Capítulo 7. Espaços, marcas e símbolos num bairro de habitação social em lisboa
p. 113-128
Texte intégral
1Com o objectivo principal de evidenciar as relações que se verificam entre morfologia do espaço e práticas de vida quotidiana dos habitantes num bairro de habitação social, tenta-se avaliar em que grau os espaços, imediatamente exteriores à habitação particular, se apresentam como portadores de valores de sociabilidades e facilitadores do desenvolvimento de identidades territoriais. O estudo de caso que aqui se apresenta1 desenvolveu-se durante um período prolongado, de cerca de um ano, nos espaços públicos de um conjunto de habitação social existente em Lisboa, no Bairro da Flamenga de Cheias, denominado Matriz H.
2O estudo baseia-se na tese, segundo a qual um bairro de habitação social é o lugar de encontro entre a cultura de arquitectos e urbanistas, que projectaram as urbanizações e que previram a organização espacial das habitações, e a cultura dos habitantes reais destes espaços, fruto de práticas sociais quotidianas e de um espaço polissémico, relacional, organizado segundo mapas mentais e fronteiras de significado. Este encontro define o carácter singular e distintivo do “lugar”2, admitindo, como pressuposto, que existe uma relação entre espaço construído e as culturas específicas que o produzem.
3Parte-se da análise das razões que levaram à concepção de um determinado espaço por parte de urbanistas e arquitectos, no que diz respeito sobretudo à produção de habitação social. Estes actores foram, histórica e institucionalmente, os porta-vozes, por um lado, de uma cultura humanista e, por outro, de uma cultura racional e funcionalista dominante. Não podemos esquecer que implícito ao projecto de cidade está um projecto mais vasto de sociedade3.
4Mas o que se pretende compreender, numa sucessiva abordagem ao problema, mais próxima da realidade vivida, é quais são os padrões culturais dos habitantes dos bairros sociais, quais as marcas definidoras da sua própria actuação no espaço, as estratégias de afirmação do seu imaginário, ou seja, como acontece a interacção com os modelos espaciais impostos, num contexto social onde, em muitos casos, o estigma da pobreza e da exclusão é mais difícil de modificar do que melhorar as condições físicas do espaço envolvente.
5O que se verifica é que a margem de acção e de afirmação dos padrões culturais da população realojada é bastante reduzida e que os destinatários da habitação social são submetidos a um processo de aprendizagem ou aculturação promovido pelo poder instituído no intuito de uniformizar os comportamentos e as necessidades (Signorelli, 1996: 61).
6Nesta perspectiva, parece significativo estudar o fenómeno urbano à luz do compromisso “entre a individualização e a inserção em categorias mais amplas”, entre a fragmentação individual e a totalização social que existe nas modernas sociedades complexas (Velho, 1987: 25).
O projecto da Matriz H
7O Bairro da Flamenga, construído no âmbito do Plano de Urbanização de Cheias4, é uma urbanização recente formada por edifícios de habitação e equipamentos sociais destinados ao movimento cooperativo e ao realojamento de pessoas sem recursos, ainda há escassos anos completamente isolada do centro tradicional da cidade e que só a partir de 1998 ficou ligada às grandes artérias urbanas e à linha do metro. As razões deste carácter de área marginal encontram-se, em parte, nas grandes distâncias que separam o centro da periferia e na fisiografia muito acidentada deste território, que não favorecem a circulação de peões entre novas áreas de expansão e o centro citadino. As vias principais que conduzem ao Bairro da Flamenga possuem as características das estradas das cidades modernas, onde se perdeu o valor urbano e social da rua, tornando-se em vias transportadoras dos fluxos motorizados em detrimento dos fluxos mais lentos de peões e bicicletas. Assim, as acessibilidades, construídas recentemente para Cheias, pouco contribuíram para fazer sair do isolamento do continuum da malha urbana mais consolidada, no qual ficou confinada esta área da cidade durante décadas. Mas a escassa visibilidade dos bairros de Cheias está, também, ligada à questão do estigma que, até agora, persiste de “guetos” de habitação para o realojamento de populações socialmente excluídas.
8A passagem de carro feita pelo prolongamento da Av. dos Estados Unidos da América, a partir da qual a vista abrange, num só olhar, o Bairro da Flamenga, o Bairro do Armador, o Bairro do Condado, o Bairro do Alfenim e o das Amendoeiras, deixaria uma imagem fugaz do edifício da Matriz H e dos outros circundantes como mais uns fragmentos da paisagem urbana da periferia de Lisboa. Não passaria, todavia, despercebida ao olhar, atento e sensível aos valores paisagísticos, a vista destas urbanizações ordenadamente poisadas no topo de colinas, envolvidas pelos amplos espaços arborizados do Parque da Bela Vista e do Parque do Vale Fundão, pelas hortas urbanas do Vale Central, tendo o rio Tejo como pano de fundo.
9A Matriz H5 (Figura 1) é um dos edifícios figurativamente mais atípicos do bairro, sendo um marco no âmbito das experimentações arquitectónicas realizadas em diferentes áreas de Cheias, como no Bairro do Condado (Zona J), no Bairro dos Lóios (Zona I) ou no Bairro do Armador (Zona M). Foi construído em dois blocos paralelos de edifícios (Bloco A e B) para realojar as populações anteriormente residentes no Bairro das Casas Pré-Fabricadas de Cheias, o extinto “Bairro do Relógio”, e famílias vindas de bairros clandestinos igualmente localizados em áreas de Chelas6
10A denominação de edifício “Matriz” vem do facto de se tratar de um “projecto tipo”, cujo requisito principal consiste numa maior versatilidade, que possibilitava uma melhor resposta quanto a percentagens tipológicas recomendadas e a um maior número de situações urbanas, nomeadamente os condicionamentos urbanísticos expressos nos planos (Rodrigues, 1986: 227). O projecto da Matriz H é o resultado da reflexão sobre os temas debatidos no âmbito do Gabinete Técnico de Habitação (GTH)7 da Câmara Municipal de Lisboa, responsável pela expansão urbana de Olivais e Cheias: procura de normalização do processo construtivo e de tipos de projectos que apresentassem características de funcionalidade, economicidade e flexibilidade. Actuando no planeamento e construção de novas urbanizações, o GTH desempenhou ao longo da sua existência a função de “laboratório de tipologias”, praticando a experimentação do interclassismo, das unidades de vizinhanças, dos edifícios colectivos em galerias, facto que se traduziu num contributo efectivo na elaboração de parte da normativa actualmente em vigor sobre habitação social.
11A ideia forte do projecto da Matriz H, devedora do profundo comprometimento político da arquitectura daquele período, é a de “levar o espaço da rua até aos pisos mais altos do edifício” (Cerejeiro, 1980: 7).
12A preocupação de criar espaços para uma vida comunitária onde se pudessem recriar relações de vizinhança, manifestações de sociabilidade e modalidades de associativismo características da “cidade tradicional” imaginada, mostra que a carga ética do arquitecto era mais importante do que a tecnologia do plano. A ideologia enforma todo o sistema de percursos interiores e de acesso às habitações, articulados através de galerias e pontes, que dariam origem a uma variedade de ligações a diferentes níveis entre edifícios e, por conseguinte, a todo o tipo de possibilidades de circulação e de encontro entre os habitantes deste conjunto.
13O espaço da rua central, destinada à circulação pedonal, não é estranho a esta filosofia. Além de dar continuidade às “faixas centrais de vida urbana intensa”, preconizadas pelo Plano de Urbanização de Cheias, seria, nas intenções do projectista, um espaço destinado às relações sociais ligadas tradicionalmente à rua, como acontece nos bairros históricos da cidade. A referência às vilas e pátios da cidade de Lisboa, cujas soluções arquitectónicas, pela forma de associação dos fogos, expressam bem o espírito de espaços comunitários, aparece claramente na organização dos acessos às habitações. Havia uma forte intencionalidade em propor, numa linguagem arquitectónica moderna, todos aqueles valores de vida ainda identificáveis nos bairros populares da cidade, de dar suporte material àqueles contextos, nos quais ocorre a referida densificação de laços sociais e formas simbólicas, envolvendo especificidades culturais que, de algum modo, resumem os conteúdos da imagem mais habitual e mais divulgada de bairro popular (Cordeiro e Costa, 1999: 59-79).
Os habitantes
14As populações realojadas na Matriz H podem, de facto, ser enquadradas nas camadas populares. Ilustram os processos demográficos que estiveram na base do crescimento populacional da zona oriental da cidade, no início do século xx. Nascidos maioritariamente no Concelho de Lisboa e, também, oriundos dos PALOP, os habitantes da Matriz H pertencem às categorias de “assalariados menos providos de recursos económicos, qualificacionais e organizacionais” (Costa, 1999: 226). O grau de escolaridade médio é a antiga 4,a classe8. Os rendimentos médios dos agregados denunciam um quadro de relativa pobreza, cujas razões se encontram representadas no tecido socioprofissional, formado sobretudo por serventes, operários da indústria, ou de oficina, que trabalham nas imediações da área de Cheias, por trabalhadores ligados à construção civil e alguns vendedores ambulantes (que continuam as suas actividades ligados à feira dominical do “Relógio”), num regime de trabalho precário, informal e marginal. Aparecem empregados e empregadas de estabelecimentos comerciais e de serviços de limpeza com a sede de trabalho no centro da cidade, com a qual existe esta relação económica de dependência, pois o Bairro da Flamenga não oferece, por enquanto, oportunidades de emprego como estava previsto no Plano de Urbanização de Cheias. Do conjunto das profissões da população da Matriz compreende-se que o universo das camadas populares é amplo, variado e heterogéneo com uma grande segmentação profissional entre os homens em contraste com a situação bastante homogénea das mulheres.
15O tipo de família predominante é o agregado familiar simples, formado pelo casal dos pais, prevalentemente jovens, ou mães solteiras, ou divorciadas, e pelos filhos solteiros (de 1 a 9). Em alguns casos os filhos, que constituem um novo núcleo familiar, ficam a residir na mesma casa dos pais, pelo que o número de famílias alargadas é bastante significativo, com a presença de outro parente ou de afilhados e netos. Deste retrato esquemático resulta uma imagem em parte ligada ainda aos problemas sociais que caracterizam as classes populares nas suas estratégias de integração nos sistemas organizacionais e de valores impostos pelas culturas hegemónicas da sociedade contemporânea e mostra a necessidade de unir “forças” para fazer frente às despesas que a vida citadina impõe às famílias. Em muitos casos a mudança das condições de habitat proporcionadas pelo processo de realojamento implica um aumento considerável das despesas correntes de manutenção da casa. Neste aspecto, a tentativa de reconstruir laços identitários, para melhor enfrentar os problemas inerentes à adaptação a um novo estilo de vida, aparece no surgimento de grupos locais, que não são bem colectividades, mas definem “pontos de apoio para modos de vida e estratégias de influência” (Costa, 1999: 81), como os que se constroem em volta do Centro Social Polivalente e dos equipamentos da Santa Casa da Misericórdia, o “grupo de costura”, a associação guineense, a AMI, o minimercado, o cabeleireiro e os cafés. A vida colectiva do bairro desenvolve-se em grande parte em redor destes ambientes que se tornaram cada vez mais nos pontos de sociabilidade dos habitantes, mas, também, em locais onde se pode encontrar apoio e assistência.
16Patamares de escadas, galerias, pequenos largos tornaram-se, igualmente, pontos habituais de permanência e de convívio, encontro e interacção entre vizinhos e habitantes do resto do Bairro da Flamenga. A sua observação revelou uma riqueza imprevista de situações diferentes, de modalidades de uso e de interacção por vezes bastante originais.
A rua central da Matriz H
17Delimitada pelas fachadas interiores dos edifícios, a rua central da Matriz H apresenta-se como uma rampa comprida e larga, inclinada no sentido descendente em direcção à Rotunda da Bela Vista (Figura 2). A partir da rua central tem-se acesso ao “coração” da Matriz H. Entra-se num ambiente doméstico, familiar e aparentemente sereno: vêem-se crianças a jogar em grupo, a andar de skate ou de bicicleta, aproveitando o desnível acentuado e as características favoráveis do piso, sem obstáculos pelo meio; ouvem-se as vozes das suas brincadeiras; vêem-se mulheres, solitárias, debruçadas às janelas ou, formando pequenos grupos, apoiadas nas guardas dos patamares das escadas, abertos para a rua, como se fossem varandas, a falarem entre elas, enquanto controlam discretamente a “entrada” de algum estranho na Matriz.
18Directamente ligada a esta rua pedonal, encontra-se a galeria do rés-do-chão esquerdo, com os cafés, onde flúi a vida dos homens, alguns ocupados a jogar às cartas, outros à espera de alguém ou entretidos a observar a passagem na rua da Matriz, apoiando-se nas guardas das galerias, a partir de uma posição mais alta, como convém quando se quer observar sem ser observado9.
19E o quotidiano de uma rua de bairro popular, talvez seria melhor falar de um pátio ou de um logradouro aberto para o exterior: as brincadeiras infantis, as actividades das mulheres domésticas, a espera dos idosos ou dos homens desempregados, o desenrolar familiar e previsível da vida dos cafés e do comércio local onde se reúnem sempre as mesmas pessoas e, por fim, a actividade dos gabinetes técnicos ou de algumas associações de bairro.
20Sobretudo reconhecem-se as qualidades espaciais e sociais própria de um “enclave”, ou seja, de um espaço interior aberto para o exterior, no qual a sensação de posição ou de identificação com aquilo que rodeia o observador e o habitante é mais imediata e eficaz, englobando todos os significados do “aqui”; um espaço sossegado e tranquilo, do qual ficam excluídos o ruído e o ritmo apressado da comunicação impessoal (Cullen, 1971: 27).
21O tipo de relação entre um “aqui”, individualizador, mas de difícil assimilação com os modelos habitacionais tradicionais, e um “além” mais valorizado, embora bastante mais convencional nas escolhas tipológicas, reforça nos moradores da Matriz H a crença numa imagem negativa da sua habitação, que se traduz no isolamento e no fechamento dos moradores em relação ao espaço circundante do Bairro da Flamenga, reproduzindo um tipo de segregação social “interior”10.
22Confrontada com a realidade observada na Matriz H, a rua central, idealizada como rua “de vida urbana intensa”, não parece ser representativa do sistema de valores dos habitantes ou, de outra forma, dos significados que os habitantes atribuem a este espaço, mas sim do grupo que a concebeu.
23Este espaço, aparentemente público, aberto para o exterior, idealizado para realizar uma comunicação constante e intensa com outras áreas do bairro e zonas mais longínquas do território de Cheias, é um espaço fechado sobre si próprio, no qual as redes de vizinhança actuarn como meio de controlo e protecção em relação ao exterior.
Diferenças nos modos de ocupação do espaço
24Directamente ligados à rua central, nos topos da Matriz H, encontram-se dois espaços simétricos, formados pelo alargamento dos passeios. Formalmente idênticos, representam, no entanto, dois lugares distintos, portadores de significados diametralmente opostos, revelados através da observação de práticas diárias diferentes.
25No caso do espaço situado no topo inferior da Matriz H tem-se a desagradável sensação de se estar num vazio espacial e interactivo. Ninguém permanece neste lugar e o que aparece de imediato é o enorme grajfiti desenhado na base da empena de um dos lotes.
26No largo, do topo superior, as pessoas, principalmente homens, juntam-se para conversar, formando pequenos grupos, localizados preferencialmente nas esquinas dos edifícios e junto à rua de trânsito automóvel. Os carros, estacionados temporariamente no limiar da rua de trânsito, oferecem uma possibilidade de apoio ou de ancoragem, para os que se encontram no local. Do mesmo modo, os dissuasores de trânsito em betão, implantados no passeio, servem de assentos e de marcos de separação das relações sociais entre visitantes e residentes. Aqui é feita, nos dias da semana, a venda ambulante de géneros alimentares como legumes e peixe (Figura 3).
27Aparentemente, esta pequena “praça” é a que mais claramente se poderia definir como o espaço público deste conjunto habitacional, no sentido de um lugar de sociabilidade que pode eventualmente sair do âmbito das relações de vizinhança mais estritas e das redes de controlo das interacções indesejadas que actuam, internamente, quer sobre os residentes, quer sobre os estranhos. O facto de se tratar de um cruzamento importante, entre a Av. Dr. Arlindo Vicente, uma das ruas principais da circular que rodeia o bairro, e a Rua Ferreira de Castro, o posicionamento mais alto em relação à urbanização, a proximidade dos cafés da Matriz H, da entrada do Parque da Bela Vista e das paragens de autocarro n.o 10 e n.o 104 contribuem para tornar este espaço um centro de passagem e de encontro bastante reconhecível11.
28Embora não se possa afirmar que se realizem as condições para “uma vida urbana intensa”, devido ao aspecto generalizado de isolamento dos espaços públicos do Bairro da Flamenga, este local reveste-se de um carácter simbólico de espaço de convívio e ponto de encontro no âmbito mais geral do bairro.
29Esta marcada característica de espaço de sociabilidade e de circulação socialmente diferenciada parece reforçar a existência de uma fronteira efémera, não formalizada mas sensível, que se poderia traçar a partir das duas empenas dos lotes da Matriz, a partir das quais se acede às habitações pelo complexo sistema de circulação que faz da Matriz H um caso singular no âmbito do Bairro da Flamenga, onde não existe uma fronteira concreta, tangível, entre a via pública e as portas de entrada das habitações particulares. Da observação das práticas de interacção da vida quotidiana, que se desenrola nesta categoria de espaços, emergem claras distinções de organização social, estruturadas pelos espaços relacionais e pelos códigos de conduta que se foram construindo no âmbito de uma cultura local popular urbana.
30Os patamares das escadas, junto às galerias, aparecem frequentemente ocupados por mulheres, às vezes levando ao colo uma criança pequena, jovens ou de idade mais avançada, reunidas em pequenos grupos a conversarem ou a cumprimentar-se antes de se dirigir para as suas actividades. Do mesmo modo parecem ser os lugares preferidos pelos idosos que, nestes espaços próximos da habitação, intermédios entre o espaço doméstico e o espaço público, encontram a possibilidade de se ligar com o mundo exterior, sem serem obrigados a descer as escadas e a sair para a rua. Não é raro, também, vê-los nas galerias, apoiados às guardas, assim como debruçados às janelas, ou seja, nos pontos de interligação com o exterior. Todos estes espaços possuem a capacidade de comunicar a orientação para o exterior. Através destas varandas ou das janelas fala-se com as vizinhas, observa-se o movimento da rua, controla-se o próprio espaço habitacional.
31As crianças são as que mais aproveitam da completa liberdade de movimentos que o sistema de circulação proporciona. As pontes, assim como as galerias, transformam-se no espaço do jogo e das brincadeiras comuns, mas também nos locais para andar de bicicleta e patins. Conforme as circunstâncias, as galerias podem assumir o carácter de pórticos, varandas e terraços. Na galeria comercial os movimentos são predominantemente representados pelos homens adultos. Nos feriados, sobretudo, encontram-se grupos de homens, de idade variável, a maior parte entretidos no jogo de cartas e noutras actividades lúdicas ou só na conversa, como em qualquer tasca de bairro (Figura 4).
32Pode-se assim distinguir um espaço masculino, mais ligado ao exterior, nos passeios exteriores junto à via pública ou na galeria onde se encontram os cafés e o pequeno comércio da Matriz e um espaço feminino, mais ligado à soleira da casa, aos espaços que fazem a mediação entre o domínio doméstico e o domínio das relações de vizinhança12.
Mediações e redes de significados
33Perante este quadro tão rico onde, aparentemente, o modelo de interacção entre habitantes, idealizado pelo projecto, se concretiza, surge, com o dramatismo de um paradoxo, a necessidade muito forte nos habitantes da Matriz H de formalizar o limite entre a rua e as galerias13. Na Matriz H, a partir da soleira de casa, existem vários espaços de mediação, semi-públicos, que definem o grau de aproximação à habitação propriamente dita e, por conseguinte, o nível de proximidade ao limite intransponível da porta de casa. Não estando claro o limite existente entre os espaços colectivos, reservados a residentes e vizinhos, e os espaços públicos, acessíveis a todos, a elaboração de uma hierarquia de espaços de mediação, entre a soleira da porta de casa e a via pública, torna-se muito mais complexa e, por conseguinte, também, a gestão das diferentes relações face-a-face se torna muito mais contraditória no dia-a-dia. A soleira da habitação reveste-se em todas as sociedades de uma carga simbólica complexa, de tal modo que é sobretudo neste elemento aparentemente frágil que se constrói o conceito de fronteira universalmente aceite. Na organização das relações sociais no espaço os processos de diferenciação são sempre activos e propositados14.
34A reforçar a necessidade de formalização da fronteira contribui o facto de a Matriz H estar inserida num bairro constituído por um conjunto de “ilhas”, representativas de “mundos sociais” (Velho, 1999: 22), com particularidades, densidade e fronteiras próprias. Ao carácter de “ilha” corresponde socialmente a elaboração de uma hierarquia de valor dentro do bairro, no sentido da diferenciação social, sendo que a parte alta da urbanização, onde se situam os edifícios das cooperativas, representa um espaço social mais valorizado, do qual as habitações são o símbolo exterior. Ser destinatário de uma casa de realojamento constitui por si só um indicador de pobreza, transporta consigo um inegável estigma social que certamente dificulta o estabelecimento de relações sociais com outras pessoas para além dos familiares e vizinhos. A nível de bairro evidencia-se uma “organização social do espaço urbano, em que há uma interacção permanente de vizinhança entre categorias que ocupam posição bastante desigual na estrutura social, com relações ambíguas de reciprocidade e conflito” (Velho, 1999:16-17). A característica fundamental que define a diferença entre os habitantes da Matriz H e os das cooperativas reside na liberdade de escolha da própria habitação.
35Os grupos em que se estrutura a dinâmica social do bairro, embora com níveis diferenciados de participação nos planos e modos de vida contemporâneos, geram o fenómeno da “metamorfose social”, teorizado pelo G. Velho, como um potencial distribuído desigualmente por toda a sociedade, de conseguir fazer a passagem e o trânsito de diferentes domínios e de experiências mais variadas, como acontece na vida metropolitana contemporânea, mantendo, no entanto, os laços culturais básicos para a conservação da própria estrutura identitária, como família, etnia, região, vizinhança, religião, etc. (Velho, 1994: 29). A análise das práticas no espaço em contextos urbanos contemporâneos manifesta o uso de uma dupla estratégia que visa a integração do moderno, conservando o património cultural original (Lévy e Segaud, 1983: 284).
36A exigência de alterar o sistema de acesso aos lotes, reproduzindo o modelo habitacional existente nas outras matrizes, parece fruto de uma necessidade de integração no mundo dos outros, cujo estatuto social se considera mais elevado. Da mesma forma, as necessidades declaradas de uma maior segurança, o interesse em evitar as interacções sociais de co-presença e a conseguinte reivindicação de um maior isolamento, denunciam uma relação de apropriação negativa em relação ao bairro como um todo e reforçam o carácter de ilha da Matriz. Esta interpretação tem como base a comparação com as práticas nos espaços do Bairro do Relógio, nos quais se verificava a procura de relações de vizinhança e de interajuda, numa constante interacção face-a-face15. Para a compreensão do conceito de “metamorfose” é, assim, preciso abordar juntamente os conceitos de “projecto individual” e de “campo de possibilidades”, que remetem, mais uma vez, para os contributos teóricos e analíticos de G. Velho. Querendo simplificar o pensamento do autor, pode-se afirmar que as práticas dos indivíduos no espaço tomam consistência a partir de projectos sobre as suas vidas que envolvem necessidades de vários níveis, profissional, económico, cultural, de ascensão social, definidas numa constante negociação com as limitações impostas pela realidade social e económica exterior. O conceito de “campos de possibilidades” abre assim ao indivíduo uma vasta gama “de projectos de vidas ou de orientações valorativas” (Cordeiro e Costa, 1999: 78).
37O que parece útil, para a presente análise, é o facto de ser necessário, para a definição mais clara de “campos de possibilidades”, ter em conta a relação com o contexto, na sua dupla vertente espacial e social, na qual o indivíduo está inserido. É nesta perspectiva que emerge a importância da materialidade do espaço construído, com toda a sua carga simbólica e identitária. Assim, se na organização social pode actuar a tal metamorfose, permitindo a intersecção de culturas e de práticas que não excluem a sobrevivência em simultâneo das tradições e da memória peculiares daquela sociedade, o espaço construído mostra, na interacção com os habitantes, os objectos sociais (indivíduo, grupos e instituições) com toda a violência da sua própria inércia (Lévy e Segaud, 1983: 286).
38Ao contrário dos espaços acima descritos, as passagens em galeria que interrompem a continuidade das fachadas dos lotes, permitindo a ligação pedonal entre a rua central e o passeio, são espaços com uma aparência de abandono, ou com carácter privativo para depósito de mobília ou para colocar um estendal ou para estacionar uma motocicleta16 (Figura 5).
39Se a função destas aberturas, prevista no projecto, é a de estabelecer a ligação com o espaço exterior da Matriz H, o facto de não existir uma apropriação positiva, identitária, com o espaço de “fora”, sentido como espaço dos “outros”, não pode realizar completamente o carácter de espaços mediadores entre interior e exterior, igualmente controláveis e reconhecíveis, com base no mesmo código de comportamentos e significados. Os habitantes da Matriz sentem que podem controlar somente o espaço doméstico ou o espaço imediatamente junto à própria habitação.
40A dilatação dos espaços que envolvem a Matriz H, a acessibilidade facilitada a todos, indiscriminadamente, a imediata leitura dos espaços residenciais, da sua organização e disposição no espaço, a possibilidade de atravessar de carro toda a urbanização, sem parar, impede que se crie a “assimetria” necessária entre pessoas do bairro e pessoas de fora. A estrutura em “ilhas” das diferentes áreas espaciais e sociais do Bairro da Flamenga, apenas ligadas entre si pela rede viária principal, dificulta o estabelecimento de relações de continuidade e, por conseguinte, a realização de um contexto semelhante ao dos bairros populares do centro da cidade, onde se possa sentir aquilo que António Firmino da Costa define como “sociedade de bairro”17.
41Outros sinais ou marcas de uma apropriação do espaço com leituras contraditórias são as grades, cortinas, marquises e, mais vulgarmente, as persianas sempre fechadas, que enfeitam as janelas da Matriz H, que podem ser interpretadas como fruto de uma tendência à ostentação, a qual tem um significado social, testemunho de um tipo novo de relação com a habitação (Figura 6).
42É de facto uma característica comum da arquitectura contemporânea, racionalista, apresentar-se como um conjunto totalmente acabado que praticamente não concede campo de acção para acrescentamentos ou modificações. Ao contrário das habitações tradicionais, não se prevêem alterações nas entradas ou nas janelas, em particular a introdução de enfeites ou a escolha de cores diferentes18.
43Além disso, sendo as janelas e as varandas as únicas aberturas da casa para o espaço público, as marcas de apropriação deslocam-se para estes elementos exteriores. Como já se descreveu anteriormente, a vida social dentro da Matriz H passa-se em contextos de co-presença, envolvendo interacção face-a-face constante. O espaço público, assim estruturado, pode tornar-se num suporte eficaz de sociabilidade e ao mesmo tempo de conflito.
44O fenómeno de fechamento não se explica, apenas, pela procura de uma protecção climática ou de relações sociais indesejadas, mas também pela necessidade de olhar sem ser visto: a abertura dos apartamentos para o exterior identifica-se com a abertura directa sobre o espaço urbano-rua, pelo que os limites da tendência à ostentação definem-se dentro de uma complexa relação entre mostrar e esconder, onde mostrar não equivale a abrir, nem abrir a mostrar.
Conclusões
45A observação continuada das práticas decorrentes nos espaços públicos da Matriz H permite concluir que a riqueza e a variedade das relações sociais estão definitivamente ligadas ao sistema articulado e complexo de diferentes modalidades de circulação e acessibilidade que o projecto de arquitectura tinha idealizado. A satisfação das necessidades acontece no quadro da experiência relacional e não apenas funcional, de onde resulta que os espaços vividos assumem uma enorme variedade de soluções possíveis e se tornam suporte material de práticas sociais e representações simbólicas de uma cultura urbana local.
46Considera-se que o principal contributo desta abordagem interdisciplinar a um objecto arquitectónico, ícone das modernas sociedades complexa, e aos seus habitantes consiste em dar alguma visibilidade a uma realidade muitas vezes ignorada ou simplesmente desqualificada como culturalmente subalterna.
47A abordagem antropológica teve como consequência uma constante problematização dos factos observados. Ao tomar conta das variáveis de perturbação da ordem preconcebida e institucionalizada, para dar voz a uma realidade sensorial, subjectiva, relacional e polissémica, concentrou-se a atenção sobre um fragmento, sobre um pequeno núcleo significativo pela sua singularidade, irredutível a categorias definitivas, para deste modo estudar a arquitectura à escala do indivíduo.
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Vilanova Artigas, J. B., 1989, A função social do arquitecto, São Paulo, Fundação Vilanova Artigas.
Notes de bas de page
1 A investigação foi realizada no âmbito do curso de mestrado em Desenho Urbano 1997/98 do ISCTE, sob a orientação da Professora Doutora Graça índias Cordeiro, tendo sido a base de discussão para a dissertação final apresentada em 2002 (Farina, 2001).
2 O “lugar”, no sentido especificado por Norberg-Schulz, é a manifestação concreta do habitar do homem, cuja identidade depende da pertença aos lugares. O lugar é parte integrante da existência, é feito de um conjunto de elementos totalmente qualitativos, ligados à experiência subjectiva (Norberg-Schulz, 1979: 6).
3 Em relação a este tema ver o texto de Lamas (1988: 352, 355). A exaltação social da Arquitectura, na década de 20, foi de tal ordem que a casa para o povo passou a ser o maior monumento do século xx (Vilanova Artigas, 1989: 13).
4 O Bairro da Flamenga corresponde à Zona Nl do Plano de Urbanização de Cheias, da autoria dos arquitectos José Rafael Botelho, Silva Dias e Reis Machado, em 1965.
5 O projecto de arquitectura da Matriz H, datado entre 1978 e 1982, é da responsabilidade do arq. Raul Cerejeiro, arquitecto do extinto Gabinete Técnico de Habitação (GTH) da Câmara Municipal de Lisboa. “Após de 25 de Abril de 1974, foram alterados, não só o conceito de habitação social, como o modo de conseguir os respectivos projectos. Assim, foram abandonadas as quatro categorias previstas no D-L n.° 42 454, instituindo-se a categoria única, cujas características corresponderiam a um misto de anteriores categorias II e III; quanto aos projectos, deixou de ser possível a encomenda a equipas de técnicos trabalhando em profissão liberal.” (Rodrigues, 1986: 227)
6 Estas populações chegaram à cidade sem garantia prévia de encontrar trabalho nem casa, acabando assim por habitar em bairros temporários e alojamentos precários, em várias áreas da Freguesia de Marvila, nomeadamente em Cheias, em zonas como a Azinhaga das Teresinhas, a Q.ta dos Cravos, a Q.ta Nova da Bela Vista, havendo casos pontuais de famílias que temporariamente residiram no Centro de Acolhimento da Q.ta dos Ourives ou no Centro de Realojamento da Zona J. Mais tarde, chegaram também famílias de outras áreas de barracas como a Musgueira Norte, a Rua Padre Abel Varzim e a Rua Pardal Monteiro.
7 O Gabinete Técnico de Habitação (GTH) foi criado em 1959 para responder às obrigações decorrentes da entrada em vigor do D-L n.o 42 454, no âmbito da construção de habitações de custos controlados.
8 É preciso reparar que só 10% dos processos analisados referem o grau de instrução, pelo que todas as conclusões sobre este tema devem ter em conta os poucos dados disponíveis. Faltam geralmente os dados relativos aos filhos, ou seja, à classe de jovens em idade escolar. Permanece desconhecida a profissão de 269 indivíduos, por falta de informação dos dados utilizados. Dos 698 indivíduos analisados, 58 são domésticas, 87 são estudantes e 45 são reformados.
9 Em relação às guardas das galerias e dos patamares de escadas, que na Matriz H representam verdadeiras varandas, parece apropriada a observação que Gordon Cullen faz sobre o valor de certas “linhas privilegiadas susceptíveis de ocupação: a linha ao longo da guarda de uma ponte, por exemplo, parece constituir um local de eleição, pela qualidade imediata da vista que proporciona sobre a paisagem” (Cullen, 1971: 26). Do mesmo modo, parece interessante a definição sobre desníveis, para sublinhar a importância do posicionamento no espaço na dinâmica da interacção: “De um modo geral, abaixo do nível médio do terreno, temos a sensação de encerramento ou claustrofobia enquanto que acima desse nível podemos ser tomados de grande euforia, ou por sensações de domínio ou superioridade ou ainda sentirmo-nos expostos ou com vertigens” (Cullen, 1971: 40). Em relação às galerias, Pierre von Meiss sublinha que se trata de espaços mediadores que embora não garantam quase nenhuma privacidade envolvem, mais do que as janelas, o jogo duplo de observar e de ser observado (Meiss, 1990: 152).
10 Embora com as devidas diferenças históricas, morfológicas e sociais, observa-se um tipo de segregação tal como M. Teixeira observa no caso das “Ilhas” do Porto do século xix, nas quais a separação entre as classes médias e as classes trabalhadoras se realizou em “termos de interior e exterior, mais do que verticalmente ou entre diferentes áreas da cidade”. A morfologia da cidade permitia que a burguesia vivesse nas margens dos quarteirões, enquanto as classes operárias viviam no seu interior, nas “ilhas” (Teixeira, 1996: 83).
11 Como afirma K. Lynch, a cidade estrutura-se sobre um conjunto de ruas, sendo os pontos de intersecção, pontos estratégicos, nos quais o observador pode entrar, típicas junções de vias, ou concentrações de algumas características (Lynch, 1960: 84).
12 No quotidiano que se desenrola nos espaços juntos às habitações particulares, é possível observar “processos de vizinhança” (Costa, 1999: 306), pouco diferentes dos que se poderiam observar num bairro popular da cidade. No estudo antropológico sobre o Bairro da Bica, Graça Cordeiro observa: “As refeições, o som da televisão, as brincadeiras infantis, as conversas, as emoções, tudo o que faz o quotidiano de uma casa aqui, na Bica, faz o quotidiano da sua rua. [...] Não quer isto dizer, no entanto, que não existe uma fronteira clara entre o espaço doméstico, privado, e o espaço público da rua. A existência inequívoca deste limiar fica bem ilustrada pela importância dos encontros à soleira da porta. Com efeito, a comunicação entre vizinhos-e, muito em particular, entre vizinhas-estabelece-se à janela, sobre os degraus da entrada, à beira da rua e de casa, neste espaço público ainda securizante que circunda a própria casa” (Cordeiro, 1997: 192 e 193).
13 Através do Gabinete de Bairro, a população solicitou ao arquitecto Raul Cerejeiro a alteração do sistema de acesso às habitações, criando a porta de entrada a cada lote e fechando os vãos de escadas respectivos.
14 As fronteiras são selectivamente permeáveis: algumas pessoas são admitidas ou excluídas, assim como vários domínios e estruturas podem penetrar profundamente e outras muito superficialmente. O conceito de fronteira remete para o conceito de espaço de mediação, porque é nesta categoria de espaço que se estabelece o grau de intimidade na interacção face-a-face, e que se define um código de comportamento aceite por todos (Rapoport, 1994: 482).
15 Esta questão introduz o problema da definição da categoria sociológica de “estranho”, para a qual George Simmel (1908) fez uma distinção significativa entre “culturalmente estranho”, ou seja, alguém que ocupa um mundo simbólico diferente do nosso, e o “estranho biográfico”, ou seja, aquele que nunca encontrámos antes. Ambas as categorias são importantes na definição das práticas de interacção no espaço público (Lofland, 1998: 7).
16 Poderiam ser incluídos naqueles tipos de espaços que Kevin Lynch define como sendo categorias de interesse directo para o design, pois descrevem qualidades de que um desenhador se pode servir como é o caso do alcance visual, “qualidades que aumentam e organizam uma possibilidade de visão, quer real quer simbólica”. Estas qualidades incluem as transparências, realizáveis através do uso de paredes de vidros ou de edifícios assentes em pilares (Lynch, 1960: 118-119).
17 “Sociedade de bairro como as que se encontram em Alfama ou na Bica surgem pois, como casos de um tipo especial de configurações sociais, caracterizáveis pela redundância estruturante de um conjunto de dimensões interligadas: não só espaços residenciais mas também formas urbanas particulares, quadros sociais densos e multifacetados, sedes privilegiadas de sociabilidades, cenários de produção cultural própria e referentes de representações identitárias destacadas” (Cordeiro e Costa, 1999: 73).
18 A inspiração estética subjacente às paisagens urbanas modernas, originada pela criação de um estilo apropriado à produção industrial em massa, exclui quaisquer pormenores feitos à mão e qualquer sinal de trabalho especializado que chame a atenção (Relph, 1987: 216-219).
Auteur
Arquitecta.
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