e no tempo, para a França revolucionária e para as mascaradas antimonárquicas e anticlericais de que ela, durante um curto período, foi palco, cuja inspiração nos velhos temas da cultura carnavalesca foi posta em evidência (Ozouf, 1976).
54Se bem que nas festas do liberalismo e do miguelismo tenham permanecido domínios comuns como a missa, o Te Deum, as luminárias e os foguetes ou a parada militar, e, naturalmente, também, elementos de continuidade em relação às festas da monarquia absoluta, não há dúvida que muita coisa as distinguiu.
55Motivada pela necessidade de escorar a ascensão pública de D. Miguel e a sua subida ao poder numa legitimidade “popular e nacional” que pudesse vir a suprir a sua duvidosa legitimidade dinástica, a corrente ultra-realista, em estruturação desde a Vilafrancada e da Abrilada, integrou a festa pública num dispositivo mais amplo de tipo “populista”, com muitos traços de modernidade, que passou pela construção carismática da personagem do Infante, pelo apelo à mobilização popular, pela diabolização dos adversários e por uma intensa incitação à violência cujos efeitos foram, no entanto, quase sempre controlados (Ferreira, 2004).
56Os liberais, pelo contrário, colocando em geral o povo em posição de espectador, utilizaram a festa como instrumento de formação do cidadão constitucional, usando a música, a récita, o teatro e vários dispositivos alegóricos para difundir os grandes temas de uma nova cultura política em que iriam avultar, sucessiva ou simultaneamente, a Constituição, a Pátria e a Liberdade.
Bibliographie
Alexandre, Valentim, 1992, Os sentidos do Império. Questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime Português, Porto, Afrontamento.
Borralheiro, Rogério, 1997, O Município de Chaves entre o Absolutismo e o Liberalismo (1790-1834): administração, sociedade e economia, Braga, ed. Autor.
Caldas, José, 1990 [1903], História de um fogo-morto, Câmara Municipal de Viana do Castelo.
Catroga, Fernando, 2005, “Le commemorazione nelle feste nazionali portoghesi. Dalla rivoluzione liberale allo Stato Nuovo di Salazar”, Memoria e Ricerca, n.o 18.
Catroga, Fernando, 2006, Entre deuses e césares. Secularização, laicidade e religião civil, Coimbra, Almedina.
Ferrão, António, 1940, O reinado de D. Miguel. O cerco do Porto, Lisboa, Publicações da Comissão de História Militar (III).
Ferreira, Fátima Sá e Melo, 2002, Rebeldes e insubmissos, Porto, Afrontamento.
Ferreira, Fátima Sá e Melo, 2004, ‘“Vencidos pero no convencidos’: Movilización, acción colectiva e identidad en el miguelismo”, Historia Social, 49, pp. 73-96.
Gama, Eurico, 1973, “Elvas entre dois fogos, Capítulo VII. Eivas festeja apoteoticamente os 27 anos de D. Miguel”, Gil Vicente, 2.a série, 24, pp. 3-4 e pp. 5-6.
Lobato, Gervásio, 1997 [1880], Lisboa em camisa – (pref. de Ernesto Sampaio), Lisboa, Vega.
Martins, J. P. Oliveira, 1881, Portugal contemporâneo, Lisboa, Bertrand, vol. I.
Ortigão, Ramalho, 1944, “A comemoração fúnebre da morte de D. Pedro IV”, As Farpas, Porto, Livraria Clássica Editora, vol. XI, pp. 119-122.
Ozouf, Mona, 1976, La fête révolutionnaire – 1789-1799, Paris, Gallimard.
Ridolfi, Maurizio, 2004, “Festas da nação, religiões da pátria e rituais políticos na Europa liberal”, Ler História, 46, pp. 5-26.
Ridolfi, Maurizio (org.), 2006, Rituali civili. Storie nazionale e memorie publiche nell' Europa contemporanea, Roma, Gamgemi Editore.
Rosanvallon, Pierre, 2000, La démocratie inachevée, Paris, Gallimard.
Sepúlveda, Francisco Xavier Gomes de, 1826, Apologias do abade de Rebordãos, Lisboa, Imprensa Imperial e Real.
Silva, Armando Malheiro da, 1993, Miguelismo. Ideologia e mito, Coimbra, Minerva.
Vargues, Isabel Nobre, 1997, A aprendizagem da cidadania em Portugal (1820-1823), Coimbra, Minerva.
Notes de bas de page
1 Sobre o conjunto destas temáticas ver Ridolfi (2004 e 2006) e Catroga (2005 e 2006).
2 Sobre alguns dos rituais do miguelismo aqui evocados ver Silva (1993) e Ferreira (2004).
3 Agradeço esta referência a António Monteiro Cardoso.
4 Memórias sobre a aclamação do infante D. Miguel em Faro. O diário de Lázaro Doglioni (Estudo introdutório de José Carlos Vilhena Mesquita), Vila Real de Santo António, 1991, pp. 123-125.
Auteur
Historiadora, Departamento de História e Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa do ISCTE.
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Castelos a Bombordo
Etnografias de patrimónios africanos e memórias portuguesas
Maria Cardeira da Silva (dir.)
2013
Etnografias Urbanas
Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista et António Firmino da Costa (dir.)
2003
População, Família, Sociedade
Portugal, séculos XIX-XX (2a edição revista e aumentada)
Robert Rowland
1997
As Lições de Jill Dias
Antropologia, História, África e Academia
Maria Cardeira da Silva et Clara Saraiva (dir.)
2013
Vozes do Povo
A folclorização em Portugal
Salwa El-Shawan Castelo-Branco et Jorge Freitas Branco (dir.)
2003