Capítulo 9. A rua como espaço público de sociabilidade: um olhar comparativo1
p. 143-154
Texte intégral
1Este texto tem como primeiro antecedente uma palestra apresentada juntamente com o prof. Luís Baptista, da Universidade Nova de Lisboa, em um Congresso Internacional de Arquitetura realizado em 2000. Trabalhámos de maneira comparativa as cidades de Lisboa e de Barcelona, a propósito das grandes transformações que vêm ocorrendo nessas duas urbes localizadas nas extremidades da Península Ibérica. Duas cidades que se olham constantemente e que vêm tecendo uma grande cumplicidade. Duas cidades que têm sido modeladas pelas autoridades através de políticas públicas que visam alcançar uma meta talvez utópica: a cidade cosmopolita, acolhedora e hospitaleira. Há nas administrações locais de ambas as cidades um mesmo modelo abstrato de cidade ideal, aberta, com vocação para uma presença significativa e real no mundo transnacionalizado, caracterizado pelos fluxos de pessoas e de capitais, por estilos de vida contrastantes e por interações globais. Duas cidades que aspiram ocupar um espaço central na era da pós-industrialização.
2O foco de interesse daquele trabalho era a identificação dos sujeitos sociais que estavam na mira dos planejadores urbanos como os principais destinatários das transformações urbanísticas em Lisboa e em Barcelona, trazidas com as grandes obras públicas impulsionadas pela “Expo” de Lisboa, em 1998, e pelas Olimpíadas de Barcelona, em 1992. Seguindo a hipótese de Hannerz sobre a cidade mundial, e a de Martinotti sobre as fases do processo de metropolização, caracterizámos esses sujeitos transnacionais como os “novos cidadãos” da cidade acolhedora. Ao mesmo tempo, olhando por debaixo do tapete, comprovámos a maneira como amplos setores da sociedade urbana eram preteridos: os residentes da velha cidade industrial, os trabalhadores, funcionários e empregados que moram em ambas as cidades e para quem a vida na cidade se torna cada vez mais desagradável, desconfortável e pouco acolhedora (Pujadas e Baptista, 2000 e 2001). Esboçámos naquele trabalho tão somente alguns dos fenômenos e processos de expulsão, segregação e marginalização dos velhos atores sociais urbanos na nova cidade do pós-modernismo, especialmente o fenômeno do commuting e a explosão das fronteiras da cidade em direção aos incontáveis confins das respectivas regiões metropolitanas: esse fenômeno que alguns denominam de cidade difusa2.
3Em vários trabalhos posteriores abordei, a partir de diferentes focos de interesse etnográfico, a mesma problemática: os paradoxos e as contradições da Barcelona do Fórum Universal das Culturas (Pujadas, 2005), a gentrificação da zona antiga de Barcelona (Maza, McDonogh, Pujadas, 2003), ou a sustentabilidade social da cidade acolhedora (Pujadas, 2005). Em relação a Lisboa insisti em dois trabalhos, na importância da construção de imaginários urbanos que se modificam no processo de explosão metropolitana (Pujadas, 2001a e 2001b).
4Meu interesse consiste em rever algumas das propostas que realizei nessas análises etnográficas dos projetos de transformação urbana de Barcelona, para projetá-las novamente em uma comparação com a cidade de Lisboa. Mais especificamente, interessa-me analisar as estratégias de subsistência dos velhos moradores dos bairros antigos da cidade ao lidar com o turbilhão de mudanças urbanísticas, sociais e económicas que tendem a marginalizá-los e/ou a expulsá-los.
Duas realidades en comparação
5Em fins dos anos 80, Madragoa, em Lisboa, era um bairro fechado em si mesmo, mas dava indícios de começar a se aproximar de um período de transição marcado pela gentrificação, pela renovação urbanística e por sua transformação em uma área de serviços e de lazer para o conjunto da população lisboeta, que sempre foi atraída ao local por sua condição de “bairro popular”, repleto de símbolos provenientes dessa imagem social que se fomenta nas marchas populares das festas da cidade de Lisboa3.
6O Raval de Barcelona constitui uma realidade comparável, ainda que naquele momento em que foi pesquisado se encontrava em uma etapa de plena transição em direção a um enclave urbano gentrificado e submetido a um processo de transformação em área de serviços e em vitrine da “nova Barcelona” pós-olímpica. Os debates e mobilizações cidadãs frente às atuações urbanísticas do governo municipal mostram as resistências da cidadania diante da especulação urbanística e do desejo político de transformar o Raval em um espaço ao serviço do turismo transnacional, que somente de maneira subsidiária atende às necessidades da população residente, envelhecida, pobre e crescentemente imigrante.
7A etnografia urbana e, em particular, a observação participante costumam ser um conjunto de contatos descontínuos e focalizados em pessoas concretas (os informantes) com quem é possível aprender a ler a realidade cotidiana que se depara diante dos olhos do investigador. O fluir anónimo de pessoas e de grupos, uns moradores, outros transeuntes, vai dando lugar à possibilidade de identificar cantos, pontos de encontro, referências espaciais que permitem entender quem são os atores que se entrecruzam nas ruas e que relações estabelecem com outros atores em espaços identificáveis e delimitados dentro do espaço público.
8A experiência da Madragoa de fins dos anos de 1980 nos remete a uma realidade fortemente carregada de relações sociais próximas e fechadas, caracterizadas por um sem-número de espaços de encontro e por uma infinidade de interações. Em pouco tempo frequentando o bairro, a equipe de pesquisa era detectada logo que estacionava o carro em uma de suas ruas, de modo que em poucos minutos todas as pessoas que conhecíamos já sabiam da nossa presença. Não podíamos fugir dos mecanismos de controle social existentes entre a população residente. As pessoas sabiam de nós, já nos tinham etiquetado. A rua era, para nós, um espaço natural de interação, como para os próprios residentes. As relações sociais na Madragoa eram descritíveis como uma sociabilidade de becos e cantinhos. A apropriação das ruas por parte de seus vizinhos transformava o espaço público em um espaço semiprivado. Os passos de um estranho no cruzamento das ruas podiam interromper as conversas dos interlocutores, que prestavam atenção no estranho até que ele desaparecesse.
9No Raval dos anos 1990 e inícios da década atual ainda se encontravam residualmente, nas zonas menos afetadas pelas renovações urbanísticas e pelos fluxos de população nova, espaços circunscritos onde se detectava um tipo similar de apropriação da rua como espaço semiprivado. No entanto predominavam relações sociais anónimas, por parte de uma vizinhança sumamente diversa, onde não era fácil diferenciar os moradores residentes, os usuários cotidianos (estudantes universitários, trabalhadores de empresas, proprietários e empregados de comércio) e os transeuntes casuais (turistas ou moradores de outras zonas de Barcelona). Diversidade e anonimato estes que estão carregados de diversidade étnica e cultural já que, atualmente, 47% da população do Raval é estrangeira.
10Acabo de assinalar que o anonimato (esse grande conceito que sempre esteve associado à cidade) estava se apropriando definitivamente das ruas do Raval, mas esta é uma afirmação que requer uma reformulação significativa. O fluir da rua e a aproximação superficial do etnógrafo dão a impressão de que são anónimas relações marcadas por uma série de características que tentarei desvelar:
1. Como bairro de serviços, o Raval está quase sempre cheio de transeuntes e de visitantes: museus, galerias de arte, instituições universitárias, centros de pesquisa. Ali têm sua sede instituições culturais e científicas, como o Institut d'Estudis Catalans e a Biblioteca da Catalunha, assim como inúmeros teatros;
2. Há outros pólos de atração para um tipo de transeunte mais assíduo ao bairro: restaurantes étnicos e um comércio específico destinado a comunidades de estrangeiros, como paquistaneses, latino-americanos e marroquinos, que acodem aos ditos centros vindos do bairro e de fora dele, com assiduidade;
3. Há no bairro diferentes centros regionais, como o Centro Riojano, Murciano e Aragonês, com restaurantes abertos a pessoas dessa procedência, mas onde também almoçam empregados, funcionários e outros que trabalham no bairro;
4. O bairro é sede de um número importante de organizações civis de ajuda à marginalidade, ao desenvolvimento e à resolução de conflitos. Associações de e para os imigrantes estrangeiros. Existem mais de 50 associações, entre ONGs e outras entidades;
5. No Raval funciona um número importante de locutórios (centros de cabines telefónicas), onde se reúnem grupos organizados por nacionalidades e por afinidade ou proximidade geográfica, membros de todas as comunidades de estrangeiros. Não somente falam com suas famílias e acessam a Internet, como também praticam relações de sociabilidade e procuram contatos que possam ser úteis em termos de trabalho e de residência;
6. O bairro possui um sem-número de espaços públicos – analisaremos posteriormente – que atraem públicos estáveis e facilmente identificáveis em dias e horas determinados: crianças e jovens em horário extra-escolar, mães com bebés que saem para tomar sol e entabulam conversas ao ar livre, vendedores ambulantes com rotas estáveis e pré-fixadas, aposentados que ocupam lugares fixos nos bancos do novo mobiliário urbano e, enfim, clientes assíduos que se sentam às mesas nas calçadas de qualquer café localizado nos pontos mais centrais e patrimonialmente mais prestigiados do Raval.
11No Raval, como em qualquer outro espaço urbano, as pessoas se relacionam e se vinculam, se apoiam ou entram em confronto. Não é fácil decifrar nem a lógica, nem a maneira como organizam e reorganizam suas vidas, nesse emaranhar e desemaranhar constante de relações sociais. Mas essa é uma afirmação que exige uma profundidade etnográfica, especialmente em um lugar submetido a tantas pressões e a tantas mudanças. O fato é que não é difícil ver como vão surgindo novas formas de sociabilidade e de interação, e como estas se associam a espaços concretos, ainda que movediços. Observar a cidade consiste, essencialmente, em estar preparado para detectar um fluir constante de pessoas e de relações. Descobrir a lógica, os interesses das pessoas, seus vínculos, suas trajetórias e seus projetos pessoais e de grupo, é o que é complexo. O anonimato, ou o simulacro de anonimato, surge da impossibilidade de cada ator social particular identificar e reconhecer as pessoas e os grupos que com ele se cruzam, como tantas vezes assinalou Sennett4.
12Esse desconhecimento gera desassossego, insegurança e, com muita freqúência, agressividade, relações tensas. É a percepção do urbanita abordado por congéneres depredadores, pelos grandes e pequenos felinos, aos que se referia em seu trabalho o etnógrafo urbano Luís Fernandes, dentro de uma construção social da cidade como espaço selvagem e sem regras reconhecíveis (Fernandes, 2003: 57-60).
13Alguns espaços emblemáticos do “novo Raval”, como a Plaça dels Àngels e a Rambla del Raval, constituem bons exemplos do tipo de sociabilidade tensa e conflituosa que substitui formas anteriores de interação vicinal, caracterizadas por uma maior cumplicidade e entendimento mútuo. A Plaça dels Àngels é um espaço novo e amplo aonde confluem várias das instituições culturais da Barcelona-fashion: o MACBA (Museu de Arte Contemporânea, obra de Richard Meier, 1995), o FAD (Foment de les Arts Decoratives, localizado em um setor do antigo Convent dels Àngels, edifício gótico que organiza exposições de design), e muito perto do maior ícone da pós-modernidade cultural, o CCCB (Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, que funciona no edifício modernista da Antiga Casa de Caridade). Em dita praça interagem cotidianamente, e não sem conflitos, uma extensa gama de atores muito heterogéneos:
1. Skatistas provenientes dos cinco continentes, que fazem suas manobras nas rampas que dão para o MACBA e nos elementos do mobiliário urbano desta “praça dura”;
2. Numerosos visitantes de ditas instituições culturais;
3. Turistas e passeantes da zona histórica de Barcelona;
4. Crianças e jovens que brincam na praça, jogando, sobretudo, à bola ao sair dos colégios e institutos próximos;
5. Mães de diferentes origens, mas predominantemente filipinas e magrebinas, com seus bebés e filhos pequenos;
6. Forças de segurança pública e privada (do MACBA), que tentam regular o caos humano que se agrupa no local;
7. Bêbados e mendigos que chegam a dominar dito espaço ao escurecer, sobretudo quando esse espaço se transforma em um não-lugar;
8. Clientes de alguns bares e cafés que têm suas mesas na calçada da própria praça ou em seus arredores;
9. Gatunos e carteiristas dispostos a se aproveitar do abundante tráfego humano;
10. Um sem-número de mediadores sociais, agentes de intervenção social, membros de ONG, etnógrafos e outros cientistas sociais;
11. Artistas de rua e pedintes que procuram trocados dos transeuntes;
12. Modelos e equipes técnicas que rodam spots publicitários, tomando o edifício ultra-moderno do MACBA como cenário;
13. Artistas plásticos que, com a colaboração de atores e atrizes, organizam performances promovidas ou patrocinadas pelo MACBA, para “aproximar a arte às pessoas da rua”;
14. Sindicalistas, membros de associações cívicas e vendedores ambulantes que montam seu pequeno ponto para divulgar ou vender suas idéias, atividades ou mercadorias.
14De outro lado, no faraónico espaço vazio criado com vistas à glorificação da Barcelona-do-design, encontramos a Rambla do Raval, que se estende sobre o espaço que anteriormente ocupavam três quarteirões de casas, há pouco habitadas por uma população muito modesta e envelhecida, e que foi realojada somente em parte dentro do bairro, em edifícios novos, mas em apartamentos muito pequenos. A pretensão do governo municipal de Barcelona ao criar esse espaço emblemático era a de fomentar a presença de investidores que “regenerassem” o tecido social, empresarial e comercial desse setor do bairro. Em dita rambla está planejada a construção de um hotel de luxo e de uma área comercial de grandes dimensões, que pretendem ser o motor do processo de gentrificação da zona.
15Por ora, no entanto, a Rambla costuma estar ocupada, de acordo com horários e temporadas do ano, por um conjunto de vizinhos e de pessoas que moram nos arredores: pelas manhãs, aposentados e antigos moradores espanhóis da zona; um público muito mais heterogéneo e diversificado ao meio-dia e nas primeiras horas da tarde; e, finalmente, a partir do entardecer, por paquistaneses. O governo municipal e uma série de associações culturais, radicadas ou não no distrito, fazem o possível para programar ao longo do ano um máximo de atividades nesse grande espaço, que continua parecendo sempre bastante vazio. Há, pois, uma luta simbólica e solapada por tornar hegemônico o uso desse espaço público, embora pareça evidente que as intenções do governo municipal, ao criar a Rambla, não se estão vendo confirmadas pelos usos que públicos tão diversos lhe estão dando5.
As etapas no processo de transformação de duas ruas do Raval de Barcelona
16As ruas Cadena e San Jerónimo eram duas vias estreitas (de 4m de largura), que se dispunham perpendicularmente às ruas San Pablo e Hospital, duas artérias que atravessam o bairro desde as Ramblas de Barcelona até o Paseo de San Antonio. O comprimento de ambas as ruas era de pouco mais de 300m, contendo três quarteirões de casas. Desde o ano 2000, quando foi inaugurada, a Rambla do Raval é um imenso espaço vazio de 58m de largura por 317m de comprimento e 18 362m de área, que aparece depois da demolição dos 62 edifícios e 789 moradias circundadas pelas mencionadas ruas Cadena e San Jerónimo. No total, mais de 1800 moradores ficaram sem lar: uns poucos foram realojados em outros edifícios do bairro, mas a maioria foi literalmente expulsa do bairro, sendo compensados de maneira mísera pela empresa mista que administra a remodelação do bairro.
17Mas vamos por partes, ordenadamente, para explicar o processo que conduz a este desfecho. A história da Rambla do Raval é uma história de um século e meio, isto é, os anos que vão desde a aprovação do Plano Cerdà, em 1859, até a sua inauguração, em 2000. Como assinalam diversos autores (Abella, 1999; Maza, McDonogh e Pujadas, 2003; Sagarra, 1998), as políticas urbanísticas de Barcelona durante esse século e meio são marcadas de maneira constante e inalterável pela vontade do governo municipal de Barcelona de levar à prática a idéia central do urbanista Idelfons Cerdà de integrar a trama urbana “selvagem” e degradada da Ciutat Vella de Barcelona ao contexto da concepção racional, estética e higienista do ensanche barcelonês do século xix6. O plano de Cerdà, do qual o projeto da Rambla do Raval é uma parte constitutiva, consistia em abrir grandes avenidas no coração da Ciutat Vella para unir esse distrito com a cidade nova e conseguir, além disso, assentar as bases da posterior transformação interna dos enclaves situados nos arredores de ditas avenidas7.
18Durante estes 141 anos que separam o projeto de sua materialização, no caso da Rambla do Raval, ocorreram muitas coisas na área urbana delimitada pelas antigas ruas Cadena e San Jerónimo. Para começar, é preciso assinalar que o Raval foi, desde fins do século xviii, um bairro operário e industrial que abrigou a aparição da primeira industrialização da Catalunha. Um bairro, pois, onde se instalavam as fábricas (principalmente têxteis) e os singelos blocos habitacionais dos trabalhadores das mesmas. Com a exceção dos poucos palacetes e residências burguesas existentes no bairro, que se alinhavam ao longo das Ramblas de Barcelona, ou de ruas como Nou de la Rambla, os setores burgueses e aristocráticos da Barcelona do século xviii e da primeira metade do xix, residiam principalmente no Bairro Gótico.
19No Raval, junto às fábricas e às habitação operárias, perduravam grandes extensões de terreno, propriedade das ordens religiosas que tinham os seus conventos instalados no bairro (incluindo hortas urbanas e jardins, que foram sendo vendidos ao longo do século xix com vista à expansão industrial). No bairro também havia hotéis baratos e pensões, dirigidos à demanda de marinheiros e viajantes que chegavam por via marítima à cidade. Também existia uma ampla oferta de casas de comida e de locais de prostituição.
20O auge do ensanche como a área residencial da burguesia e das camadas médias barcelonesas da segunda metade do século xix e do século xx, e a desaparição progressiva das fábricas, que foram transferidas para novos ensanches industriais com o crescimento da cidade, fizeram com que o Raval perdesse centralidade, adquirisse um caráter popular e se transformasse em um lugar crescentemente segregado e marginalizado. Além disso, a progressiva degradação urbanística e o ambiente insalubre de suas ruas e casas fizeram do Raval um lugar de chegada para as sucessivas ondas de imigrantes em busca de preços acessíveis de habitação. E ainda há mais, pois o bairro foi concentrando ao longo dos anos a maior parte da oferta em matéria de prostituição. O Raval do começo do século xx já era um bairro pobre, degradado e estigmatizado, também conhecido como Barrio Chino (Bairro Chinês), um no maris land para as mentes bempensantes da cidade. Um lugar contaminador e empestado socialmente.
21A história do bairro não é somente (nem substancialmente) uma história marcada pela marginalidade social, pela degradação urbanística, pelas atividades ilegais ou pela segregação socioespacial. A estigmatização do bairro é essencialmente simbólica, já que ele se torna o saco de pancadas ou a contra-imagem que os barceloneses fazem de sua cidade como um lugar de ordem, convivência e equilíbrio. O “Chino” é, por definição, e à margem de qualquer evidência empírica, um lugar perigoso, a selva urbana a que se referia Fernandes (2003). A criação e a difusão desse discurso contribuem de maneira efetiva para os trabalhos dos higienistas, assim como para as políticas municipais ilustradas e transformadoras do urbanismo da Barcelona do século xix. Cerdà cristaliza esses discursos e esses desejos racionalizadores em seu projeto de reforma de Barcelona. É justamente o contraste entre a velha e a nova Barcelona que constrói e fundamenta o mito estigmatizador do Raval. No entanto a existência de instituições como o Liceo (que data de 1833) é uma prova de que, antes da chegada da reforma, o Raval era o coração de Barcelona.
Espaço privado e espaço público em uma etapa de ruptura
22Nas cidades sul-européias, os centros históricos, apesar das políticas públicas tendentes à recuperação patrimonial e ao embelezamento com fins turísticos, apresentam abundantes signos de degradação urbanística e de marginalização social. Os preços da habitação são significativamente mais baixos ali do que nos novos centros urbanos, o que torna viável a instalação, em princípio provisória, de famílias com poucas condições económicas. Por isso, costumam ser lugares de acolhida para os novos imigrantes que chegam à cidade. A pobreza dos novos cidadãos transnacionais se soma à pobreza autóctone, caracterizada por atores sociais marcados pela velhice, desqualificação, alcoolismo e exclusão social.
23O Raval, no entanto, apresenta uma realidade diversa e complexa. Principalmente por causa das reformas urbanísticas, existem, há mais de vinte anos, setores e enclaves do bairro muito diferentes, onde encontramos galerias de arte, estúdios de artistas, escritores e intelectuais que, procedentes de lugares muito diversos, viram-se atraídos pelas imagens do bairro como um lugar de boémia. Alguns setores sociais, compostos por famílias de longa data no lugar, melhoraram suas habitações ou adquiriram um apartamento em edifícios de construção nova próximos a seus antigos lares. Por outro lado, ao se tratar de um bairro aberto, os ambientes e fluxos humanos conferem-lhe durante muitas horas do dia um ambiente cosmopolita muito atraente8.
24Apesar do reducionismo que possa parecer representar a grande complexidade do Raval em termos dualistas, pode ser útil para delimitar duas dinâmicas claramente diferenciadas que observamos nele: a fragmentação e o enquistamento social de uma parte significativa de antigos moradores, que se projeta discursivamente em forma de reclamações e de pugnas dirigidas à população estrangeira imigrante, por um lado, e à administração municipal, por outro. Paralelamente, e sobrepondo-se à realidade anterior, encontramos o conjunto de dinâmicas que se sucedem no Raval, entendido como um enclave ou localização de atividades associadas aos serviços, instalações e infra-estruturas, principalmente culturais, que se encontram situadas nele. Podemos denominar estas duas realidades de dinâmicas sociais resistentes e emergentes9.
25A etnografia do setor que denominei de resistente nos conduz, inevitavelmente, a um interessantíssimo tema que já foi abordado faz quase duas décadas por Althabe (1993) a propósito de Bolonha: a relação entre os usos do espaço público e a residência. Se no caso do bairro popular analisado na cidade italiana, a reforma social habitacional se deu em detrimento da ocupação dos espaços públicos e da sociabilidade vicinal na rua, gerando involuntariamente individualização e desmobilização social, em outros casos, os déficits habitacionais não geram mobilização e solidariedade, mas frustração e falta de solidariedade, como no caso do Raval.
26Os baixos níveis de renda fazem com que muitos moradores não tenham nem condições para adquirir um domicílio no bairro nem tampouco consigam um arrendamento para uma habitação razoável. Alguns esperam que o estado ruinoso da casa que ocupam permita que o bloco seja afetado pela reforma e possam assim estar em condições de negociar uma indenização ou um remanejamento para um apartamento de construção nova. São poucos, no entanto, os depoimentos de vizinhos que se beneficiaram da reforma. Realidade ou lenda urbana, a maioria dos informantes faz eco às situações de expulsão ou de despejo forçosos. Junto à queixa pela situação, não costumam aparecer críticas razoadas às políticas municipais ou à especulação imobiliária, mas apelos à má sorte e, em muitas ocasiões, à competição trazida pela nova cidadania estrangeira. As reclamações se concentram na superpopulação dos apartamentos vizinhos, na falta de conforto e no barulho decorrentes disso. Há também numerosas referências à ocupação ilegal de apartamentos interditados (Maza e Parramón, 2005).
27Em comparação com a Madragoa, a situação do Raval barcelonês apresenta signos evidentes de maior desestruturação social com quadros de segregação severa e de marginalização extrema, que não são atendidos por essas mesmas autoridades que conseguem exportar, e com êxito, um modelo de urbanismo e de design urbanos. A sociedade civil do bairro histórico está submetida a uma alienação e a uma falta de consciência cidadã que impede toda opção de consolidação de uma frente de luta comum. As associações de moradores se encontram “intervindas” por membros dos partidos do governo municipal e dissuadem, mais do que estimulam, reações cidadãs frente à marginalidade existente (Da Silva, 2003). As numerosas ONG radicadas no bairro paliam em alguma medida necessidades setoriais, mas não podem abordar nenhum tipo de iniciativa que mude as condições estruturais do bairro, já que os fluxos de novos cidadãos também são constantes.
28Madragoa e Raval se encontram em fases muito diferentes do processo de transformação urbanística e social. Enquanto na Madragoa as transformações se conduziram em direção à recuperação e à remodelação do parque habitacional a um ritmo relativamente pausado, significando um processo lento de gentrificação, no Raval as atuações foram em uma escala muito superior. Enquanto na Madragoa a sociedade local, ou o setor resistente, tem alguma possibilidade de moldar ou de integrar os novos moradores (em sua maioria lisboetas de classe média), no Raval os fluxos de população têm sido massivos e incontrolados, havendo-se configurado verdadeiras comunidades étnicas, cuja visibilidade hegemônica em algumas das principais ruas do bairro resulta bem estridente. Não ocorrem no Raval condições de mútua integração dos diferentes setores sociais.
29Paralelamente, as políticas municipais agem no território criando equipamentos e infra-estruturas que abrem o bairro aos fluxos internos da população da cidade, que consolidam a tão ansiada gentrificação que, no entanto, tende a se instalar em enclaves periféricos do bairro e, principalmente, no setor noroeste do mesmo, no setor mais próximo ao ensanche da cidade. Não há, no caso barcelonês, uma correspondência direta entre a dimensão das intervenções urbanísticas e a transformação das condições sociais de seus habitantes.
30A Madragoa, ainda que se encontre em um processo de diversificação social e de gentrificação, experimenta um processo mais sossegado em que a sociedade local não se viu desestruturada. As numerosas associações existentes e, muito especialmente, o Esperança Atlético Clube, que organiza a participação do bairro nas Marchas Populares do mês de junho, garantem um grau significativo de coesão interna e de representação dos interesses da população mais antiga. Enquanto que isso não sucede no bairro barcelonês, dividido entre os interesses das associações de comerciantes, dos promotores imobiliários e das políticas públicas municipais.
31Os graus de fratura social e os déficits de coesão no Raval são enormemente superiores aos que podemos observar na Madragoa. A lealdade aos vizinhos e a identidade de grupo são também amplamente diferentes. Tudo isso se reflete na maneira como se utiliza o espaço público e na natureza das interações vicinais. Na Madragoa persiste o controle social e a capacidade dos setores resistentes em vincular e atrair em direção aos seus hábitos locais, amplos setores emergentes, gerando uma osmose, assim como a recriação do sentimento de pertencimento coletivo. No caso do Raval isto não sucede assim. Ali, 47% da população registrada é estrangeira e sua presença no bairro não data, em geral, de antes do ano 2000. O Raval está hoje dominado por esses novos residentes e pelos fluxos incessantes de visitantes e de transeuntes, que são numerosíssimos, como já sugerimos. Isso reflete na maneira segregada como as pessoas ocupam a rua e se relacionam. Os vizinhos costumam ter conflitos em sua própria escada, e na rua as relações tendem a ser anónimas. Tão somente se conservam algumas velhas amizades, que é preciso ir buscar e que dificilmente se encontram de maneira casual passeando pelo bairro.
Bibliographie
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Notes de bas de page
1 Tradução de Marisol Goia do castelhano para português do Brasil.
2 Trata-se, sem dúvida, de um conceito paradoxal se nos situamos na lógica da cidade industrial. Como assinala Salvador Rueda (2003): “As diversas funções da cidade (universidade, habitação, indústria, comércio, etc.) se separam fisicamente, dando lugar a amplos espaços cidadãos com funções urbanas limitadas, em muitas ocasiões, monofuncionais. Nesses lugares, a vida da cidade se empobrece porque os operários se relacionam unicamente com os operários nos polígonos industriais, os estudantes com seus homólogos nos campus universitários, os funcionários com funcionários nos polígonos de escritórios da nova periferia. Seria possível fazer extensiva a homogeneização e a funcionalidade que reduz todos os lugares da cidade, sejam zonas residenciais ou de tempo livre, zonas comerciais ou culturais. O espaço se especializa, e o contato, a regulação, o intercâmbio e a comunicação entre pessoas, atividades e instituições diferentes, que como se sabe, constituem a essência da cidade, vão se empobrecendo ininterruptamente em todo o território urbano. Até o extremo de nos questionarmos se estamos diante da construção da cidade ou, ao contrário, nos encontramos diante de um fenômeno que a destrói e a dilui”.
3 Sua condição de vizinho do senhorial e tranquilo bairro da Lapa, com quem Madragoa divide umas fronteiras permeáveis, talvez seja um outro elemento que incrementa o seu poder de atração.
4 Refiro-me, essencialmente, a tudo o que ele contribuiu para o tema em O declínio do homem público, em Les tyrannies de Vintimité e, sobretudo, em The conscience ofthe eye.
5 Nesse sentido a “regeneração” urbanística do bairro não vem sendo seguida, de maneira mecânica, de uma transformação, também “regeneradora”, dos públicos e de suas relações sociais. O bairro, pela ótica dos planejadores urbanos, não está ainda suficientemente gentrificado.
6 O ensanche barcelonês se refere à expansão da malha urbana de Barcelona a partir das fronteiras da antiga cidade; a Ciutat Vella.
7 A abertura em 1921 da Via Layetana, que atravessa Ciutat Vella pela Plaça Urquinaona (no sentido SE do ensanche) até o porto de Barcelona, é a primeira grande realização da proposta do Plano Cerdà, de ligar o ensanche à Ciutat Vella através de três grandes vias. A segunda realização, somente parcial desse projeto, é justamente a Rambla do Raval.
8 Há que se ter em conta que, além dos constantes fluxos turísticos, o bairro possui dinâmicas próprias relacionadas com as atividades de seus moradores e com as dos usuários da multiplicidade de instituições instaladas nele: faculdades e centros universitários, teatros, bibliotecas, centros de pesquisa, mercado e comércio.
9 Esta distinção não pretende ser absoluta. É meramente instrumental. Por outro lado, somos plenamente conscientes da reversibilidade dos termos e até de sua ambiguidade e maniqueísmo. No entanto eles nos servem para alinhar, frente a frente, os diferentes atores sociais que representam os dois setores separados e confrontados pela reforma urbana e pelo fomento da gentrificação do bairro: aqueles que perdem e aqueles que ganham, ou os resistentes e os emergentes.
Auteur
Antropólogo, Universitat Rovira i Virgili, Tarragona.
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