Capítulo 5. A rua dos polícias. Visão itinerante
p. 79-96
Texte intégral
“É preciso ter ‘mundo’ para ser um bom polícia” Agente, 5 anos de patrulha em Lisboa.
1Este texto propõe uma leitura sobre “as ruas dos polícias” em dois sentidos1. Por um lado, procura examinar como os agentes percepcionam os territórios, os bairros e a cidade no decurso do seu trabalho. Por outro lado, demonstra como os agentes nos seus serviços socializam profissionalmente as ruas e são actores essenciais na produção de ordens socioespaciais, negociação de poder e de ordens morais para a cidade. A análise irá deter-se em padrões de policiamento no espaço para, de seguida, detalhar três sequências dos principais serviços de esquadra. Estes centram-se nas rotinas de agentes que patrulham a pé (os chamados apeados2), de uma dupla de polícias que circula no carro-patrulha e de uma agente de um dos programas da proximidade (APOIO 65 – Idosos em Segurança). A circulação dos polícias pelos lugares sublinha distinções territoriais e padroniza uma relação moral com diferentes bairros e partes da cidade, uns mais policiados do que outros, uns mais “controlados” e outros mais “protegidos”. Tais tendências são profundas e reflectem, como se verá na secção final, os limites impostos à proximidade na cultura profissional policial.
2A esquadra tomada como caso tem uma área de supervisão policial que abrange vários bairros contíguos num raio de 1,5 km, e surge expressa no mapa de giros do Plano Oficial de Policiamento de Área (fig. 1). Um destes bairros, onde está sediado o edifício da unidade, caracteriza-se pelo seu comércio tradicional, com afluência de residentes e visitantes, o que implica intensa circulação automóvel. A maioria dos prédios, embora quase todos construídos entre finais do século xix e a década de 1960, estão em bom estado de conservação. A população residente é heterogénea, mas tendencialmente de classe média, crescentemente envelhecida e na grande maioria de origem portuguesa. Os polícias quando se referem a este bairro da área consideram-no a parte de cima; dizem ser frequentada por pessoas respeitáveis, também designadas gente de bem. Neste bairro os agentes produzem tácticas de “visibilidade passiva” do policiamento.
3Por contraste, quando se referem à fatia de bairros degradados e de realojamento social, onde são conhecidas práticas de tráfico de droga, os polícias chamam-lhe a parte de baixo. Ruas mal-afamadas de bairros problemáticos, como designam os agentes, também conhecidos por “bairros difíceis” (Roncayolo, 2003: 70) ou “sensíveis” (Katane, 2002) – gírias que são de uso generalizado e que fundam uma teia de interpretações cruzadas entre os media e a polícia (Gill, 1977) – misturam-se com ruas pobres, de habitação precária. Chamam-lhes também os bairros da droga, onde identificam os mitras, traficantes ou delinquentes de rua, e os consumidores, a quem denominam carochos (Durão et al., 2005). As viaturas policiais e os agentes a pé circulam num estilo marcado por uma “visibilidade ostensiva”, onde o objectivo é “ter o território controlado”, auto-sustentado e, sobretudo, não deixar escapar os problemas e os delinquentes para a parte de cima.
4Algumas zonas de fronteira tendem a não ser assumidas como ruas a policiar. Estas são subpoliciadas, pouco visitadas nas rotinas policiais, sobretudo quando comparadas com outras recorrentemente percorridas. O exemplo mais marcante é o que diz respeito a todo um bairro (dentro e a norte do giro n.o 10, fig. 1). Trata-se de um bairro considerado pelos polícias como pobre e degradado. Nestes lugares, verdadeiros “ermos policiais”, os agentes não reconhecem problemas criminais ou outros que convoquem a sua atenção diária. Apenas os visitam para resolver emergências. Tais lugares vão caindo no esquecimento das teias de sentido da patrulha e têm escassa presença nas cartografias profissionais. Enquanto se distribuem pelos espaços os agentes actuam de modo selectivo – estão sobrerepresentados em alguns lugares e desaparecem, por ausência de rotina, de outros – e ajudam, assim, a produzir uma “cidade não-sincrónica”, com diferentes temporalidades (Roncayolo, 2003: 61). As distinções evidenciadas no mapa traduzem um certo acidentado geográfico no território mas, sobretudo, a divisão moral e social expressa em diferentes roteiros policiais para o espaço.
5Quando olhados do prisma organizacional, os serviços do policiamento na maioria das esquadras de Lisboa contêm em si importantes diferenças históricas. O serviço apeado é a mais antiga forma de patrulha. Foi a partir da noção de itinerância a pé que se criou a ideia mesmo de policiamento, na expansão de um modelo de “polícia das cidades para o Estado” desde o século xviii (Napoli, 2003). O patrulhamento automóvel tem um ciclo de vida mais curto. É recente na história da polícia portuguesa e ganhou expressão nas maiores cidades do país ao mesmo tempo que se introduzia um dispositivo técnico de intercomunicadores para resposta a emergências, na década de 1960. A patrulha de automóvel viria a sofrer forte incremento na década de 1990, quando foi reorganizado o modelo operacional durante breves anos, substituindo as esquadras “de bairro” por divisões concentradas (Gomes et al., 2001), o que desterritorializava a acção policial. O modelo de policiamento centrado em esquadras, mais inseridas nos contextos urbanos, seria retomado no final da década, já inspirado pelas novas filosofias de proximidade entre polícias e citadinos (Costa, 1996 e 2002). Mas em dez anos de experiências, os programas da proximidade mantiveram-se relativamente autónomos das restantes actividades da patrulha (a pé e de automóvel).
6Torna-se então necessário mergulhar nas rotinas do policiamento e descrever três “sequências de policiamento” em diferentes serviços. As sequências são aqui entendidas como sucessão de “trajectos” com “fluxos recorrentes no espaço” (Magnanni, 2003), mas delimitadas no tempo. Assim, estas são desenhadas pelos agentes a partir da coincidência entre duas referências espácio-temporais: a área supervisionada e o turno de serviço. A análise permite evidenciar como as diferenças entre os serviços não são meras valências funcionais mas implicam efectiva mudança de filosofia e cultura policial.
Agentes apeados
7No turno das 13 às 19 horas, num dia de Primavera, dois agentes, em patrulha dobrada, saem da esquadra em direcção ao giro 10 (fig. 2), na parte de baixo da área. A dupla é composta por um agente com um ano de esquadra, considerado ainda um maçarico algo inexperiente, e um outro com cinco, considerado um agente rodado. Geralmente a patrulha limita-se a um conjunto de ruas próximas onde os agentes circulam, fazendo render o tempo do turno que antecipam sem grandes incidentes. Depois de entrar ao serviço, os agentes fazem uma primeira paragem num bar conhecido, próximo da esquadra3. Passado mais de uma hora chegam à rua mais policiada do giro, onde se considera estar o coração do tráfico da área, o bairro da droga. Até lá os agentes andam num ritmo vagaroso, diz-se que pisam paralelo. Têm disponibilidade e tempo para sociabilizar entre si, para conversar, para falar dos seus problemas e da difícil gestão entre a profissão e a vida familiar, das tensões com superiores ou, simplesmente... olhar em frente, para o movimento. Por isso os agentes preferem patrulhar em duplas. O efeito que provocam nas ruas onde se conhecem pontos do mercado de droga é geralmente simples: fazem mover os traficantes e os compradores de uma parte da rua para outra onde não se encontra, nesse momento, presença policial. Desta forma, há um certo pudor, uma certa regulamentação e disputa pelos territórios entre agentes, residentes e pequenos traficantes. Quando surge a informação, pelo rádio portátil (que os liga a uma central policial), que um toxicodependente se precipitou dum penhasco, a dupla decide descer à clareira para observar o acidente. Uma ambulância do INEM chegou antes ao local e irá transportar o sujeito para o hospital, ainda vivo. Os agentes aproveitam para regular o trânsito. Finda a operação, sobem novamente por um descampado. O agente mais rodado pára um toxicodependente sem-abrigo conhecido na área e espanta um outro. Obriga-o a tirar todos os seus pertences da mochila e esmaga-lhe as lamelas dos comprimidos com o pé. O encontro é marcado pela hostilidade. O polícia contém-se, mas verbaliza o anseio de dar uma bastonada naquele que há anos se recusa colaborar com os polícias, negando informações sobre “o que não vêem”4. Na situação, o agente mais jovem diz-se “uma pessoa pacífica” e rejeita o convite do colega no sentido de ser ele a dar a bastonada, como uma espécie de iniciação no uso da força5. Findo o encontro, os agentes dirigem-se à praça principal do bairro da droga, aí permanecendo algum tempo a observar os transeuntes. O mais rodado interpela um suspeito e pede informações sobre o tráfico de droga, mas os contactos são reduzidos. Durante quase uma hora, parados, vêem-se também passar vários carros policiais da unidade das brigadas à civil da divisão e adivinha-se a presença de agentes da Polícia Judiciária. No momento em que os agentes de uma carrinha da secção do piquete da divisão (unidade mais reactiva) chega ao local, contribuindo para a imensa presença de policiamento, os apeados concordam que a sua visibilidade deixou de ser necessária no local. Antes de regressar à esquadra para a rendição do turno seguinte, a dupla volta às ruas da parte de cima, pára num bar e, por fim, regressa à esquadra “sem novidade”, sem ocorrências a registar.
Carro-patrulha
8Os agentes do carro-patrulha dão entrada no turno das 13 às 19 horas num dia de semana de Junho (fig. 3). Neste caso, o condutor e o arvorado trabalham juntos, no mesmo serviço, há pelo menos um ano6.O primeiro tem oito anos de experiência na esquadra, quase todos passados a conduzir a principal viatura policial, e o segundo quase seis anos de patrulha, vários como arvorado. A dupla aguarda a chegada dos agentes do carro-patrulha que irão render. Foram informados de que os mesmos estão envolvidos numa ocorrência complicada na área da esquadra vizinha. Num prédio devoluto foram encontradas urnas que parecem conter carcaças de animais. A ocorrência ficará conhecida como o “caso das urnas”7. A rendição é efectuada na esquadra, mas a nova dupla tem de voltar ao local. No prédio, sobem ao último andar e todos são convidados a observar as urnas e o sórdido ambiente. Um dos arvorados tira impressões para escrever. Os agentes contactam o Instituto de Medicina Legal e a Polícia Judicária, para poderem voltar ao giro (aqui significando o movimento e não a unidade territorial). O agente responsável pelo caso é reconduzido à esquadra, onde fica a elaborar o processo. A dupla de agentes segue na viatura e pára num bar da área para a primeira pausa do turno. Nessa altura, recebem uma chamada da esquadra. E preciso conduzir um colega doente à paragem do autocarro8. O carro regressa à esquadra e conduz o agente ao local. Daqui em diante, o circuito far-se-à pelas ruas dos bairros da parte de baixo da área. É nestas que o carro-patrulha prefere girar, entre as chamadas que o podem levar a qualquer ponto da área. Encostam o carro na rua mais conhecida do tráfico e saem quando avistam dois transeuntes de raça negra, como dizem, que consideram suspeitos, talvez novos traficantes. Os traficantes locais já estão todos referenciados. Pedem-lhes identificação e ameaçam: “Não os queremos voltar a ver por aqui”9. Voltam ao carro-patrulha, sempre a girar. A certa altura o condutor decide regressar à esquadra para tratar de um assunto pessoal. Passado algum tempo regressamos às ruas para transportar informação escrita até à sede da divisão (unidade que supervisiona a actividade de várias esquadras), situada fora da área da esquadra. Sensivelmente a meio do turno surge pelo rádio uma chamada para uma ocorrência: “furto de viatura com acidente”. Os agentes ligam as sirenes e conduzem a alta velocidade até ao local do acidente, onde está apenas o condutor e a viatura em quem o assaltante, com o carro em fuga, bateu. Os agentes certificam-se de que não existem feridos. O arvorado informa-se da situação junto das pessoas visadas e comunica uma síntese do que se passou para a central, pelo rádio. O trânsito é temporariamente alterado e os agentes ficam a regulá-lo até ao retomar da normalidade. Toda a operação faz com que o carro-patrulha permaneça sensivelmente uma hora no local até que chegue a brigada de trânsito que foi chamada. Sabe-se pouco depois, pelo rádio, que o assaltante foi interceptado noutra área por colegas de outra esquadra, de um outro carro-patrulha. Os agentes manifestam a sua satisfação10. Voltam à sede da esquadra e transportam o registo do “caso das urnas” até à esquadra vizinha, onde este será arquivado. Já próximo do final do turno, os agentes do carro-patrulha fazem uma paragem num bar. À saída, na rua, o condutor interpela uma mulher, que parou com a viatura no semáforo, porque leva uma criança sem cinto de segurança. A condutora corrige11. Antes da rendição o carro-patrulha é ainda chamado à esquadra e levanta os registos do dia que irá conduzir à sede da divisão. Regressam por fim à esquadra para redigir o relatório do serviço e registar a ocorrência.
Apoio ao Idoso
9Em boa medida, os agentes dos programas de proximidade representam a terceira via do policiamento de esquadra. O ciclo da itinerância não é tão marcado por definições territorais (como é para os apeados), nem pela resposta a ocorrências (como é para o carro-patrulha). No serviço Apoio ao Idoso a rotina implica contactar idosos, lares e centros de dia das redes de misericórdias locais. No turno das 7 às 14 horas de um dia de Inverno, acompanho uma agente no seu percurso e tarefas (fig. 4). Esta começa por escrever uma participação sobre um sujeito que tem danificado viaturas de vários residentes. Neste caso, a agente usa os decretos e despachos necessários para narrar os factos no contexto da “burocracia de rua” (Lipski, 1980). Previamente usou a sua “arma” preferida, a conversação, insistindo na incivilidade, já ameaçando o infractor com as “escritas da lei”. Como este voltou a actuar nas ruas e produziu vários estragos materiais em bens privados, a agente viu-se obrigada a “informar a quem de direito”. Terminada a participação, decide ir para a rua. O seu trajecto é quase sempre o mesmo, da esquadra até um pequeno jardim situado no coração do bairro (da parte de cima), onde geralmente encontra vários idosos seus conhecidos. Até chegar ao destino, durante o caminho, esta agente é constantemente interpelada por comerciantes locais e idosos cambaleantes. Falam-lhe das doenças que transportam, do mal-estar da velhice, de alguns problemas de vizinhança e familiares, e alguns agradecem-lhe a ajuda que lhes prestou em certo momento das suas vidas. Perguntam-lhe pelo filho. Algumas mulheres prometem oferecer pequenos presentes para a criança. Quando chega ao jardim, continuam os contactos com idosos. A agente é prestável e, em alguns casos, insiste para que procurem ajudas institucionais ou para que “arrebitem e se animem um pouco”. Alguns conservam o número do telemóvel do programa, por vezes anunciam visitas à esquadra, ou pedem-lhe para passar nas suas residências. É conhecida pela “menina agente”. Depois dos contactos, a polícia dirige-se à rua e porta de um prédio onde vive uma idosa isolada que não sai de casa há vários meses e que começa a ser considerada um perigo para si mesma e para a saúde pública. O caso foi sinalizado pelos vizinhos. A agente já tentou contactar a senhora, mas não conseguiu. Está a estudar a melhor abordagem a desenvolver. Sempre que passa pela rua vai pensando no que fazer. E segue. Hoje tem um objectivo concreto: visitar dois centros de dia com informação sobre um burlão que anda a actuar na área e que já enganou duas velhinhas. No primeiro centro de dia, numa sala anexa à igreja central, a agente é entusiasticamente recebida. Uma vintena de idosos, dispostos em várias mesas, aguardam as refeições. Esta é a melhor hora para os visitar porque a polícia sabe que irá encontrar um grupo grande. Em tom informal, mesa a mesa, alerta para o perigo de abrir a porta de casa a estranhos, da forma como os burlões enganam os mais velhos e pede que se tiverem alguma suspeita ou caso a informem. No segundo centro, também anexo a uma igreja, mas com uma população menos empobrecida, a agente alerta para os mesmos problemas. Findo o turno, regressa à esquadra onde a aguarda o colega que irá desempenhar o trabalho da parte da tarde, enquanto redige o relatório de serviço.
Saberes socioprofissionais e urbanos dos agentes
10As sequências da acção policial, quotidianamente repetidas, expressam diferentes prioridades profissionais e variações determinantes na relação que os polícias estabelecem nos bairros, no contexto comunitário em que operam e com as pessoas com quem interagem. Tal evidencia diferentes saberes desenvolvidos na actividade de policiar.
11Embora os agentes apeados tenham margem de liberdade para definir percursos, o pedaço de área policiado é predefinido. O desenho da sequência no mapa (fig. 2) evidencia que o raio de acção é relativamente reduzido e o território policiado circunscrito. Nunca chegam a percorrer num turno a totalidade da área de esquadra. Este é um serviço de extrema exposição pessoal, onde os agentes estão à mercê de serem a qualquer momento solicitados na rua. Trabalham para a imagem da organização. A sua presença nas ruas produz-se no sentido de estarem simplesmente presentes, em cada esquina e em cada lugar. O objectivo é sobretudo demover os citadinos de prevaricar, inibir e desencorajar actos ilícitos. Assim, as ruas seleccionadas pelos agentes para a itinerância mais rotineira são aquelas onde podem ser vistos, ruas frequentadas e movimentadas, e menos as mais obscuras e escondidas da cidade. Tal táctica acaba por protegê-los de algum perigo a que possam estar expostos. Quem percorre as ruas mais escondidas ao ponto de as conhecer a fundo são ou os agentes à civil, “invisíveis”, ou pelo menos mais “destemidos”, porque sem farda, ou os agentes do carro-patrulha, até onde o veículo lhes permite penetrar.
12Numa certa medida, os agentes apeados são os polícias socialmente mais controlados. Primeiro, têm menos liberdade e são mais supervisionados pela organização e pelos superiores. Segundo, são controlados pelo próprio público, na medida em que deles se exigem determinados comportamentos de simpatia e conhecimento da cidade. De acordo com os agentes experientes dos carrospatrulha, os apeados são ironicamente designados como guias turísticos e, num sentido mais crítico, como os cabides da organização.
13Por isso os apeados defendem que o serviço pode ser física e psicologicamente desgastante. A pressão interna dos superiores para que estes agentes produzam indicadores criminais colide com a pressão externa quando os polícias são mais interventivos nas ordens sociais locais. Muitos agentes preferem defender a sua própria imagem, pessoal, poupando-se a intervir em situações irregulares. Pressentem que as mesmas lhes trarão dissabores junto de residentes dos bairros que revêem diariamente, sobretudo nos bairros da parte de cima.
14Quando a actividade se reduz à simples produção de visibilidade as pausas podem ser verdadeiras ocorrências e quebrar rotinas, onde os turnos são longos e o tempo custa a passar. A intensa sociabilidade entre colegas e a escuta de comunicações (pelo rádio) lembram, a todo o momento, que o trabalho considerado profissional (ou operacional) está a ser desempenhado por colegas automobilizados. Se é verdade que as interacções com citadinos se dão em situações relativamente pouco problemáticas, à excepção dos problemas de estacionamento, que podem atingir grande animosidade, a actividade, por ser pouco exigente em termos profissionais, é encarada como monótona. A norma é findar o turno à hora certa, chegar junto à banca e declarar: “Serviço sem novidade” (frase que entretanto é usada pelos agentes do carro-patrulha para ridicularizar o serviço apeado). Para a maiora dos agentes, passar pela patrulha apeada é uma fase obrigatória da vida profissional, sendo que é para os carros que a maioria dirige as suas apetências. Chegamos assim à situação paradoxal do serviço: se na organização o estatuto do apeamento é quase nulo, frequentemente desconsiderado e muitas vezes indesejado, na comunidade ele continua a ser requerido e a tradição do “polícia em cada esquina” uma exigência social recorrentemente reclamada.
15Pode dizer-se que a patrulha automóvel surgiu, em parte, para desterritorializar a actividade, cada vez mais assente na resposta a ocorrências e num comando à distância (via rádio). A circulação gerada pelo carro-patrulha, o rodar ou o girar, como lhe chamam, é um intervalo contínuo entre as chamadas a ocorrências, que desencadeiam a acção (fig. 3). Ao contrário dos apeados, aqui o que define os circuitos não é um conjunto de ruas para onde os agentes se devem dirigir. Esta viatura está na base de uma perspectiva de polícia como serviço de emergência. O serviço define-se pelas exigências da cidade, dos habitantes que usam a polícia sobretudo para restabelecer ordens locais e intervir em conflitos que eles mesmos são incapazes de resolver. O objectivo dos agentes é chegar aos locais e resolver os problemas que encontram, quer logo situacionalmente e num plano de mediação directa, quer num plano legal e já envolvendo processos escritos, remetendo para uma mediação indirecta. Este serviço trabalha para os resultados da esquadra, pois, em grande medida, é ele que evidencia e dá visibilidade ao trabalho da unidade no contexto da organização. Durante o turno são os agentes do carro que produzem indicadores policiais e criminais, diz-se que “trabalham para a estatística”12.
16E perceptível no mapa que o raio de acção do carro-patrulha na área é extenso e em alguns casos pode mesmo extravasar os limites administrativos de supervisão para cada esquadra. Os agentes das viaturas trabalham em rede, entre eles, criando uma outra escala de interacção paralela à da esquadra. Por isso é que os polícias do carro-patrulha de uma esquadra procuram geralmente reforço num congénere de outra esquadra, e não nos agentes apeados ou noutras viaturas da unidade a que pertencem. Só em casos graves o reforço policial a estes implica o carro-visível, conduzido por agentes, e a viatura da divisão, o carro-satélite (que transporta o supervisor, um subchefe na rua). Os territórios observados são amplos e os acontecimentos que convocam a presença do carro-patrulha muito variados. Tal faz com que neste serviço os agentes controlem micromovimentos e relações sociais das ruas que só muito tibiamente se dão a observar aos apeados e a agentes nos restantes serviços.
17Os agentes do carro estão mais libertos de constrangimentos sociais e organizacionais directos do que os apeados; diz-se que estão menos expostos e que estão protegidos das ruas pela viatura. Por seu lado, a organização apenas lhes pede que estejam operacionais para responder a ocorrências. Têm ampla margem de escolha nas suas itinerâncias e as opções de circulação dependem das rotinas estabelecidas por cada dupla no carro. Assim, não só têm mais amplitude de circulação como mais liberdade para gerir os giros e as ruas da itinerância. Tal circulação tem as suas selectividades. Ou percorrem ruas onde possam observar ilicitudes, mesmo que à distância, ou, pelo contrário, estacionam em pequenos refúgios públicos (pátios, ruelas, vielas, becos sem saída, jardins...) onde possam repousar do movimento das mesmas.
18Para os agentes do carro-patrulha a surpresa e o imprevisto são uma rotina. Nenhum agente que entra neste carro sabe exactamente se sairá a horas ou se irá ter de interromper as férias ou as folgas para testemunhar em tribunal por um caso que assinou. Quando o turno começa nunca se prevê como irá ser, se acelerado ou calmo, ou a que horas será concluído. A variação pode depender de algumas dinâmicas de grupo e de patrulha. Diz-se que uns agentes “atraem serviço”, que poucos chegam mesmo a “procurar serviço”, provocando ocorrências, e que alguns “fogem do serviço”. Mas o que define a dinâmica são as chamadas locais. O tempo das ocorrências nem sempre se encerra no tempo burocrático dos turnos. As ocorrências podem ultrapassar os horários de trabalho, envolver os agentes em operações, averiguações, identificações, pequenos interrogatórios, registos, etc. O serviço implica uma dedicação e amor à camisola, como dizem. Muitos agentes quando falam do que os atrai na polícia referem a liberdade das ruas, a possibilidade que lhes oferece a movimentação do carro, a operacionalidade e a maior capacidade de contornar a monotonia e previsibilidade dos serviços apeados.
19Assim, os turnos podem ser preenchidos por ocorrências. Mas a cidade também pode estar silenciosa e não ocorrerem chamadas, como nos mais calmos turnos nocturnos. Nessa altura é preciso saber viver as paragens com pausas simples, subtraídas à obrigação da visibilidade. Quando os turnos são muito operacionais diz-se que o tempo de trabalho voa; quando são parados tornam o tempo da patrulha interminável e pesado. A rua do carro-patrulha é, simultaneamente, a rua das ocorrências e situações e a rua ampla, lata, multiforme e polissémica. Os acontecimentos que requerem a presença policial imediata são a razão de ser desta viatura. Os encontros com citadinos estão geralmente restritos a um quadro de tensões e conflitos, o que faz com que se acredite que são estes quem tem mais problemas no trabalho. Esta é a característica que torna o serviço desgastante, o facto de “lidar com a humanidade no seu pior”, como me referiu um arvorado.
20O serviço é desejado pela comunidade como serviço de urgência, para resolver problemas, mas, à sua passagem, o carro é percepcionado como distante e algo desinteressadamente pelo citadino transeunte. Do ponto de vista organizacional este é o serviço de esquadra mais valorizado, para onde os agentes devem evoluir e onde trabalham os mais carismáticos. Simbolicamente o carro-patrulha é hoje mantido como o ex-libris das esquadras e os agentes mais séniores e experientes muito considerados dentro das unidades.
21Por fim, a actividade desenvolvida nos programas da proximidade orienta-se a partir de uma rede de relações interpessoais e na interacção face-a-face com pessoas, grupos e instituições locais. O serviço deixa de ser a imagem da organização “na” comunidade para passar a ser a relação da organização “com” a comunidade. Há toda uma mudança na forma como a actividade é referenciada no território (fig. 4). São os encontros que marcam os turnos e a orientação das sequências é condicionada por estes. Assim, as sequências percorridas são geralmente curtas e entrecurtadas pelos contactos. O movimento da agente fazse pelos lugares onde estão as pessoas, nas residências, centros de dia e lares, jardins públicos, mercados e lojas... O ritmo da actividade é mais constante, as pausas menos centrais nas rotinas. A agente trabalha para ajudar a encontrar soluções de subsistência para pessoas carenciadas, que podem incluir formas de segurança e higienização dos bairros. A função deixou de ser precaver e inibir comportamentos ou resolver situações e passa, sobretudo, por apontar soluções para problemas de pessoas. As soluções são aqui menos provisórias do que no caso do carro-patrulha e tendencialmente menos penais.
22O sistema de comunicações interno é menos determinante na actividade da proximidade. O uso dos telemóveis abriu uma via de comunicação directa entre os agentes e a comunidade, sem passar por uma central ou pela esquadra. Todavia, os agentes da proximidade podem passar mais tempo na sede da esquadra, a tratar de assuntos burocráticos ou a estabelecer contactos interinstitucionais. São ali frequentemente visitados por idosos ou comerciantes que já os conhecem. A proximidade levou assim mais citadinos às esquadras, promovendo a abertura da sede policial local à comunidade.
23Os turnos são relativamente previsíveis e até mesmo programados. A aleatoriedade, embora sempre presente nas itinerâncias dos agentes de esquadra, é aqui reduzida como princípio de circulação pela cidade. A percepção do tempo depende da “agenda” de cada polícia, das tarefas que cria, do grau de iniciativa e do investimento de cada um no trabalho. Não só os agentes estão mais expostos à comunidade local como desenvolvem, frequentemente sem treino e no decurso da prática, estratégias de comunicação, neste caso com os idosos. Com a especialização surge uma certa desvinculação de tarefas tradicionais da patrulha. Estes agentes geralmente não se representam como vulgares patrulheiros.
24Os agentes da proximidade têm um conhecimento mais profundo dos problemas sociais perenes das cidades, como a pobreza e o isolamento extremos. Muitos manifestam a impotência do serviço policial para resolver problemas sociais. Na cultura profissional os serviços da proximidade avivam as ambivalências profundas e tradicionais do mandato policial: entre apoiar e controlar (Cumming et al., 1973). Isto gera resistências e adesões, dividindo os agentes entre si e, em geral, apontando fortes resistências por parte de quem foi socializado na patrulha.
25Não por acaso, a proximidade surgiu como uma das formas para a organização conservar as mulheres agentes nas esquadras sem ameaçar o status quo masculino tradicional (Durão e Leandro, 2003). Quase todos os programas têm geralmente um elemento feminino. Na verdade, não é fácil para os comandantes seleccionar agentes masculinos para os programas. Primeiro, porque estes tendem a ser vistos como “serviços sociais” e por isso rejeitados pela maioria, argumentando que não desenvolvem “verdadeiro trabalho policial”. Segundo, o colectivo das esquadras de Lisboa é geralmente muito juvenil e a maioria dos agentes está numa situação de passagem (num movimento acelerado de mobilidades entre outros serviços, esquadras, comandos do país, etc.), o que reduz o tempo e a “tradição” necessários para implementar relações locais sustentadas pelas afectividades do interconhecimento. O saber territorial dos agentes da proximidade e a sua actividade baseia-se numa rede de relações interpessoais que vai crescendo com o tempo de permanência na esquadra, com o “tempo dos afectos” e com discussões intermináveis com os seus colegas para os convencer da intencionalidade e utilidade da sua acção. A partida dos “militantes da proximidade”, como lhes chama Katane (2002: 73), para serviços mais prestigiados ou para outras cidades leva a colocar em causa todas as redes estabelecidas e por vezes conduz ao questionamento dos próprios serviços “que apenas se mantêm por decreto oficial”, como me referiu um comandante.
26Neste serviço, mais do que em qualquer um dos outros, a actividade tende a coincidir com o polícia executante. Em quatro anos de permanência na esquadra – que coincidiu com o tempo de implementação do programa desde 2000 – a agente elaborou uma lista de 100 casos de idosos que procura de alguma forma apoiar. No dia em que for transferida para o Porto, seguindo o seu marido, também ele agente13, todos sabem, na esquadra e nas várias instituições locais, que os idosos irão chorá-la. E que, neste caso, o serviço é a agente. Do prisma dos citadinos os serviços da proximidade têm rostos, não apenas fardas.
Mudanças e continuidades na patrulha e proximidade
27A cidade é em grande medida a relação pessoal que estabelecemos com ela, a cidade relacional, da rua, dos percursos, da paisagem, da deambulação e da conversação. A cidade deve ser aprendida. “Le trajet dans 1’espace urbain est à la foi enseignement et découverte” (Roncayolo, 2003: 62). Os agentes, na sua socialização profissional das ruas, estabelecem diferentes roteiros do policiamento e desenvolvem diferentes saberes contextualizados que, com base no que foi dito, merecem agora ser sintetizados. Os agentes apeados apoiam-se sobretudo num saber “toponímico” e observacional, num saber pedestre. Nas suas itinerâncias vão olhando as placas com os nomes das ruas em cada esquina e com a persistência dos dias acabam por fixá-los e por organizar cognitivamente uma visão de conjunto. A imagem mental da área produz-se pela experiência. A percepção do meio envolvente é um itinerário contínuo de movimento, um “path of observation” (Gibson, 1979; cit. in Ingold, 2004: 331), estando a percepção e a cognição dependentes do modo como se anda, da locomoção. “Walking is itself a form of circumambulatory knowing” (Ingold, 2004: 331). Há uma inteligência do andar. Os agentes interpelam alguns citadinos, mas podem passar-se muitos turnos em que não iniciam contactos interpessoais e não são solicitados senão para informações geográficas localizadas. Toda uma socialização profissional é feita através do movimento pedestre, nas “enunciações pedonais” (De Certeau, 2000 [1990]: 109). Nas primeiras vezes que pisam as ruas os agentes aprendem a não se perder no território e a fazer-se socorrer pelo rádio que os liga à organização. Durante o período da reciclagem, um mês em que geralmente são acompanhados por agentes mais velhos em patrulhas a pé, é suposto que os agentes percam o “medo da rua” e que se reconheçam como agentes da autoridade. Muitos polícias, quando começam a patrulhar a sós, apenas vários meses depois, e à medida que se familiarizam com o território, se reconhecem na função e na farda que vestem: “E viver com a pressão da farda e de na rua ser sempre um alvo”, como referiu um agente.
28Os agentes no carro-patrulha conquistam um saber “topográfico”, operacional, de tendência mais actuante e legal. Por percorrerem a área em toda a sua extensão e responderem a ocorrências em muitos lugares, estes agentes controlam um saber intersticial dos contextos ímpar na organização. Tal saber leva-os mesmo a desafiar a ordem hierárquica e a reafirmar as ruas como o “seu território”. Por exemplo, quando o oficial de dia14 procura localizar um carro-patrulha nas longas madrugadas, os agentes podem iludi-lo, estacionando em ermos e ladeiras da área que na hierarquia policial só eles conhecem e “dominam”. Com os anos, e com a conquista da possibilidade de fazer trabalho mais operacional, nas viaturas policiais, os agentes recentram a sua atenção nos casos, situações, ocorrências, nos mitras. Há como que uma reaprendizagem de funções que deixa de estar assente na relação directa com o território, mas antes o usa para os seus fins. Sobretudo em turnos mais movimentados, as ruas são percorridas para chegar a ocorrências. Estas são o intervalo de tempo-espaço entre o seu centro de interesse: os distúrbios, as desordens, os eventos policiais. Ambos os serviços, patrulha apeada e auto, são marcados por uma certa distância face aos citadinos, mantendo os contactos e interacções sociais reduzidos ao mínimo. Por isso estes polícias dizem trabalhar para o público. O lema que defendem é: “Não nos podemos envolver muito. Só temos que resolver os problemas e seguir em frente, voltar ao giro...”. Com a experiência são os saberes legais, convocados pelas ocorrências, que começam a tomar lugar e a desenvolver-se.
29Na proximidade os agentes implementam um “saber relacional e em rede”, um saber que acaba por ser tão ou mais importante do que o dos colegas patrulheiros para a manutenção de ordens socioespaciais locais, nesse equilíbrio entre ordens sociais e morais alimentado pelas práticas microscópicas dos polícias, mas evocando agora diferentes formas de autoridade (Goldstein, 1977). Por isso os agentes nos vários programas defendem trabalhar com comunidades (de idosos, escolar, comercial) e pessoas (velhinhos, alunos, funcionários, professores, lojistas). Neste serviço, a iniciativa de contacto com pessoas para o estabelecimento de uma rede local de relações é o eixo que orienta a actividade e leva a uma maior selecção das ruas e lugares a calcorrear. Na experiência social local, os citadinos sabem distinguir um agente da proximidade de um patrulheiro. Não que existam distinções materiais visíveis nas fardas. O interconhecimento e a força da palavra informal – as narrativas e os rumores da cidade (Roncayolo, 2003: 62) – criam esse saber partilhado.
30Assim, se os agentes no carro-patrulha precisam de disponibilidade e dedicação, a patrulha apeada e, sobretudo, a proximidade precisam da durabilidade do tempo para se implementarem. O tempo histórico da proximidade é curto e, por isso, os seus serviços ainda estão em larga medida por fixar, em particular numa escala mais ampla da actividade policial que possa influenciar as filosofias e práticas da patrulha tradicional.
31As diferenças detectadas nos serviços de uma polícia de esquadra permitem desmistificar a ideia de que a actividade policial em contexto é homogénea e indecifrável por ser eminentemente opaca nas suas políticas da acção (Palacios Cerezales, 2005). A pluralidade policial é um facto e a abertura da organização à mudança das filosofias do policiamento de proximidade, caracterizada como uma “revolução silenciosa” (Matrofski, 2002), parece ser uma realidade.
32Todavia, alguns entendimentos e consensos territoriais permanecem a guiar os vários serviços (patrulha a pé, de carro e proximidade). A variação profissional expressa nos serviços e sequências do policiamento não tem expressão recíproca nos territórios policiados, perpetuando, assim, de diferentes modos, ordens morais que segmentam os espaços da cidade. Pode dizer-se que uma mesma cartografia profissional e moral é produzida a partir dos diferentes roteiros do policiamento.
33Há uma divisão socioespacial que atravessa e produz essa cartografia. Na parte de cima, nos bairros de classe média, as visibilidades policiais são geralmente passivas e os citadinos pessoas a proteger. Na parte de baixo, as áreas marcadas pela probreza são homogeneamente tidas como lugares e territórios de tráfico de droga, a presença policial é ostensiva e os territórios devem ser controlados. Assim, os polícias são parte integrante de culturas urbanas, integram o mapa de ordens políticas para a cidade, nesse eficaz e disseminado micropoder (Foucault, 1975).
34E de notar que mesmo a actividade da agente da proximidade ocorre e é desenvolvida na comunidade da parte de cima. Embora a pobreza entre idosos aperte certamente na parte de baixo, esta é ocultada nos discursos policiais antidroga. A pobreza silencia-se por trás de portas fechadas aos agentes; em lugares onde rareiam instituições de solidariedade, onde os habitantes não têm representantes ou porta-vozes locais. Os polícias, a organização e o Estado vão esquecendo os idosos desses lugares, porque as ruas dos seus bairros não são incluídas nas itinerâncias dos polícias da proximidade. Tais idosos surgem menos nos registos, relatórios e redes de interajuda policiais e locais. São as ocorrências que levam os agentes, sobretudo no carro-patrulha, a contactar tais pessoas, geralmente já num contexto problemático, em situação de distúrbio, desordem ou violência. Tal resulta no adensamento da ambiguidade da actividade policial entre o apoio e o controlo de pessoas. Tal ambiguidade, nos espaços da cidade onde resvala para o lado do controlo, leva facilmente a deslocar a acção da rede de solidariedades locais para as redes da justiça. O movimento dominante dos polícias nessas partes da cidade, nesses bairros da droga, tende a ampliar a sua acção penalizadora e criminalizante. Este movimento sublinha distâncias e adia as proximidades.
35As mudanças na filosofia organizacional não têm assim um impacto análogo em todo o território. As inovações da proximidade dificilmente chegam aos territórios mais estigmatizados pelos polícias, pelo poder e pelos próprios habitantes que participam no processo (cf. Katane, 2002). Mesmo se diferentes sequências do policiamento apontam diferentes lógicas de entendimento da actividade, que podem anunciar a aproximação da polícia e do Estado aos citadinos, elas evidenciam também a tendência policial para separar colectivos, para uma certa selectividade da aplicação dos seus recursos de controlo e apoio, para perpetuar, de novas formas, uma separação entre quem está do lado de cima e quem está do lado de baixo da área e da sociedade. E assim que sequências, itinerários e incidências quotidianas do policiamento ajudam a criar “regiões moralmente diferenciadas na cidade” (Agier, 1996: 39-40). Os efeitos das itinerâncias policiais produzem guiões que são lidos e relidos nas sociedades, em particular nos canais mediáticos e nos canais da Justiça. Este texto pretendeu assim demonstrar como as cartografias policiais que resultam dos quotidianos de trabalho vividos merecem tornar-se objecto de estudo e ser examinadas de perto, nas suas práticas materiais e extensões simbólicas.
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Notes de bas de page
1 Este artigo apresenta alguns resultados da tese de doutoramento em Antropologia, financiada pela FCT: “Patrulha e Proximidade. Uma Etnografia da Polícia em Lisboa”, ISCTE, 2006.
2 Os itálicos indicam designações oficiais e também as que decorrem da gíria profissional usada entre polícias.
3 São cerca de uma dezena os bares, tascas, snacks e restaurantes sistematicamente frequentados pelos polícias da área, quase todos situados nas ruas da parte de cima. Nesses estabelecimentos negoceiam com os comerciantes algumas condições favoráveis a um consumo permanente, persistente, mantido por todos os agentes desde que dão os primeiros passos na patrulha. Tão importante como estar operacional é ir conjugando as rotinas com as pausas...
4 Devo recordar que os agentes mais experientes de uma esquadra têm por vezes autonomia para fazer pequenos serviços à civil (algo excepcionais e que não constam no plano oficial de trabalho), o que os leva a criar uma rede de relações intersticiais com informadores traficantes ou ex-traficantes. Estes dizem que os informadores que vão conquistando, nas suas pequenas investigações de rua, são “os seus únicos olhos”.
5 Lembre-se que o monopólio do uso da força tem sido identificado como a característica nuclear do mandato policial (Bittner, 1980; Hunt, 1985).
6 O arvorado é quem se encarrega de intervir e de registar ocorrências no carro-patrulha. Esta é a função mais valorizada na esquadra. O polícia tende a ser considerado um líder entre os agentes do seu grupo de trabalho. Este é escolhido pelo subchefe directo dentre os mais experientes, o que implica ter desembaraço nas situações e manejar algum saber legal. Assim, pode fixar-se durante anos na mesma função. O condutor também tende a ser um dos serviços menos rotativos. A organização beneficia de um agente que conheça as viaturas e que cuide de as manter, uma vez que são bens raros numa organização que reclama a falta de meios materiais.
7 A nomeação das ocorrências e investigações é uma actividade da Polícia Judiciária que começou a ficar conhecida nos media e que muitas vezes revela a tradução das operações policiais para o exterior. Os polícias da ordem, PSP e GNR, que viram crescer nos últimos anos as competências criminais – com a Lei, de organização da investigação criminal, n.o 21/2000 de 10 de Agosto – tendem a fazer o mesmo em algumas situações mais enigmáticas ou de grande impacto mediático.
8 Há uma norma moral entre agentes inultrapassável; nunca se recusa um pedido de ajuda ou reforço, numa acção policial ou a um colega, numa rede de solidariedades própria da partilha de uma mesma “condição policial” (Monjardet, 1996). Neste caso, o jovem de 23 anos, há um ano na patrulha, ainda não conseguiu criar hábitos de alimentação e de sono que lhe permitam suportar uma vida de turnos. Esta é a razão que os colegas atribuem ao mal-estar que se instalou nele há várias semanas.
9 Os agentes apreciam geralmente a deferência nos encontros (Piliavin e Briar, 1964; Sykes e Clark, 1975; Duneier e Molotch, 1999). Nos bairros da droga exigem-na. Jovens com uma atitude desafiante, com estilos de vida considerados suspeitos ou ilícitos, em particular se identificados como pertencendo a comunidades étnicas de não-nacionais, tendem a cair no centro das atenções dos polícias. São os “citadinos-alvo” para os quais os variados léxicos policiais são criados.
10 A rua destes agentes é pontuada por emoções altas, que convocam a operacionalidade e o despertar dos sentidos que os agentes resumem numa expressão: a “caça ao mitra”. As ocorrências que envolvem perseguições são muito valorizadas e reforçam o sentido de trabalho em rede. Quando um sujeito lhes escapa, os polícias usam o adágio: “Há mais marés do que marinheiros”; crendo que no futuro próximo os delinquentes serão apanhados nas malhas policiais.
11 Estas interacções entre agentes do carro-patrulha e citadinos são reduzidas e geralmente circunscritas ao tempo-espaço da ocorrência. Tirando as situações em que são chamados a resolver, ou em situação de pausa, os agentes conservam-se a maior parte do tempo no interior das viaturas, em circulação, e limitam-se à interpelação de jovens considerados suspeitos.
12 Nesta esquadra a maior percentagem de registos é realizada pelos serviços da patrulha, 70% do total. Destes, cerca de 60% correpondem ao trabalho do carro-patrulha.
13 Tal como a maioria das mulheres agentes, esta casou com um polícia que conheceu ainda no curso de polícia, em regime de internato. Ficaram ambos na mesma esquadra. Sendo originários de regiões próximas, do Norte do país, aí conservam os laços familiares e aí esperam regressar ao fim de alguns anos, desde o início do percurso profissional. A organização ofereceu a oportunidade ao marido ao fim de cinco anos de polícia. Ela aguarda em Lisboa, com o filho, a sua vez, a sua transferência numa espera que pode prolongar-se em meses ou anos.
14 Este é um oficial dado à divisão, encarregue de surpervionar superiormente a actividade dos agentes em cada turno nas várias esquadras da mesma. Todos os comandantes entram numa escala de trabalho extraordinário, assegurando a supervisão formal em permanência, sobretudo nos turnos da noite, quando os comandantes de esquadra e de divisão estão retirados.
Auteur
Antropóloga, Centro de Estudos de Antropologia Social, bolseira de pósdoutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
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