Capítulo 3. Ruas da cidade e sociabilidade pública: um olhar a partir de Lisboa1
p. 47-64
Texte intégral
1Dizer que nas mais diversas culturas as ruas das cidades são os locais de eleição para a sociabilidade pública e interacção urbana pode parecer uma afirmação demasiado óbvia2. Contudo, nas suas análises do urbanismo contemporâneo, diferentes tradições antropológicas nacionais atribuem ao palco da rua e às interacções públicas locais que nela têm lugar significados conceptuais e importância analítica bastante diversificados. Na minha condição de antropólogo norte-americano, formado sobretudo nas tradições americana e britânica da antropologia “anglo-saxónica”, não foi fácil focalizar a atenção na rua, dado que ao longo da minha aprendizagem sempre me ensinaram a evitar tal sítio. Apesar dos meus vários anos de pesquisa antropológica urbana em Nova Iorque e Boston, nos Estados Unidos, só depois de 1995, quando vim pela primeira vez a Lisboa e aqui iniciei trabalho de campo, me familiarizei com os estudos antropológicos sobre cidades portuguesas e do Sul da Europa. O olhar sobre a rua e a sociabilidade pública urbana é bastante diferente na Europa, tanto ao nível da investigação académica como no âmbito mais vasto da construção intelectual e cultural da cidade.
2Neste artigo gostaria de partir do tema da rua no seu sentido literal e debruçarme sobre algumas questões conceptuais, abordando a rua como um lugar dentro da cidade, um lugar que podemos tomar como uma espécie de diagnóstico sobre aspectos fundamentais da qualidade da vida urbana e do carácter de uma cidade. Interessa-me, especialmente, contrastar a perspectiva norte-americana sobre as cidades e os seus tipos de sociabilidade pública com a perspectiva portuguesa e, de um modo geral, do Sul da Europa ou do Mediterrâneo. Procuro ainda explicar algumas das dimensões sociohistóricas da rejeição norte-americana da vida de rua como um tema sério de investigação – e, em contrapartida, exploro algumas razões que levam a que esse mesmo tópico seja absolutamente crucial para a compreensão da Europa urbana do Sul. Como exemplo do poder da rua como uma janela de observação sobre a cultura urbana dou especial destaque às próprias ruas de Lisboa, em particular àquelas que acabei por conhecer melhor como residente recente, enquanto realizava trabalho de campo na cidade.
A rua na América do Norte: domínio das classes desfavorecidas
3Ao longo da minha própria formação em Antropologia Urbana nos Estados Unidos da América, e em todos os quadrantes das ciências sociais no âmbito alargado da academia norte-americana, as ruas sempre se mantiveram à margem, de uma forma notória: como lugares onde os pobres e a classe operária vivem a sua vida privada no espaço público. Esta é ainda hoje a visão dominante. Por outras palavras, qualquer sociabilidade que ocorra na rua não é nem burguesa nem de classe média mas emana, claramente, daqueles que se situam na base da pirâmide em termos socioeconómicos. Esta visão tem exercido grande influência sobre a forma como a vida de rua, as ruas como lugares ou, até, a interacção de rua, são consideradas pelos cientistas sociais. Uma etnografia urbana típica, bem conhecida e já influente nos meus tempos de estudante, nos anos 70, é o famoso Tally’s Comer: a Study of Negro StreetcornerMen, escrito por Elliot Liebow (1967). Como Liebow sublinhou, os sujeitos da sua pesquisa eram “lower-class Negro (...) men” - pobres, tipicamente ligados a empregos precários, desqualificados, ou desempregados. Homens que recorriam à esquina particular de uma rua, à saída de um pequeno restaurante de fast-food, como refúgio colectivo onde se protegiam das adversidades sentidas, tanto a nível familiar como laborai. Liebow considerou estes homens como deslocados e socialmente marginais, não obstante eles manterem, por vezes, relações frágeis fora da rua, como maridos, pais, amantes, ou como “ganha-pão” da família. Hyland Lewis, no prefácio da obra, apelida estes homens de “vadios”, “desenraizados” e “falhados” e conclui: “Trata-se de pessoas que não iam chegar a nenhum lado e que sabiam disso!” (Lewis, 1967: x-xiii).
4O argumento de Liebow era o de que os homens com melhores situações laborais e com um envolvimento mais activo na vida familiar - isto é, classe média ou aspirando a isso-não tinham tempo para deambular pela rua. No caso das classes mais baixas, refere Liebow, “Homens, mulheres e crianças passam a maior parte do seu tempo na rua, nas esquinas, sentados ‘à porta’, ou debruçados nas janelas”. E acrescenta: “Trabalhadores activos que trabalham durante o dia inteiro e dividem o seu tempo entre o emprego e a família, não frequentam a esquina da rua” (Liebow, 1967: xx). Esta caracterização da sociabilidade de rua – ligada a uma classe baixa e masculina, minoritária ou imigrante, e não aos americanos da classe média-alta – já nos anos 1960 se encontrava bem estabelecida na investigação em ciências sociais, reflectindo as principais concepções culturais anglo-americanas acerca das cidades e dos seus espaços públicos.
5O primeiro de um importante conjunto de trabalhos etnográficos sobre a vida de rua, surgira, afinal, décadas atrás: Street Comer Society: the Social Stmcture of an Italian Slum de William Foote Whyte, publicado em 1943. Whyte estuda um bairro urbano a que chama Cornerville, na realidade, North End, em Boston, que considera uma zona pobre vista pelos locais como “misteriosa, perigosa, e deprimente” (Whyte, 1993: xv). O seu livro desenvolve-se mostrando que a área evidencia forte coesão social e que, apesar de pobre, o bairro não é desorganizado. No entanto, o principal foco da sua pesquisa é um grupo de jovens envolvido em actividades criminosas na vizinhança, o famoso “Doc” e o seu bando. Estes jovens são levados e impulsionados por criminosos do bairro para a barafunda ou submundo do crime. Whyte realça o contraste entre “Doc” e os seus rapazes com a franca ascensão de Chick e do seu grupo, constituído por jovens estudantes universitários, que não têm muito tempo para passar na esquina da rua e que, em vez disso, preferem socializar num clube privado, fora das ruas.
6Esta velha concepção das ruas urbanas, que remonta pelo menos aos anos 1940, ou mesmo antes, perdura ainda hoje em muitos trabalhos recentes no domínio das ciências sociais. In Search of Respect: Selling Crack in EI Barrio, de Philippe Bourgois (1996), debruça-se sobre East Harlem em Nova York e as tentações do negócio da droga na rua para jovens sul-americanos. Nesta linha lembro também o trabalho etnográfico do sociólogo Elijah Anderson. Anderson começou a sua carreira com a publicação do estudo A Place on the Corner, em 1978, sobre um bairro da zona Sul de Chicago, que tinha como objecto de estudo os homens que frequentavam o “Jelly’s Corner”, à frente e dentro de uma tasca. Cenas de rua como esta, refere o autor, são “escapes especiais para os pobres que vivem na cidade e para as pessoas de classe baixa” (Anderson, 1993:1). De referir ainda o seu livro de 1992, Streetwise: Race, Class and Change in an Urban Community, que, em grande medida, trata dos jovens negros, do tráfico de droga e da polícia, desta vez em Filadélfia. Mais recentemente, em 2000, publicou Code ofthe Street: Drugs, Violence and the Moral Life of the Inner City onde, logo no primeiro capítulo, estabelece um forte contraste entre dois tipos de pessoas, de famílias, e de estilos expressivos no seio da cidade, que rotula de “decente” e “da rua” (2000: 35-36). Diz o autor que se trata de uma visão do mundo polarizada (Anderson, 2000: 35).
7Talvez não constituísse grande surpresa nos EUA, nos anos 1960 e 70, durante a formação e desenvolvimento do novo campo da “Antropologia Urbana”, que aqueles que desejavam uma abordagem antropológica mais abrangente, mais ambiciosa e crítica das cidades, e que haviam enveredado por estruturas urbanas, processos e histórias mais complexas, tivessem encontrado graves limitações neste tipo de antropologia da rua. Richard G. Fox foi uma das mais fortes vozes críticas que emergiram há cerca de 30 anos. O seu trabalho seminal de 1972, “Rationale and Romance in Urban Anthropology”, considerado hoje um clássico, foi publicado no primeiro volume da nova revista Urban Anthropology [1 (2): 205-223]. Fox criticou veementemente as limitações da ambição de uma antropologia urbana apostada em fazer essencialmente uma “antropologia das ruas das cidades”. Ele vê nesta tendência da antropologia anglo-americana a continuação da procura do exótico e do marginal, uma busca dos últimos resquícios de primitivos ou camponeses no tecido urbano e uma herança do colonialismo. Esta abordagem era acompanhada pelo concomitante evitamento dos “estudos sobre a classe média ou sobre as elites na América urbana”, incluindo “as categorias económicas e étnicas dominantes” (Fox, 1980: 117). O seu artigo, naturalmente, pugnava para que os antropólogos estudassem as cidades de forma mais holística, histórica e comparativa, e pela inclusão do lugar das elites, dos estratos raciais e das classes privilegiadas nas suas análises. O que, uma vez mais, significava evitar a pesquisa nas ruas.
8Claro que as recomendações de Fox fazem eco de outras reformulações metodológicas genericamente recorrentes na antropologia americana. Figuras como Laura Nader, de Berkeley, por exemplo, advogavam que os antropólogos a estudar a sociedade contemporânea deveriam focalizar as suas análises naqueles que detinham e exerciam o poder político e económico: “studying up”, era o termo utilizado pela autora para apelidar essa situação (Nader, 1972). Tal como aconteceu com Fox, também Nader e outros tentaram redireccionar o olhar dos investigadores completamente para fora da rua, e até para fora do bairro como loci de investigação etnográfica.
9Quando comecei a familiarizar-me com a riqueza teórica do trabalho que estava a ser realizado na Europa, especialmente em Portugal, França e Espanha, fui obrigado a questionar-me porque razão esta antropologia da rua, inicialmente voyeurista e mais tarde rejeitada, havia surgido na América do Norte. E porque é a rua na Europa do Sul, com toda a sua interacção e sociabilidade, considerada de forma tão optimista como um lugar de integração, fonte de inspiração na teorização antropológica da cidade contemporânea por parte de investigadores imaginativos como Graça índias Cordeiro, Michel Agier, Joan Pujadas, Luís Baptista, António Firmino da Costa e outros? A resposta parece clara: diferenças fundamentais nas tradições culturais anglo-americanas e da Europa do Sul, mediterrânicas, se se preferir, no que diz respeito às definições do espaço público e privado no tecido urbano e, também, diferentes concepções, cultural e historicamente enformadas, sobre a ecologia social do espaço urbano.
10Nos EUA a classe média e a burguesia têm fugido do espaço público urbano, desde a primeira grande vaga de urbanização, durante a Revolução Industrial em meados e finais do século xix, como é salientado por Richard Sennett na obra The Uses of Disorder: Personal Identity and City Life (1992). Sennett explica como a família burguesa se tornou numa cerrada fortaleza contra a esfera pública, promovendo uma separação clara e inusitada entre o público e o privado, especialmente na cidade. Este processo foi naturalmente acompanhado pela emergência de uma ecologia social, ainda raramente visível na Europa – o confinamento dos imigrantes, das minorias e dos pobres ao centro da cidade e a fuga das classes média e alta para os subúrbios onde se refugiam, hoje em dia, em amuralhados condomínios fechados – “gated communities” – como mostra Setha Low em Behind the Gates: Life, Security and the Pursuit of Happiness in Fortress América (2003).
11É claro que as actuais tendências para a aceleração do ritmo de privatizações e a redução crescente do espaço público continuam sob a égide de novos regimes políticos e económicos, que promovem soluções de mercado privadas para todos os problemas e necessidades humanas, a tal ponto que muitos cientistas sociais receiam o desaparecimento do domínio público. Este colapso inclui ruas democráticas e espaços abertos ao encontro público, locais de interacção que atravessam clivagens raciais e classistas, lugares de construção de comunidade, como Michael Sorkin argumenta em Variations on a Theme Park: The New American City and the End of Public Space (1992). Apesar de algumas contracorrentes pontuais em prol de ideais mais “pró-urbanos”, importa reconhecer que a tradição cultural norte-americana tem sido historicamente antiurbana, de uma forma consistente como, aliás, Beauregard (2003) e tantos outros há muito vêm defendendo.
Ruas da cidade no Sul da Europa: uma visão mais complexa
12Tanto as pesquisas empíricas como a teoria apontam, obviamente, para tradições bem diferentes na Europa do Sul, ou no Mediterrâneo. Não é preciso assumir uma concepção desacreditada e essencialista da unidade de uma “cultura”, “identidade” ou “carácter” mediterrânicos (ver Herzfeld, 1984 e 1985, sobre discussão das limitações de tal visão), para reconhecer que os padrões de vida urbana têm sido historicamente diferentes nesta região e no Norte da Europa e Anglo-América. Em primeiro lugar, todos os observadores notam que o urbanismo – e a ideia da superioridade do ideal urbano, e da supremacia cultural das cidades – há milénios que tem sido central para as sociedades mediterrânicas (e. g., Braudel, 1966 [1949]; Leontidou, 1990; Cowan, 2000; Driessen, 2001; Amelang, 2000).
13Outras observações, muito difundidas, têm sido feitas sobre uma prática comum de controlo “popular” das ruas e de outros espaços urbanos (Amelang, 2000: 26-27); uma vida de rua rica e intensa na qual os participantes investem parte das suas vidas privadas (Leontidou, 1990: 3); e ainda sobre a grande heterogeneidade das populações das cidades, também em estatuto social, com uma elite residente que partilha espaços públicos e ruas com as classes populares (Leantidou, 1990).
14Finalmente, uma vez que não se coloca a ideia essencialista de cultura mediterrânica, daí decorre que a questão sobre se Portugal, logo Lisboa, deva ser definido como total ou parcialmente mediterrânico também não é relevante. Muitos comentadores desde longa data têm acentuado que Portugal (e Lisboa como sua principal cidade, onde vive um quarto dos habitantes do país) combina as influências culturais mediterrânicas e atlânticas, e que a importância histórica da nação residiu precisamente na sua localização enquanto cruzamento geopolítico estratégico destas duas regiões (ver também Sieber, 2004: 52). A definição ecológica de Braudel sobre o Mediterrâneo, que situa as suas fronteiras a norte na faixa limite do plantio da oliveira, coloca o rectângulo português, claro, dentro da região, embora não confinando com o Mar Mediterrâneo (Braudel, 1966 [1949]: 4).
15Como se manifestam então estas diferentes perspectivas “mediterrânicas” da cidade ao nível da etnografia? Uma sugestão é-nos dada por Donald S. Pitkin que explica em The Cultural Meaning ofUrban Space (1993), referindo-se não apenas à Itália como também a padrões mediterrânicos mais amplos, que encontrou nas cidades uma “intersecção do espaço público e privado [onde] as pessoas agiam como se as ruas fossem as suas casas” (Pitkin, 1993: 95), um aspecto que contrasta com o mais característico uso do espaço individualista e privado sob o protestantismo na Europa do Norte (1993: 99) e como “essas cidades norte Europeias [evidenciam ausência] de vida nas ruas” (1993: 100).
16A geógrafa Lila Leontidou sustenta, no seu ensaio do mesmo ano, “Postmodernism and the City: Mediterranean Versions”, que “As cidades sul-europeias não se encaixam... nos modelos evolucionários anglo-americanos” (Leontidou 1993: 949). Acentua a heterogeneidade social no espaço público e nos bairros residenciais, uma certa informalidade, espontaneidade, sempre acompanhadas da evidente sociabilidade, como quintessência mediterrânica. Como ela própria refere, “De facto, as populações urbanas mediterrânicas tendem a frequentar espaços urbanos comuns, tabernas, bares e cafés com muito mais frequência do que as do norte. Uma apressada fruição dos tempos livres é bem mais usual nos padrões de vida americanos...” (Leontidou, 1993: 958).
17Aqui se encontra a minha resposta, e pensei nisso especialmente quando li na rica etnografia de Graça Cordeiro sobre o Bairro da Bica, em Lisboa, uma descrição sobre a forma como os seus habitantes esbatiam as divisões entre o espaço público e o espaço privado nas Escadinhas da Bica. Local onde, no Verão, “a rua é um ponto estratégico de encontro, observação e conversa”, tantas vezes ligado às tascas, cervejarias, leitarias, e um “ponto de convívio” que “parece integrar-se no espaço doméstico da casa – ou a casa parece estender-se por sobre a rua” (Cordeiro, 1997: 192). De igual modo, em Sociedade de Bairro, também António Firmino da Costa (1999) realça muitas situações em que o bairro oferece inúmeros geradores de interacção.
18Não evitar a rua, encarando-a antes como foco privilegiado de pesquisa etnográfica, permite-nos, de facto, reflectir sobre a qualidade e as características da vida quotidiana na cidade. Este escrutínio será, contudo, cada vez mais difícil de concretizar se pensarmos que a maioria dos portugueses – e das populações da maior parte das nações do mundo ocidental – é, efectivamente, constituída por urbanitas.
19Este retrato ainda muito exploratório sobre as grandes diferenças na forma como as tradições etnográficas anglo-americanas e sul-europeias abordam as ruas da cidade, revela-nos o quanto o olhar antropológico, limitado pelas políticas de financiamento à investigação, e pelos pressupostos culturais mais abrangentes que orientam a definição dos problemas de pesquisa, ainda assim, exerce a sua influência no rumo seguido pelas ciências sociais qualitativas em diferentes regiões do mundo. Neste sentido, muito provavelmente todas as antropologias tenderão a ser “nacionais” ou “regionais”.
Ruas de Lisboa: um universo complexo de lugares públicos
20Não nos surpreende que as ruas de Lisboa ou as ruas do Sul da Europa sejam um foco de atracção, uma vez que constituem uma vertente fundamental do cenário urbano. Até a nível linguístico podemos corroborar tal constatação. E um conhecido cliché considerar que os Inuit do árctico têm muitos nomes para designar a neve, o que demonstra quão importante é este elemento na sua cultura. Seguramente pode dizer-se o mesmo dos lisboetas e da sua rica taxinomia das ruas e outras vias públicas – com os seus becos, calçadas, escadas, escadinhas, travessas, bem como praças, largos e pátios e também, naturalmente, ruas, avenidas e alamedas – e ainda mais. As ruas são traços muito importantes, reconhecidos e valorizados da paisagem urbana.
21Em Lisboa o meu foco de pesquisa desde 1994 não incidiu particularmente nas ruas, mas nos processos mais vastos de globalização e europeização, na criação de novas narrativas nacionalistas no programa da Expo’98 e nas políticas de planeamento para uma Lisboa mais europeia (Sieber, 2001 e 2002). Estudei, evidentemente, vários aspectos das ruas durante a minha estada, sobretudo informalmente, mas também, por vezes, de maneira mais formal, e procurarei relatar sucintamente algumas pequenas histórias do que pude observar. Mas ainda inseguro da minha percepção sobre o sentido local da vida de rua, decidi procurar nalguns guias turísticos o que diziam sobre as ruas de Lisboa e a sua óbvia sociabilidade. Consultei sete guias diferentes que tinha em casa3 – mas, curiosamente, apenas um deles tinha uma entrada sobre vida de rua, e nenhum deles aflorava a forma como os habitantes locais usavam a rua, nem sequer se referiam à sua riqueza ou grande visibilidade na cidade. Do ponto de vista dos guias turísticos, as ruas e o espaço da rua eram importantes apenas como dado adquirido, primeiro plano quase invisível apenas atravessado pelo olhar do visitante para se fixar nas fachadas de monumentos arquitectónicos ou edifícios históricos que os guias sempre enfatizam.
22Por vezes é referenciado que as ruas são movimentadas e que provavelmente o visitante se vai cruzar com várias pessoas – como vendedores ambulantes que tentam vender-lhe flores, ou castanhas, ou guarda-chuvas, e de forma estranha estas abordagens comerciais são confundidas com hospitalidade local. Curiosamente, outros turistas aparecem também como parte do tecido social da vida na cidade – porque a imagem de uma intensa vida de rua corresponde, frequentemente, à fotografia das esplanadas dos cafés da Rua Augusta, na Baixa, concebidas para e repletas de turistas. Parece ser irrelevante quem são as pessoas e quem está na rua – desde que as ruas estejam apinhadas de gente. Não há uma verdadeira curiosidade sobre o modo como os habitantes vivem. Os turistas são frequentemente aconselhados a evitar as ruas dos bairros mais sossegados à noite, as ruas despovoadas, que na realidade são aquelas onde vivem a maior parte dos lisboetas.
23Apenas um guia de 1994, Insight Guides: Lisbon, produzido para países de língua inglesa por uma editora de Hong Kong, se salienta por referir o tema da vida de rua, ainda que o curioso retrato que dá de Lisboa seja muito pouco convincente. Refere este guia que a singular harmonia social de Lisboa leva a que os seus visitantes não tenham que se preocupar com espaços públicos perigosos, como acontece em tantos outros países. Noutros locais os turistas tendem a evitar as ruas com receio de se confrontarem com diferenças ou, pelo menos, pessoas de grupos que são estereotipados como sendo perigosos, ou cujo comportamento não conseguem prever, especialmente à noite. Na secção “Street Life” de Insight Guides, o guia diz acerca de Lisboa que “é uma cidade onde se pode deambular a pé com segurança, mesmo à noite... Tal como não há nenhuns ghettos raciais na cidade, também parece não haver grandes diferenças entre ricos e pobres; os pobres vivem em casas antigas, originalmente construídas pelos ricos, os ricos comem nas zonas da cidade onde os pobres habitam” (Kaplan, 1994: 61). Uma vez mais a cidade é apresentada, de forma certa ou errada, como uma entidade socialmente homogénea, em contraste com as cidades dos turistas, onde as diferenças sociais, especialmente as de classe e de etnia, são consideradas uma ameaça.
24Na senda de outras leituras sobre a vitalidade das ruas de Lisboa, com comentários sobre o quotidiano da rua, decidi enveredar por textos menos superficiais, guias mais diferenciados sobre a cidade, produzidos por escritores bem reputados entre os quais dois famosos apaixonados de Lisboa. Teriam certamente visões conhecedoras a comunicar. De imediato me veio à cabeça O Que o Turista Deve Ver, escrito por Fernando Pessoa em 1925. Mas talvez porque Pessoa estava a escrever esse texto como parte de “um projecto de dignificação de Portugal no exterior” (Lopes, 1992: 21), enfatizando a sua firme posição no âmbito do património da Europa, o guia debruça-se apenas sobre a alta cultura: monumentos arquitectónicos, arte e edifícios históricos. Estranhamente, o seu livro não menciona quaisquer ruas ou habitantes que o turista encontraria. Também de forma inesperada, o percurso que Pessoa propõe parte do princípio que o visitante é conduzido ou conduz um carro de um sítio para outro, parando, estacionando, saindo do carro, depois visitando o sítio, e voltando de novo ao carro, dirigindo-se para o próximo sítio e assim por diante – não há qualquer experiência de um passeio a pé pela cidade, não há uma vivência directa das ruas ou das pessoas. Faz-nos lembrar quanto este guia de Pessoa não foi escrito para os próprios lisboetas, nem sequer para a maior parte dos portugueses dos anos 20 do século passado. O único sítio do guia em que Pessoa decide fazer observações acerca do quotidiano dos residentes é na curta entrada sobre Alfama, mas as suas condescendentes anotações reportam os residentes como objectos exóticos, cujo modo de vida evidencia sobrevivências do antigo passado medieval: “Tudo aqui evocará esse passado – a arquitectura, o tipo de mas, os arcos e as escadas, as varandas de madeira, os verdadeiros hábitos do povo que aí vive uma vida cheia de rumor, de conversa, de canções, de pobreza ou de imundice” (Pessoa, 1992 [1925]: 65).
25A minha segunda fonte, Viaje a Portugal de José Saramago (1998), na versão castelhana que possuía, foi mais ou menos a mesma coisa. Muito antes de ser publicada em português, Saramago lançou este guia turístico sobre o seu país natal em castelhano, como se na realidade ele não fosse escrito para os seus compatriotas. De forma algo surpreendente, este grosso volume de 364 páginas sobre Portugal apenas inclui 15 páginas, ou cerca de 4% do total, sobre Lisboa (1998: 261-275), ainda que praticamente um quarto da população portuguesa resida na região. Tal como Pessoa, também Saramago se debruça sobre o património edificado, especialmente estruturas históricas, como igrejas, museus e palácios, reflectindo sobre o seu significado histórico e criticando com ironia muitas das interpretações em voga – mas a sua Lisboa é também uma Lisboa não povoada por lisboetas contemporâneos, seja nas ruas, nos cafés, nos restaurantes ou bares, ou em quaisquer outros lugares que propiciem sociabilidade. Ao longo da obra, escreve na terceira pessoa para um leitor incorpóreo, bastante cerebral, a quem chama “EI Viajero”, e quando termina a sua curta secção de 15 páginas sobre Lisboa, anota “Vio mucho, y no vio casi nada” antes de continuar com “...este es el pelígro permanente de cualquier viaje” (Saramago, 1998: 274). De facto, parece óbvio que o contributo de Saramago é bastante limitado e que deixou de fora importantes aspectos de Lisboa!
26Finalmente, há a referir a apaixonada escrita de Norberto de Araújo sobre Lisboa, nos anos 30 e 40, e a sua série de guias turísticos, Peregrinações em Lisboa. No volume X, sobre Alfama e a Ribeira Velha, as palavras de Araújo descrevem realmente de forma primorosa todas as curvas inusitadas, os contornos e os cantinhos especiais nas ruas e arcos de Alfama, e também todas as características surpreendentes, fora do comum, dos palácios, igrejas e praças, com as suas complexas histórias. E, de novo, não encontramos pessoas nas suas descrições e ficamos sem saber nada sobre como os habitantes ou visitantes usam os espaços, incluindo os espaços públicos a céu aberto. As pessoas estão também ausentes das ilustrações, com seis das nove gravuras de página inteira a mostrar ruas completamente vazias de gente e as restantes três exibindo, cada uma delas, uma única personagem, sempre obscurecida pelas sombras. Uma vez mais, tal como os outros autores, Araújo trata o património edificado como um objecto isolado, de admiração e beleza, apreendido completamente à parte dos seus usos sociais e culturais. Um pouco como se idealizasse a paisagem [cityscape] desprovida de pessoas4.
27Torna-se claro que há apenas um grupo de observadores que tem tido a preocupação de penetrar e compreender, analisar e interpretar, as ruas da cidade e a sua sociabilidade, e que considera que as pessoas, mesmo as mais comuns, ou talvez até mesmo especialmente as mais comuns, têm sido sempre actores, ou agentes, na construção criativa de Lisboa, tal como em qualquer outra cidade – nas ruas e espaços públicos, bem como noutros sítios mais privados, do interior. Sim, na verdade, estes observadores de que falo são antropólogos, sociólogos, historiadores, geógrafos, e outros cientistas sociais que partilham uma abordagem qualitativa dedicada à reflexão sobre a organização, a energia extraordinária e a vitalidade do cenário urbano, tanto do presente como do passado, bem como da acção das pessoas comuns na sua elaboração, manutenção e recriação.
28Para mim, como antropólogo e estudioso de Lisboa há mais de uma década, o que as ruas de Lisboa me têm ensinado pode ser resumido numa só frase: nada de generalizações fáceis à sua volta. Elas não só nos dão uma visão microscópica, particularmente local da sociedade e cultura, como também se constituem como plataforma para a abordagem de uma grande variedade de aspectos sobre o desenvolvimento urbano contemporâneo, as tendências nacionalistas, mudança económica, imperialismo e globalização, passado e presente. Tal como Luís Baptista explicou, baseado no trabalho de Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot, é possível “enriquecer a análise científica através da articulação das escalas global e local da cidade” (Baptista, 2003: 36), um tema recorrente em várias partes deste livro. Focalizar a rua como objecto de pesquisa não significa ignorar questões teóricas mais abrangentes, sejam elas contextuais ou críticas.
Uma velha rua de Lisboa
29E possível ilustrar este ponto de vista trazendo à discussão a rua de Lisboa que melhor conheço – uma pequenina rua onde vivi em 1998, a Rua Afonso de Albuquerque. Tem apenas 75 metros de comprimento e é bastante estreita-em alguns sítios não chega a passar mais do que um carro-e fica mesmo na zona limítrofe de Alfama, a primeira rua mesmo atrás do que foi a velha Cerca Moura do séc. IX, a muralha da cidade quando Lisboa era muçulmana. A rua conduz à Rua dos Bacalhoeiros, da antiga Ribeira Velha, através de arcos que atravessam a muralha, um de cada lado do final da rua – o Arco das Portas do Mar, que constituiu a segunda entrada para a Ribeira depois da Reconquista, aberta através da muralha, e o Arco da Conceição. O nosso prédio tinha janelas que davam para a porta das traseiras da Casa dos Bicos, cuja entrada original era nesta rua apesar de actualmente ser considerada como as traseiras do edifício histórico.
30A Rua Afonso de Albuquerque era sobretudo uma rua popular, de classe operária, com oito prédios, uma residencial de cinco andares que hospedava sobretudo imigrantes africanos e migrantes rurais provenientes do Alentejo que ficavam na Casa de Hóspedes Alentejano, no segundo andar. Deste modo, a rua albergava imigrantes das ex-colónias em busca de uma vida melhor, bem como migrantes internos. Havia também um restaurante, um clube aberto até tarde às sextas e sábados, conhecido pela sua música popular portuguesa ao vivo, e vários pequenos comércios, incluindo uma loja de vinhos, uma casa de fotocópias, uma padaria, uma sacaria e uma agência de camionagem. De qualquer forma, tornava-se difícil descrever aqueles que aqui usavam as ruas de forma homogénea – ainda que a maior parte das pessoas fossem da classe operária ou pobres.
31No nosso prédio, a Dona Ana5 morava por baixo de nós, no primeiro andar. Era uma velhinha reformada, de 82 anos, que pagava uma das tais rendas fixas muito baixas, que haviam sido congeladas há cerca de meio século, mas bastante pobre pois auferia uma pequena pensão cujo montante era exíguo. No segundo andar vivia um executivo francês, que estava em comissão de serviço por três anos em Lisboa, proveniente de uma firma internacional de computadores, sedeada nos Estados Unidos da América. O Senhor Fernandes geria a loja de vinhos no rés-do-chão, recebia o correio dos hóspedes do prédio que o carteiro lhe entregava, e distribuía-o pelos inquilinos. Não vivia no prédio nem na rua, e nem sequer em Lisboa, mas em Loures. Apesar disso, era uma das poucas pessoas da vizinhança que mais sabia da vida dos vizinhos, pelo menos em público, uma vez que ficava à porta da sua loja a maior parte do dia, observando tudo o que se passava na rua.
32Dona Maria, que vivia num prédio de quatro andares ao fundo da rua, vendia legumes frescos na rua todos os dias. Se por acaso ela estava a descansar quando algum vizinho precisava de umas cebolas ou tomates para cozinhar o jantar, podia ir ter com ela ao prédio, onde a porta do apartamento estava sempre aberta – ou poderia simplesmente chamá-la da rua. A rua tinha também o seu cão, de nome Péri, que a patrulhava como se fosse propriedade sua, dormindo por vezes no meio dela, e ladrando a todos os cães que tentassem aproximar-se. O fluxo de tráfego automóvel nesta rua estreita e íngreme era pequeno, de forma que as crianças podiam brincar à vontade durante a maior parte do tempo, desde que tivessem cuidado. Não apenas na rua em si, mas ali à volta, a vizinhança era distinta, com profissionais de pasta bem vestidos, que desciam rua abaixo vindos das suas casas renovadas de Alfama, em direcção ao metro da Baixa. Também tinha alguns turistas – sempre de passagem, com ar de quem está perdido mas satisfeito, de olhos postos para cima e para a frente, à procura de qualquer maravilha.
33Um dia em que regressei tarde a casa – aí por volta das 4 da manhã – apanhei os padeiros, os almeidas e os lavadores de rua todos em amena cavaqueira, em frente à padaria, cada um envergando o respectivo uniforme de trabalho. Tratava-se de um ajuntamento informal, de conversa espontânea, entre pessoas que nem sequer viviam na rua, sendo na sua maioria simples transeuntes nocturnos, visitantes de passagem. Passageiros do escuro que se apoderam momentaneamente da rua, enquanto os residentes dormem despreocupados, ou até mesmo satisfeitos por estes trabalhadores aparecerem à noite, sem causar qualquer perturbação às rotinas diárias da vizinhança.
34Apesar de pequena esta rua era, no entanto, bastante complexa. Nunca era uma vizinhança fechada, fortificada, nem uma aldeia na cidade, antes espelhava muitas dimensões da própria e complexa diversidade de Lisboa. Não constituia uma verdadeira comunidade, mas ainda assim podia ser tomada por um microcosmos onde se entrecruzavam diferentes esferas sociais e diferentes tipos de pessoas que reparavam umas nas outras, uma rua com pessoas estranhas que vinham fazer negócios, comer ou ouvir música, recolher o lixo, ou simplesmente passear. Ali havia todo o tipo de diálogos entre todo o tipo de pessoas. Algumas delas envolviam famílias que trocavam palavras da rua para as janelas de suas casas. E sempre havia, também, algumas janeleiras, debruçadas sobre a ma. Tratava-se de um espaço público que pertencia a todos e onde havia lugar para uma grande variedade de utilizadores. Uma vez que se encontravam muitos pequenos mundos na rua que concordavam em conviver, não se podia considerá-la como uma comunidade que partilhasse qualquer tipo de cultura comum, nem mútua compreensão. Na verdade, a rua evidenciava uma espécie de acordo tácito comunitário de forma que qualquer transeunte podia encontrar ali um lugar, quase como se se estabelecesse uma conexão segura pelo facto de se estar “sozinho em conjunto”, sem interferir demasiado uns com os outros, tal como Robert Edgerton descreveu o comportamento público urbano em Alone Together (1979).
35Como referiu Jane Jacobs há quarenta e cinco anos atrás, não é necessário o conhecimento total uns dos outros, nem a existência de um propósito comum, para criar uma comunidade baseada numa familiaridade de rua [sidewalk familiarity] para que se possa manter a sociabilidade e segurança num grupo de vizinhança urbano (Jacobs, 1961). O antropólogo James Holston explica, na mesma linha, que o espaço público como o das ruas pode funcionar como uma espécie de “sala de visitas pública”, um “espaço flexível”, acessível a todas as classes sociais e a uma ampla “variedade de actividades”, onde muitos “encontros espontâneos, informais, improvisados podem ocorrer em simultâneo” (Holston, 1989: 103-107).
36Nesta medida, a Rua Afonso de Albuquerque permitia que todos, dentro dos devidos limites, fizessem os seus usos privados da rua. Namorados beijavam-se nos recantos mais sombrios. Ocasionalmente alguém aparecia a vender droga aos jovens dali e um jovem consumidor ocasional injectava-se à esquina, ao tranquilo anoitecer. Uma vez, um homem discutiu com a sua mulher na rua e começou a bater-lhe, até que alguém apareceu à janela e lhe gritou que parasse. A rua tinha também um residente próprio, o sem-abrigo, o Senhor Gonçalves. Com cerca de 55 anos mas aparentando muitos mais, havia perdido o emprego num escritório de mediação alfandegária, quando o porto acabou, e não quis deixar a vizinhança onde sempre havia trabalhado. Dormia escondido atrás dos contentores do lixo que pertenciam à Casa dos Bicos. Aceitava dinheiro quando lho davam e algumas pessoas ofereciam-lhe comida. Haveria de o ver por diversas vezes a tomar algumas refeições numa adega do outro lado do arco, junto ao Campo das Cebolas. Reflecti bastante sobre a ironia da sua existência como vítima do declínio do porto, dormindo na sombra da Casa dos Bicos, a sede, naquela altura, da Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses. Claro que antigamente isto era um palácio, construído por uma importante família que havia enriquecido com as Descobertas, no início do remoto período histórico em que Lisboa era reconhecida como provavelmente a mais importante cidade portuária mundial.
37Não havia qualquer dúvida de que a nossa rua estava ligada ao mundo exterior, a todo o momento atravessada por visitantes exteriores bem como por forças nacionais, europeias, e até mesmo globais. Quem quer que alguma vez ali vivesse ou por ali passasse de visita, tinha a sua própria perspectiva sobre ela. A rua era pública, na medida em que de uma forma ou de outra qualquer pessoa ali era aceite. Ninguém alguma vez teria tempo – ou interesse – de a conhecer totalmente; e, é claro, antes de se apreender a fundo, chegar-se-ia à conclusão que a rua e o seu pessoal já haviam mudado. Passados oito anos desde que lá vivi, muita coisa mudou entretanto: a Dona Ana, o Senhor Fernandes, a loja de licores, o restaurante, o Senhor Gonçalves, os carros, Péri (o cão) – como o seu dono recentemente me disse à porta da casa de tintas, já falecera há algum tempo; “as suas vidas são tão curtas”, acrescentou. Toda a gente é, de certa forma, efémera. Pertencer à rua, pelo menos durante o tempo que por ali andavam, parecia ser o que finalmente mais interessava.
Algumas novas ruas de lisboa: expo’98
38Ser incluído, ser reconhecido, é existir. Ao serem inclusivos em relação a uma diversidade de pessoas, os espaços públicos, como a rua, permitem uma forte validação das identidades sociais e culturais. Na cidade, com tantos grupos, interesses e comunidades, tal tarefa não é fácil. No meu trabalho em Lisboa pareceu-me que nesse momento da história, talvez desde sempre, ela fosse uma cidade contestada e em constante mutação, com vencedores e vencidos. Isso mesmo se reflectiu na Expo’98, que vim estudar para Lisboa. No local da Expo’98, havia também uma luta pela inclusão – a qual seria exibida e representada nos eventos que ali tinham lugar. Uma vez que o sítio da Expo’98 era uma combinação híbrida de público e privado, no que tocava ao espaço privado – tinha que se pagar uma elevada quantia para se entrar – ele era mais controlado e socialmente exclusivo. Também pelas mesmas razões, era mais contestado que o habitual – especialmente por aqueles que se sentiam excluídos. Gostos, interesses e identidades de certas categorias de pessoas – especialmente os trabalhadores, os velhos, as pessoas do campo e, claro está, os mais pobres – eram sistematicamente excluídos do programa formal das actividades culturais da Expo’98, e normalmente essas mesmas pessoas eram também excluídas dos espectáculos, devido ao elevado preço dos bilhetes. O objectivo da Expo’98 era o de publicitar a modernidade e os avanços tecnológicos de Portugal e da sua capital, Lisboa (Sieber, 2001 e 2002), e não, propriamente, o de dar uma visão verdadeiramente representativa da sociedade portuguesa.
39A excepção do Dia de Portugal desse ano de 1998, por exemplo, as músicas tradicionais, tão ao gosto das classes trabalhadoras de Lisboa, não foram incluídas no programa oficial – especificamente, os ranchos folclóricos e as próprias marchas populares de Lisboa, para não falar na música pimba. A maior parte dos ranchos à volta de Lisboa, estão, é claro, sedeados na cidade e encontram-se ligados a diversas casas regionais localizadas mesmo na Grande Lisboa, e a maior parte dos jovens dançarinos são alfacinhas de gema, nascidos em Lisboa, ainda que por agora se tenham especializado na aprendizagem e celebração das tradições rurais dos seus avós. Na Expo’98, claro está, tanto no Pavilhão de Portugal como no Pavilhão do Território, também não havia referências a nada que se relacionasse com as culturas rurais tradicionais, uma situação que, tal como aliás me foi corroborada pelos funcionários da Expo’98, gerou uma grande contestação por parte do público português.
40Embora Junho de 1998 já fosse avançado, depois da abertura da Expo’98, os participantes dos ranchos e os líderes que entrevistei disseram-me que ainda não tinham qualquer compromisso sólido da parte das entidades oficiais para os incluir no programa da Expo’98. A mesma situação ocorria com as marchas populares, que foram silenciadas na Expo’98. Depois de muita pressão da parte dos grupos de marchantes, a Expo’98 fez a concessão de deixar actuar os vencedores dos três primeiros lugares do concurso de marchas da noite de Santo António. Esta oferta foi unanimemente recusada – a menos que todos os grupos pudessem ir actuar à Expo’98. Finalmente, a Expo’98 foi forçada a autorizar a actuação de todos os grupos de marchantes, para além dos grupos infantis, tendo também incluído actuações dos ranchos folclóricos.
41Contudo, dado que os espectáculos musicais já estavam distribuídos e agendados pela administração da Expo’98, estes grupos populares tiveram que recorrer às ruas da Expo’98 para fazer as suas performances. Sem nunca terem sido incluídos no programa formal, eles acabaram por ser espontaneamente autorizados a apropriar-se de espaços mais públicos, menos regulados, dentro do recinto da Expo’98 – as suas ruas, que eram artificiais e novas.
42Tal não constituiu apenas uma vitória para as associações regionais particulares, e para os bairros históricos, mas também claramente para as classes trabalhadoras, especialmente as lisboetas.
43Lutavam pelo direito à utilização do espaço público nesta feira internacional, com o objectivo de apresentar as suas próprias produções culturais, essenciais para a afirmação da sua identidade cultural, e mesmo do seu bairrismo no interior de Lisboa, através da colonização destas ruas artificiais dentro de um parque temático, onde na realidade ninguém vivia – com alguma genuína espontaneidade não programada, fora do calendário oficial dos eventos.
44É claro que muitos estudiosos da cidade, como por exemplo Graça Cordeiro, António Firmino da Costa e Maria de Fátima de Sá, desde há muito documentaram quão importantes são as ruas de Portugal e do Sul da Europa, como lugares para a performance de festas populares, procissões religiosas e desfiles no âmbito da vida e identidade urbanas. Na Expo’98 os grupos de marchantes criaram uma festa local no seio de uma outra global, ou pelo menos nacional, mais abrangente. Nunca se preocuparam muito em explicá-la ou interpretá-la para os estranhos, pois a sua festa não era feita para os turistas, que estavam só de passagem enquanto este drama lisboeta ia para o ar. Considero que este era um uso muito natural e popular das ruas da cidade; mas que se revelou inusitado neste contexto, pelo facto da Expo’98 gerir e planificar de forma tão cautelosa quase todos os outros eventos culturais no local – em especial os que tinham a ver com música e dança.
45A ausência de ruas reais na Expo’98 constituía também um problema. As críticas dirigidas à Expo’98, como projecto de desenvolvimento urbano, por Vítor Matias Ferreira, Alexandra Castro e outros colegas do Centro de Estudos Territoriais do ISCTE (ver Ferreira et al., 1999), rotulavam o desenvolvimento residencial da Expo Urbe, a completar até 2010, como um “ghetto de luxo”, um “condomínio fechado” e uma “ilha de privilegiados”. Salientaram também que o recinto havia sido bem fortificado, protegendo-o de qualquer ligação com as áreas desfavorecidas envolventes, como Moscavide e Prior Velho, através da ausência relativa de uma rede intermédia de ruas. Observam mesmo que ao longo dos 5 quilómetros do perímetro da Expo‘98, existiam apenas 9 passagens sobre a barreira da linha-férrea (constituindo menos de duas passagens por quilómetro), entre a Expo’98 e os bairros adjacentes, que permitiam o acesso dos carros e dos peões ao que viria a ser chamado Parque das Nações. Assim, às outras barreiras financeiras interpostas aos residentes locais em relação à fruição das actividades de lazer do recinto, havia ainda a sobrepor as barreiras espaciais evidentes que reforçavam a sua exclusão.
Conclusão: em defesa da(s) rua(s)
46Torna-se evidente que em Lisboa as pessoas usufruem e ocupam plenamente as ruas junto às suas residências privadas, às suas casas da cidade. A rua opera a ligação espacial mais imediata com o domínio público e, de facto, permite albergar temporariamente extensões criativas do espaço privado, doméstico, constituindo o palco para a expressão de identidades de grupo, especialmente culturais.
47As pessoas apercebem-se e lutam contra a usurpação das suas liberdades fundamentais para marcar e usar as ruas dessa maneira. Nas pseudocidades recém-construídas dos dias de hoje, onde as ruas podem ser temporárias, artificiais, ou até neutralizadas da sua vida social, a exemplo da Expo’98 em Lisboa, evidencia-se uma reapropriação criativa por parte das pessoas, até uma conquista do espaço público, construindo verdadeiras ruas onde não existia nenhuma. Mesmo quando as ruas lhes são formalmente retiradas, ainda assim as pessoas continuam a lutar para manter o uso dos espaços em prol da autonomia local.
48Apesar de Holston e outros criticarem cidades planificadas, como Brasília, por exemplo, com todo o afastamento da vida de rua que os planos formais evideliciavam, o certo é que esses desenhadores nunca conseguiram conquistar o público: 75% dos actuais residentes de Brasília vivem em espaços construídos graças ao esforço popular fora da zona formalmente planificada (Scott, 1999: 129)! Quando as ruas são vedadas às pessoas, elas acabam por criá-las.
49Uma vez que os etnógrafos urbanos apreciam tanto o poder das bases, das iniciativas populares para a apropriação e animação das ruas da cidade, podemos então ser aliados deste impulso natural para a expressão humana e contribuir para a valorização e defesa do direito das pessoas a viver em pleno no seu próprio espaço público. Talvez precisemos, até, de reconhecer a nossa própria necessidade das ruas e, também, do espaço público. Ao defender os direitos dos cidadãos das cidades em qualquer parte do mundo, estaremos afinal a defender-nos a nós próprios, e não apenas os urbanitas que alguns de nós são. Na luta contra a actual privatização do domínio público em geral, temos também muitas das nossas próprias ruas a defender, e só algumas delas se situam na rua.
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10.7208/chicago/9780226922669.001.0001 :Notes de bas de page
1 Tradução do inglês de Ana Isabel Afonso.
2 Os meus agradecimentos à Comissão Cultural Luso-Americana e à Fundação para a Ciência e a Tecnologia, então JNICT (Programa Praxis XXI), bem como à Universidade Aberta, pelo apoio concedido às investigações aqui referidas que decorreram em Lisboa. Agradeço igualmente ao ISCTE, incluindo as suas unidades de investigação CEAS, CET, CIES e CEHCP, à Universidade de Massachussetts, em Boston, e ao CITIDEP-Portugal, pelo apoio suplementar concedido. Um agradecimento especial a Graça índias Cordeiro, Luís Baptista, António Firmino da Costa, Darlinda Moreira e Angela Cacciarru pela sua ajuda e incentivo no prosseguimento do meu trabalho.
3 Onde se incluem: Lisbon, an Unforgettable City. Badajoz: Limite Visual Guidebooks, 1997; Susie Boulton, American Express Guide to Lisbon. London: Dorley Kindersley, Ltd., 1998; Associação dos Arquitectos Portugueses, Guia de Arquitectura Lisboa 94. Lisboa: Sociedade Lisboa 94, 1994; Ian Robertson, Blue Guide: Portugal. London: A & C Black, 1995; Baedeker’s Lisbon. New York: Prentice Hall, 1996; John Fisher Ellingham, Graham Kenyon and Alice Martin, Portugal, the Rough Guide. London: Penguin/the Rough Guides, 1995; e Marion Kaplan, Insight Pocket Guide: Lisbon. Boston: Houghton Mifflin Company, 1994.
4 Uma análise antropológica fascinante e muito aprofundada sobre a visão que Norberto de Araújo tem da cidade, como sendo simultaneamente realista e imaginária, é apresentada no artigo de Graça índias Cordeiro, “A propósito das Peregrinações em Lisboa: relatos de uma cidade, passo a passo” (2006).
5 Dona Ana, tal como outros nomes pessoais usados ao longo do texto, é um pseudónimo.
Auteur
Antropólogo, University of Massachusetts, Boston.
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