Capítulo 8. Entre as casas e o templo, a rua: comunidade hindu e Interacções de bairro
p. 129-142
Texte intégral
Introdução
1Nos catálogos bibliográficos de estudos urbanos podemos encontrar o título A Street through time, uma obra ilustrada (Millard et al., 2000) que procura mostrar as alterações na arquitectura e nas práticas culturais de uma mesma rua, página após página. Ilustrador e autor científico fazem o percurso histórico de uma rua ao longo de 12 mil anos. É um livro didáctico, em que as palavras são substituídas pelas imagens, imaginadas de acordo com conhecimentos adquiridos. Para quem tivesse dúvidas, mostra como uma rua é dinâmica. Nele, o que mais salta à vista é a transformação dos edifícios e dos espaços em seu redor ao longo dos tempos. Mais de perto, encontramos diferentes modos de vestir, de cultivar a terra, de cozinhar, mas as casas e outros edifícios são o que melhor manifesta a dinâmica da rua em causa. Este preâmbulo ao artigo serve como uma espécie de modelo de estudo sobre a rua. Infelizmente não podemos passar 12 mil anos a fazer trabalho de campo, mas podemos, à escala dos estudos urbanos, contextualizar um espaço dinâmico como o é uma rua. Contextualizar histórica e geograficamente, perceber os contornos sociais, entre outras pequenas e grandes escalas de observação.
2O contexto local que será explicitado neste artigo é também um espaço muito curioso onde podemos observar como se vai transformando uma rua. Um bairro de habitação precária1 e suas transformações serve de pano de fundo às dinâmicas por que atravessam as pessoas que lá vivem. Localizado na ponta nordeste de Lisboa, a norte do Parque Expo, o Bairro da Quinta da Vitória faz parte da Freguesia da Portela, Concelho de Loures. Apesar de multiétnico, o enfoque da investigação é feito sobre a população hindu local que é maioritária no bairro (47%). A investigação da qual exponho aqui alguns resultados2 tem privilegiado a análise situacional, de acordo com Agier (1999) bem como as propostas holísticas de Leeds (1994 [1968]). De facto, a escolha de um local onde a maior parte da observação é realizada requer – em Antropologia Urbana ou não – preocupações de enquadramento por parte dos investigadores. Além disso, ao escolher a rua como unidade de observação e tendo em conta um trabalho de aproximação ao terreno já enraizado, a análise situacional sobressai naturalmente como forma de abordagem teórico-metodológica.
Contextualizando o bairro
3O bairro em causa é um bairro com muitas transformações recentes. Até há poucos anos era um bairro de habitações degradadas, com populações de várias origens étnicas, que foram dando vida ao bairro desde o final dos anos 1960 até à actualidade. O bairro foi alvo de um recenseamento em 1993, no âmbito do Programa Especial de Realojamento (PER)3, que resultou em 2002, em termos objectivos e até à actualidade, no realojamento de uma terça parte da população inscrita no PER. Esse realojamento foi feito num quarteirão de prédios contíguo ao bairro de barracas, e é esta a transformação daquele espaço que serve de ponto de partida para a investigação em curso, uma vez que a proximidade dos dois bairros (de habitação precária e de realojamento) é muito acentuada e reflecte uma situação rara4. À semelhança de outros bairros abrangidos pelo PER no Concelho de Loures, a Quinta da Vitória é um bairro com populações sobretudo oriundas dos países africanos ex-colonizados por Portugal, e com uma população de origem portuguesa (sobretudo do Norte do País), mas com a particularidade de ser mais diversificado etnicamente do que os outros bairros. A população com quem trabalho directamente é de origem indiana, tendo imigrado sobretudo de Moçambique, no princípio dos anos 805. A situação histórica pós-colonial é aqui incontornável, sobretudo como utensílio de contextualização. As actuais relações entre populações imigrantes com uma história de colonização recente e populações de acolhimento do outro lado da relação, isto é, como ex-colonizadores, têm reflexos do passado que não devem ser perdidos de vista.
4A primeira fase do realojamento, referida anterior mente, provocou a demolição das casas de um dos lados de uma rua do bairro e foram as pessoas que residiam nessas casas que foram realojadas. Dos prédios onde as famílias foram realojadas pode ver-se o que restou do bairro e, principalmente, o espaço que sobrou na sequência das demolições. Convém explicitar que o bairro social, além da população que veio do bairro de barracas em frente, tem uma população, muito maior, que veio de vários bairros degradados de Lisboa, de origem cigana6. A rua destituída de edifícios de um dos lados, mais o espaço que sobrou das casas demolidas, corresponde geograficamente à fronteira entre o Concelho de Loures e o Concelho de Lisboa; por isso, o bairro de habitação precária está em Loures e o bairro social está em Lisboa, configurando uma situação de fronteira que não pode ser negligenciada. Uma fronteira administrativa entre os dois concelhos, com implicações directas no quotidiano das pessoas mas invisíveis a olho nu, tal como o acentuar da burocratização no acesso aos serviços de saúde, justiça, segurança social, emprego. Há ainda uma fronteira identitária relativamente a quem mora nas barracas e quem mora no bairro social, ou seja, quem obteve o realojamento mais cedo do que outros que continuam à espera.
5Voltando à obra referida no início deste artigo, é um livro que hesitamos entre vê-lo de trás para a frente ou do princípio para o fim. E isto é um pouco como escolher a via de análise de um objecto de estudo urbano: devemos fazer a história do bairro seguindo a documentação existente e depois analisar os percursos de vida, ou devemos partir das inquietações dos moradores no presente, abrindo os círculos que contextualizam esse mesmo presente no tempo e no espaço? À partida esta imagem dos círculos é mais atraente como forma narrativa, com uma lógica mais eficaz. Mas os percursos e a linha dinâmica passado-presente acompanham as transformações do bairro e dão significado – ao bairro e à pesquisa em si. A escolha faz-se com o desenrolar da investigação, mas percebe-se que olhar para a rua, pensar a rua e passar por ela (e não só pelas casas e pelos locais de encontro em geral) ajuda – pelo menos no caso da Portela – a manter os pés académicos na terra e a pôr questões que estão, necessariamente, mais próximas das pessoas: é que são elas que habitam as ruas.
6Relativamente aos habitantes do bairro: quem são e o que representam? Os moradores da Quinta da Vitória são vistos, por um lado, como o bode expiatório dos males sociais, efeito de um estigma sobre as populações dos bairros de habitação precária e, por outro, como matéria prima para os discursos multiculturalistas. É, sem dúvida, uma população multiétnica. Mas o universo de pessoas com quem trabalho é a “comunidade” hindu7 local e alguns trabalhadores sociais. Os hindus da Quinta da Vitória são a população que me parece concentrar mais factores interessantes para observar e analisar naquele bairro. E é aqui que entra a rua. Segundo Missaoui, é a observação da rua e o que ela nos mostra que nos permite compreender e analisar as constantes batalhas da identidade e da alteridade (Missaoui, 2005: 212). Ou seja, é na rua que melhor podemos observar os fenómenos de diferenciação cultural como aquele que descreverei em seguida.
Implicações do realojamento
7Neste bairro em concreto há um jogo de relações interétnicas que não é muito comum, nem nos bairros de barracas nem nos bairros de habitação social. Como é do domínio geral, em muito casos o PER reproduziu a segregação social das minorias étnicas aumentando as tensões sociais nas zonas segregadas, potenciando o risco de acontecimentos semelhantes aos de final de 2005, nos subúrbios das grandes cidades francesas8. Em diversos bairros sociais da Área Metropolitana de Lisboa a constatação da omnipresença de um ambiente de conflito e da existência de uma imagem negativa sobre os próprios bairros (Pinto et al., 2000:107) é uma constante e não é novidade para as ciências sociais. No contexto da Quinta da Vitória há os novos vizinhos que vieram de vários bairros degradados de Lisboa. As relações que se desenvolvem entre hindus e ciganos, por exemplo, são relações cautelosas. As pessoas sabem que têm modos diferentes de estar, mas não querem provocar conflitos uns com os outros. Às vezes quase que desistem; outras vezes inventam novas formas de estar, através de zonas de evitamento, de cruzamento, de convívio. Mais uma vez, isto não é específico do caso da Portela. As estratégias de evitamento constituem em tema recorrente na literatura antropológica, desde as monografias clássicas aos estudos de caso contemporâneos.
8A rua de maior actividade na Quinta da Vitória – o bairro de habitação precária – era a chamada Rua A, de terra batida. Com a demolição das casas num dos lados dessa rua e com o realojamento parcial no vizinho bairro social da Avenida Alfredo Bensaúde, o espaço onde estavam as casas é reinventado, apesar de ter sido delimitado com uma rede. As pessoas abrem brechas na rede, fazem hortas, casotas para cães, espaços de churrasco e capoeiras. No espaço da antiga rua fazem-se pequenos campos de futebol, joga-se críquete e malha. Actualmente, a rua mais evidente, isto é, o espaço de circulação aparentemente mais vivido, tendo em conta a população em estudo, é a rua que está mais próxima dos dois bairros em simultâneo, uma rua construída em alcatrão que delimita o bairro social. Em certa medida, a concentração da circulação nesse espaço dá-se por ser uma zona de fronteira entre os dois bairros. Contudo, a observação das interacções de bairro faz sobressair determinadas zonas do bairro que não correspondem necessariamente a ruas. No caso em concreto, há uma zona do bairro que faz a ligação entre o bairro de barracas e o do realojamento, no final da rua atrás referida, que é também a zona de acesso a uma das escolas. É aí que se situa o novo templo dos hindus. Conhecendo a comunidade hindu e o seu calendário preenchido, não é difícil perceber o rodopio à volta do novo espaço de culto9. Mas há mais coisas a acontecer no bairro, além da ocorrência das cerimónias hindus no interior do templo. Por um lado, a população cigana do bairro social, enquanto não tem um espaço legal para o culto, ocupou uma parte da zona das garagens10, em baixo do templo hindu, para as suas actividades religiosas. Por outro lado, é por aquela zona do bairro que param quase todas as crianças e respectivos encarregados de educação, a caminho da escola e/ou dos tempos livres. Além disso, mais do que a rua que separa os dois bairros, esta zona tornou-se no percurso pedonal preferencial entre bairro de habitação precária e bairro social. Final mente, um dos principais acessos por automóvel passa por ali.
9No caso do espaço em estudo é interessante verificar que a utilização da rua e os modos de a viver fazem sobressair quem domina as ruas. De acordo com Pinto e Gonçalves, que estudaram o quotidiano dos bairros sociais, “(...) As diferenças culturais e de modo de vida geram formas de apropriação dos espaços do bairro e vivências específicas a estes grupos” (2000: 108). De formas distintas, as diferentes populações que vivem o espaço em causa, entre as casas ilegais e o bairro social, vão chamando a atenção sobre si.
Quem sobressai na rua?
10A observação e análise de discursos locais até agora permitem distinguir três tipos de controlo do espaço-rua naquele bairro, que correspondem, grosso modo, a três populações ali residentes que se observam entre si e que, de cada lado, constroem imagens sobre as outras populações: os jovens africanos da Quinta da Vitória; a população cigana do bairro social; a população hindu que atravessa os dois bairros mais abertamente, porque vivem nos dois aglomerados residenciais. Ali, como noutros bairros semelhantes, a estigmatização social entre as várias populações em presença é mesmo uma constante.
11O primeiro caso são os jovens africanos do Bairro Quinta da Vitória, filhos dos vizinhos que começaram a habitar o bairro na mesma altura que os indianos (no princípio dos anos 80). Estes jovens são vistos como os autores dos muitos assaltos no bairro. A dificuldade em nomear mais do que um exemplo de assalto ou de violência local por parte dos informantes atesta que, tal como acontece noutros contextos, a sensação de insegurança não está necessariamente ligada à quantidade de situações que provocariam, de facto, insegurança, como os assaltos. A imagem que cai sobre os jovens africanos, associada à insegurança, é intensificada pelas notícias de televisão. Neste caso, o controlo do espaço-rua é mais uma projecção da restante população do que uma ambição própria. Por exemplo, a população hindu do bairro reitera medos antigos, que remontam à guerra civil em Moçambique, motivo principal de migração para Lisboa.
12O segundo tipo de controlo do espaço-rua pode ser identificado através da população cigana, que habita grande parte do bairro social e que, enquanto comunidade, é muito mais recente do que a restante população daquela zona. A semelhança do que se passa noutras zonas da cidade e do país, é uma população fortemente estigmatizada e são vistos, em primeiro lugar, como pessoas de difícil relacionamento (Duarte et al., 2005). Os ciganos do bairro social dominam o espaço, e essa dominação é particularmente patente na ocupação das lojas dos prédios desabitadas para efeitos de habitação dos núcleos familiares que não tiveram direito a uma casa naquele bairro social e ainda pelas carrinhas de transporte de mercadoria, em constante movimento nas ruas do bairro social. Raramente vão ao Bairro Quinta da Vitória. Para o observador ocasional, o domínio do espaço pelos ciganos é muito significativo e parece haver uma divisão cultural total entre o bairro social e o bairro de barracas.
13Quem quebra essa linha invisível entre os dois bairros? Quem passa a fronteira sem hesitar? Até há pouco tempo, grande parte do trabalho de terreno desenvolvido na Quinta da Vitória evidenciava que o regime de evitamentos passava sobretudo pelo não atravessamento da fronteira entre o bairro social e o bairro de habitação precária. A não transposição de um bairro para o outro revelava-se uma situação estranha; mas, prestando mais atenção, estas fronteiras são de facto passadas; quem o faz sem hesitar é a população hindu, que nos fornece um terceiro tipo de controlo do espaço ou, pelo menos, uma forma diferente de chamar a atenção sobre si. O que distingue e torna a população hindu do bairro mais visível não é a especificidade religiosa em si mas sim o facto de habitarem tanto na Quinta da Vitória como no bairro social, terem lojas nos dois lados do bairro e um templo no limite do bairro social que fica mais perto das barracas. As suas práticas religiosas de rua, que serão explicitadas infra, são mais visíveis porque acontecem dos dois lados do bairro, ao contrário das práticas culturais das outras populações em causa. Podemos mesmo falar numa espécie de poder simbólico dos hindus no bairro, no sentido de Bourdieu11 (1994], O capital cultural dos hindus permitelhes serem reconhecidos pelos demais através, precisamente, da visibilidade que têm. O poder simbólico desta comunidade não pode, contudo, ser entendido à la lettre, uma vez que as categorias de percepção desse poder não são as mesmas entre as diferentes etnias em presença. O que é certo, por ora, é a estranheza e o interesse suscitado nos outros pelas práticas culturais hindus, sobretudo no que diz respeito às práticas realizadas na rua. Não obstante, há factores que podem pôr em dúvida o capital simbólico dos hindus sobre as outras populações. A ameaça de violência – latente e, sobretudo, baseada em estigmas – dos ciganos e dos africanos que ah vivem é o factor que mais contribui para hesitar em dizer que os hindus detêm um maior capital simbólico no bairro.
14Se há dúvidas sobre quem domina as mas, essas dúvidas são de alguma forma dissipadas através dos rituais hindus que passam pelas ruas dos bairros. As frequentes actividades religiosas dos hindus, antes do mais, ajudam a atenuar o efeito de fechamento em casa que é característico dos realojamentos em bairros sociais. Durante a fase inicial da realização do PER em vários concelhos da Área Metropolitana de Lisboa houve uma produção singular de artigos sobre habitação social em Portugal e um investimento do Estado e dos municípios no debate sobre as questões ligadas à habitação. Ao longo dos anos 90 produziu-se uma série de seminários e conferências subordinados ao tema, participados e assistidos não só pelos especialistas como pelos técnicos que então punham em prática o PER. Parece haver concordância quanto ao facto de, nos primeiros tempos nas novas habitações, haver uma tendência para a individualização e privatização dos modos de vida, que se manifesta no isolamento das famílias e fechamento dentro dos espaços domésticos, enfraquecendo as relações de vizinhança. Freitas alerta para esta situação sublinhando a ideia de que os ganhos de privacidade produzidos pelo realojamento são pagos com custos de maior isolamento social. A autora fala mesmo em efeito de concha – “duplo fechamento espacial e societal num espaço vital com fronteiras bem definidas e bem mais restrito” (Freitas, 1994: 30). Ora, o intenso calendário hindu e respectivas cerimónias religiosas produzem uma vantagem social para a população hindu da Quinta da Vitória relativamente a outras populações locais, uma vez que os rituais domésticos obrigam a uma ocupação quotidiana das famílias e os rituais colectivos dentro e fora do templo são recorrentes ao longo do ano.
A rua ritualizada
15O sentido do espaço-rua do bairro é sublinhado nos dias das cerimónias hindus. Há uma actividade constante por parte da população hindu levando ofertas ao templo e trazendo alimentos abençoados (prasad). A população em geral sabe que os hindus passam a vida em festas, a adorar deuses estranhos, mas há dois momentos do ano hindu que fazem evidenciar esse capital simbólico, um no final do Inverno e outro no Verão. A estranheza dos rituais para quem vê e não pertence à comunidade hindu alimenta esse capital simbólico. Aliás, a produção de capital simbólico nas ruas através de cerimónias religiosas era algo que os católicos sabiam aproveitar estrategicamente, de acordo com Cabanel (2005), que estudou a ocupação do espaço público pelos católicos em França durante o século xix. O autor faz uma analogia entre essa situação e a visibilidade muçulmana nas ruas das principais cidades francesas hoje em dia, motivo de tanto incómodo para os actuais transeuntes da mesma forma que os católicos e as suas procissões constituíam fonte de moléstia para protestantes e laicos. E também religioso o caso estudado por Benveniste (2005), num grand ensemhle francês. A autora refere a apropriação e delimitação simbólicas do espaço por parte da população judaica local, em volta da sinagoga. Já no caso localizado da Quinta da Vitória, o grau de aversão ou de simpatia relativamente às cerimónias hindus por parte das demais populações está por estudar; em todo o caso, a visibilidade de uma população através das suas manifestações religiosas e o poder simbólico que assim adquire, é evidente.
16A escolha de uma situação ritual para observar fenómenos urbanos já fez história na Antropologia e, mais em concreto, na Antropologia Urbana. Em três níveis diferentes, John Mitchell e a dança do kalela (1956), Michel Agier e o estudo do Carnaval na Baía (2000) e Graça índias Cordeiro com os santos populares no Bairro da Bica (1997), demonstram que a análise situacional fornece uma forma de contextualização alargada dos protagonistas e dos espaços em que actuam: onde moram, com quem interagem e, mais abrangentemente, a contextualização histórica, económica e social do local e da população em causa, permitindo pôr vários factores em relevo.
17Experimentando seguir as linhas dos autores referidos, podemos seleccionar dois rituais hindus que se realizam entre o bairro de barracas da Quinta da Vitória e o bairro social que lhe é contíguo. Os rituais em causa são o holi, no final do Inverno, e o janmastami, no Verão. Importa aqui proceder à descrição física abreviada dos rituais. No caso do holi, faz-se uma fogueira, dando uma grande visibilidade ao ritual. Em seu redor podemos observar os homens com os filhos pequenos ao colo a dar uma volta à fogueira. As mulheres, por sua vez, preparam ofertas aos deuses em pratos com pequenas velas de manteiga clarificada (ghi), grãos de diferentes cereais (crus e fritos), fruta e algodão, e depois dispondo os diversos elementos em pequenas linhas no chão. São as raparigas que realizam preferencialmente esta tarefa, ajudadas pelas mães e mulheres mais velhas. O ritual é feito ao anoitecer e, no fim, as crianças brincam com água e tintas, afastando-se da fogueira, pelo bairro, numa espécie de partidas de Carnaval. O janmastami, no Verão, festeja o nascimento de krsna12. Faz-se uma procissão que dá a volta às principais ruas do bairro, com música e cânticos, e que começa e acaba no templo. A ajudar à festa há um grupo de músicos com um dispositivo de amplificação do som. Durante o percurso, em que virtualmente todos os vizinhos podem ver passar o cortejo, há uma série de paragens preparadas antes do ritual. São os momentos mais esperados pelos mais novos. Entre postes de electricidade, penduram-se recipientes cerimoniais de barro a mais de dois metros de altura, que contêm folhas de mangueira (idealmente), leite de coco e moedas. Com um taco de críquete, ou uma vara, os recipientes são quebrados, e quem assiste de mais perto é abençoado com o leite. As crianças hindus lutam pelas moedas, observadas a média distância pelas crianças não hindus, que não participam neste ritual. As mulheres, por sua vez, levam à cabeça os bebés nascidos mais recentemente, que representam krsna, em cestas decoradas e protegidas do sol por sombrinhas, e o percurso é feito em grande animação.
18O que têm estes rituais em comum? Primeiro, talvez uma questão de pormenor, há um elemento físico comum nas duas cerimónias, a presença de bebés, que são protagonistas em ambos os rituais e que asseguram simbolicamente a reprodução da população hindu e a continuidade das tradições. Mas o principal elemento comum, e o que mais nos interessa aqui, é o facto de se realizarem na rua e, dessa forma, contribuírem para a diferenciação cultural da população hindu no bairro. Antes do realojamento, o holi era feito na Rua A, perto do antigo templo, numa eira em frente a uma casa. Desde as demolições de 2002, continua a ser feito na mesma zona, na antiga Rua A, ou no que resta dela, junto a uma zona de passagem entre as barracas e o bairro social, perto da antiga eira. Por isso, actualmente, este ritual pode ser avistado dos prédios sem a participação dos vizinhos não hindus. Só as crianças, do bairro de barracas e do bairro social, se atrevem a aproximar-se do fogo, de tal forma curiosos com as linhas de sementes e velas no chão à volta de uma fogueira, que chegam a invadir o espaço ritual. Relativamente ao janmastami, o segundo ritual em causa, podemos verificar uma alteração no trajecto desde que o templo mudou de sítio. Dantes, o percurso era feito através das duas ruas principais dos bairros; actualmente a volta abrange uma parte do bairro social. O ritual continua a ser participado e animado como dantes. Tal como o holi, é observado à distância pelos vizinhos, que concordam que os hindus andam sempre em festa. De resto, outros rituais que não são realizados especificamente na rua tornam-se visíveis (na rua) através do rodopio entre as casas e o templo.
Considerações finais
19Embora a produção teórica sobre as ruas tenha sido uma constante na Escola de Chicago, porque surgia como uma evidência nos bairros e populações estudados, a rua enquanto objecto de análise per se, subordinada aos estudos urbanos e tendencialmente transdisciplinar, é recente. Em 1968 Petonnet publicava uma obra que viria a abrir o vasto programa de estudos sobre habitação degradada e mais tarde sobre habitação social em França. Apesar de não ser o objecto central de análise do seu estudo, a autora imergiu nas ruas dum bidonville, fazendo uma descrição do bairro, quase em forma de reportagem jornalística, onde denunciava as condições de vida dos seus habitantes e dava relevo às vivências de bairro, constituindo um marco na sociologia urbana. Quase 40 anos depois, a mesma autora é convidada para fazer a síntese de uma antologia dedicada ao estudo das ruas (Brody, 2005). Petonnet motiva os investigadores dizendo que a rua é um espaço muito democrático. Nela, não é o dever que prevalece, mas o direito, partilhado, de ali passar a toda a hora (Petonnet, 2005: 299). Também a rua de um bairro como a Quinta da Vitória é atravessada a toda a hora por quem precisa de lá passar.
20Há dez anos Agier comentava que “tributários de um a priori ecológico, os estudos urbanos opuseram simultaneamente a rua à casa” (1996: 55). No caso dos bairros sociais em Portugal os estudos sobre a rua que contrariam uma visão negativa dos fenómenos urbanos são muito escassos – com excepções como o estudo de Monica Farina (2001) sobre um dos bairros de Cheias. Em geral, a casa de habitação social é focada sobretudo como local de fechamento social por excelência, por oposição à edílica rua do bairro de habitação precária. O interesse analítico dos rituais escolhidos, mais do que a sua descrição em si, está na importância que esses rituais representam para a população que os preconiza e para a população que os observa. E isto faz pensar que, cem anos depois de A metrópole e a vida do espírito” (1997(1903]), há algo em Simmel que parece continuar a fazer sentido. Dizia ele que, “para muitas pessoas, a estratégia de captação da atenção de outrém continua a ser a única forma de preservar alguma auto-estima e de salvaguardar o seu sentido de lugar”. É algures no meio destas ideias – e observando os rituais – que se percebe o poder simbólico captado pelos hindus no bairro. A principal forma de diferenciação em relação às outras populações é feita através de elementos culturais fortes, imprescindíveis para a continuidade da comunidade hindu local. Sublinhando a ideia anterior, são os rituais-performance de rua que dão consistência à diferenciação cultural local e, em última análise, ao capital simbólico dos hindus.
21A observação de um espaço como o Bairro Quinta da Vitória e o vizinho bairro social obriga a olhar para a rua e para as casas. Segundo Monica Farina, referida anteriormente relativamente ao seu estudo realizado num dos bairros sociais de Cheias, os lugares no bairro podem ser familiares, afectivos, de identificação e de interdição (2001: 34-5). Na Quinta da Vitória, tendo em conta que as casas (tanto as barracas como os novos alojamentos em habitação social) são visitadas quase exclusivamente por membros das mesmas comunidades étnicas, é nas ruas que mais se vêem as pessoas cruzar-se e fazer dos vários espaços do bairro precisamente espaços familiares, afectivos, de identificação e de interdição. A convivência entre as diversas comunidades vai sendo negociada com o passar do tempo e é potenciada com as transformações físicas do bairro. Experimentar olhar para as formas de viver as ruas é, por fim, experimentar uma forma de estar mais próxima das pessoas com quem estudamos e de evitar que a análise doutros aspectos do bairro seja feita de forma distanciada, de cima dos prédios.
Bibliographie
Des DOI sont automatiquement ajoutés aux références bibliographiques par Bilbo, l’outil d’annotation bibliographique d’OpenEdition. Ces références bibliographiques peuvent être téléchargées dans les formats APA, Chicago et MLA.
Format
- APA
- Chicago
- MLA
Agier, Michel, 1996, “Les savoir urbains de l’anthropologie”, Enquête, 4, pp. 35-58.
10.4000/enquete.683 :Agier, Michel, 1999, L’invention de la ville. Banlieues, townships, invasions et favelas, Paris, Éditions des Archives Contemporaines.
Agier, Michel, 2000, Anthropologie du Carnaval: La ville, la fête et l’Afrique à Bahia, Marseille/Paris, Parenthèses.
Bastos, S. T. R, 1990, A comunidade hindu da Quinta da Holandesa. Um estudo antropológico sobre a organização socioespacial da casa, Lisboa, LNEC.
Bastos, S. T. P. e J. G. P. Bastos, 2001, De Moçambique a Portugal. Reinterpretações identitárias do Hinduísmo em viagem, Orientália, Lisboa, Fundação Oriente.
Benveniste, Anne, 2005, “La rue ou le territoire imaginé”, in Jeanne Brody (org.), La rue, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, pp. 155-163.
10.4000/books.pumi.6434 :Bourdieu, Pierre, 1997 [1994], Razões práticas. Sobre a teoria da acção, Oeiras, Celta Editora.
Brody, Jeanne (org.), 2005, La rue, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail.
10.4000/books.pumi.6434 :Cabanel, Patrick, 2005, “Les catholiques dans la rue : l’Église et le controle de la voie publique en France (xixéme-xxéme siècle)”, in Jeanne Brody (org.), La rue, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, pp. 63-80.
Cachado, Rita, 2000, Vivências na Vitória. Esboço de caracterização da comunidade hindu da Quinta da Vitória, relatório de estágio profissional, Loures, Câmara Municipal de Loures.
Cachado, Rita, 2003, Colonialismo e género na índia – Diu. Contributos para a Antropologia Pós-colonial, tese de mestrado em Antropologia, Colonialismo e Pós-colonialismo, Lisboa, ISCTE.
Cohen, Anthony, 1985, The symbolic construction of community, London, Routledge.
10.4324/9780203131688 :Cordeiro, Graça índias, 1997, Um lugar na cidade. Quotidiano, memória e representação no Bairro da Bica, Lisboa, Dom Quixote.
10.4000/books.etnograficapress.2255 :Cordeiro, Graça índias e António Firmino da Costa, 1999, “Bairros: contexto e intersecção”, in Gilberto Velho (ed.), Antropologia Urbana. Cultura e sociedade no Brasil e em Portugal, Rio de Janeiro, Zahar Editora, pp. 58-79.
Duarte, Isabel, Alexandra Castro, Joana Afonso, Mafalda Sousa, Margarida Salgueiro Antunes e Maria José Lobo Antunes, 2005, Coexistência interétnica, espaços e representações sociais – Os Ciganos vistos pelos outros, Lisboa, ACIME.
Farina, Monica, 2001, Por uma Amtropologia do Habitar. Projecto e quotidiano num bairro de habitação social em Lisboa, dissertação de mestrado em Desenho Urbano, Lisboa, ISCTE.
Freitas, Isabel, 1994, “Os paradoxos do realojamento”, Sociedade e Território, 20, pp. 26-34.
Leeds, Anthony, 1994 [1968], “The anthropology of cities: some methodological issues”, in Sanjek, Roger e Anthony Leeds (org.), Cities, classes and the social order, Ithaca and London, Cornwell University Press, pp. 233-246.
Lourenço, Inês M. C. B., 2003, Reflexões antropológicas em contextopós-colonial: a comunidade hindu de Santo António dos Cavaleiros, tese de mestrado em Antropologia, Colonialismo e Pós-colonialismo, Lisboa, ISCTE.
Millard, Anne & Steve Noon (ilust.), 2000, A Street through time, London, Dorling Kindersley.
Missaoui, Lamia, 2005, “Commerces illicites et isomorphes urbaies: entre le ‘voir’ et le ‘dire’”, in Jeanne Brody (org.), La rue, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, pp. 211-224.
Mitchell, J. C., 1956, The kalela dance. Aspects of social relationships among urban africans in Northern Rhodesia, Manchester, Manchester University Press.
Gulick, John, 1989, The humanity of cities. An introduction to urban societies, Massachussets, Bergin & Garvey Publishers, Inc.
Pétonnet, Colette, 1968, Ces gens-là, Paris, Maspero.
Pétonnet, Colette, 2005, “Synthèse pour les temps à venir”, in Jeanne Brody (org.), La rue, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, pp. 297-306.
Pinto, Teresa Costa, 1994, “A apropriação do espaço em bairros sociais: o gosto pela casa e o desgosto pelo bairro”, Sociedade e Território, 20, pp. 36-43.
Pinto, Teresa Costa e Alda Gonçalves, 2000, “Os bairros sociais vistos por si mesmos”, Cidades. Comunidades e Territórios, 1, pp. 101-111.
Simmel, Georg, 1997 [1903], “A metrópole e a vida do espírito”, in Fortuna, Carlos (org.), Cidades, cultura e globalização, Oeiras, Celta, pp. 31-43.
Notes de bas de page
1 O termo mais referido para substituir o desusado bairro de lata é aqui utilizado sem compromissos teóricos; serve apenas para enquadrar o tipo de espaço, em termos gerais. Convém especificar que esta forma nem sempre serve a clarificação do contexto, uma vez que nem todas as casas destes bairros são habitações precárias. Do mesmo modo, a habitação social como oposição a habitação precária configura uma situação que pode ser falaciosa, pois a habitação social pode ser precária.
2 Inserida no projecto de doutoramento intitulado: A conjuntura de um bairro em vias de realojamento: Dinâmicas associadas à comunidade hindu da Quinta da Vitória (FCT/ISCTE 2004-2008).
3 D-L n.o 163/93, de 7 de Maio. Apesar de alterado em alguns decretos posteriores, o D-L manteve o seu propósito geral de erradicar as barracas em Portugal. Previsto inicialmente para ser executado em 10 anos, alguns municípios com maior número de núcleos (bairros) inscritos, como é o caso de Loures, prolongaram a sua execução.
4 A título de exemplo, no caso da Quinta do Mocho, também no concelho de Loures, o realojamento foi feito na proximidade do antigo bairro, mas com uma décalage temporal entre as demolições e o realojamento total muito menor. Na Quinta da Vitória, apenas 4 anos depois do primeiro realojamento PER é que as autoridades, Câmara Municipal e proprietário, estão mais empenhadas na demolição das barracas. A falta de alternativas para os agregados inscritos ou não no PER deu azo a novas dinâmicas no bairro, que estão no momento a ser alvo de pesquisa na minha investigação.
5 Sobre os percursos migratórios da população hindu residente em Portugal, consultar Bastos e Bastos (2001), Lourenço (2003) e Cachado (2003).
6 O realojamento de uma parte da população PER da Quinta da Vitória no bairro social contíguo, já no Concelho de Lisboa, resultou de um protocolo especial em Novembro de 2001 entre as duas edilidades, Lisboa e Loures.
7 A palavra comunidade é aqui usada no sentido de Cohen 1985, em que uma comunidade não possui necessariamente fronteiras estáveis e em que a percepção da pertença identitária a uma comunidade pode ser maior ou menor, ou seja, permitindo desta forma uma utilização mais abrangente do conceito. A escolha da comunidade hindu como universo populacional de estudo decorre de uma relação de confiança desenvolvida e mantida em trabalho de terreno desde 2000, no âmbito de um estágio profissional (Cachado, 2000).
8 A morte acidental de dois jovens na sequência de perseguição policial num subúrbio de Pãris despoletou uma onda de violência urbana que potenciou, por sua vez, um debate social único sobre os bairros sociais franceses e retomou a crítica sobre as implicações actuais do colonialismo francês, debates esses que foram fortemente documentados nos media franceses.
9 Até Julho de 2004 os hindus do bairro faziam os seus rituais no templo situado numa barraca da Quinta da Vitória que, por sua vez, concentrou as funções religiosas para a grande maioria da população hindu da Área Metropolitana de Lisboa, até 1998, quando foi inaugurado o templo Radha-Krsna, no Lumiar.
10 De notar que as garagens do bairro social nunca chegaram a ser utilizadas para parqueamento, desde 2002 até à actualidade (finais de 2006).
11 Conferir, por exemplo, em Razões práticas. Sobre a teoria da acção, onde Bourdieu fala da identidade étnica como uma das dimensões do capital simbólico (1994:131).
12 Krsna é o termo devanagari para designar a divindade hindu Krishna que corresponde ao oitavo avatar (encarnação) de Vishnu.
Auteur
Antropóloga, Programa Internacional de Doutoramento em Antropologia Urbana do ISCTE, bolseira de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Castelos a Bombordo
Etnografias de patrimónios africanos e memórias portuguesas
Maria Cardeira da Silva (dir.)
2013
Etnografias Urbanas
Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista et António Firmino da Costa (dir.)
2003
População, Família, Sociedade
Portugal, séculos XIX-XX (2a edição revista e aumentada)
Robert Rowland
1997
As Lições de Jill Dias
Antropologia, História, África e Academia
Maria Cardeira da Silva et Clara Saraiva (dir.)
2013
Vozes do Povo
A folclorização em Portugal
Salwa El-Shawan Castelo-Branco et Jorge Freitas Branco (dir.)
2003