Capítulo 1. O “Acampamento”, a cidade e o começo da política1
p. 17-25
Texte intégral
1Vou começar com algumas considerações que podemos tomar mais como uma perspectiva de reflexão na medida em que eu não vou falar exactamente das cidades, nem do que se costuma chamar de cidade histórica, no sentido de cidades concebidas ao longo da história. A minha consideração preliminar é que o tempo de hoje já não é o tempo dessa cidade histórica, em crise, em grande transformação. O modelo da cidade histórica corresponde a uma certa representação da organização social e económica. Sabemos – já muito foi escrito por historiadores, especialistas das cidades – que as cidades foram fundadas para aproximar os indivíduos, para pô-los juntos a viver e trabalhar, interagir a menos custos, ou seja, uma aglomeração de pessoas que organizam num espaço um sistema social complexo, a que Durkheim chamou “solidariedade orgânica”. Este sistema dispõe num espaço delimitado uma rede de dependências entre categorias, classes ou indivíduos que estão envolvidos na modernidade, modernidade social, modernidade económica. Isto foi, de certa forma, a grande figura do século xix. A cidade era um símbolo e ao mesmo tempo uma das principais formas materiais da modernidade, da organização social moderna, sendo a fábrica outra forma correspondente a essa cidade, o que correspondia também a uma certa determinação da maior transformação civilizacional. Muitos pesquisadores do início do século xx, entre eles os da Escola de Chicago, por exemplo, consideraram que as cidades se tornavam um facto de civilização. Pensava-se na “sociedade urbana”: primeiro, foi assim definida por oposição com a sociedade tradicional, como Park, por exemplo, colocou nos anos 20, sendo a cidade “o lugar de emergência do indivíduo como unidade de pensamento e de acção”; segundo, mais recentemente e de maneira, digamos, mais antecipadora, Henri Lefebvre, nos anos 70, extrapolando as cidades existentes, colocava a ideia da sociedade urbana não no sentido de uma cultura urbana própria da cidade, mas no sentido da generalização planetária dos espaços e dos modos de vida urbanos. Era um todo urbano.
2As cidades históricas, as cidades antigas formadas antes mesmo de se pensar nesta generalização (e aqui vocês têm material para pensar nisso), estas cidades históricas encontram-se hoje em dia frequentemente mantidas em cartão postal, em áreas preservadas, centros históricos transformados em museus, museus vivos. Às vezes mantêm-se habitadas, outras vezes sem habitantes, como acontece em alguns lugares do Brasil onde as partes antigas das cidades são mantidas como museus onde os únicos ocupantes são os circuitos turísticos. Ao mesmo tempo – vou deixar isto para o debate – considero que o mundo de hoje não é somente aquele da desterritorialização, do ultrapassar da cidade histórica, ele é também marcado por múltiplas formas de deslocamento numa escala mundial. Não somente fluxos massivos de emigrantes, exilados, refugiados, mas também ausência de acolhimento, de aceitação dessas mobilidades pelos Estados.
3Penso numa reflexão de Hannah Arendt sobre a questão do exílio no sistema mundial. Já é dos anos 50, diz ela que, a partir de um certo momento o Estadonação recusou-se a tratar da questão dos exilados, e a questão tornou-se uma questão de polícia. Quer ela dizer que o controlo das mobilidades, o controlo dos espaços onde se encontram exilados, refugiados, emigrantes, clandestinos, tornou-se um facto de polícia que foi abandonado pelas políticas públicas, pelos Estados-nação como ocorreu no século xix, por exemplo, quando havia grandes migrações, internacionais sim, mas organizadas e desejadas pelos Estados acolhendo esses numerosos migrantes internacionais. O Brasil, a América Latina, repovoou-se no final do século xix, início do século xx, com uma vontade de emigração e uma provocação das mobilidades internacionais pelos próprios Estados, chamando para essas mobilidades.
4Estamos hoje em dia numa configuração completamente outra, onde essa questão saiu da questão política – política social, económica ou migratória – e se tornou num facto de polícia. Então, ao mesmo tempo que hoje em dia nós vemos essas mobilidades e a não aceitação pelos Estados-nação dessas mobilidades, criam-se as correspondentes categorias identitárias estigmatizantes e espaços separados. As categorias identitárias, as novas categorias identitárias (e todos os dias se inventam novas categorias), são as próprias palavras: refugiados, deslocados, retornados, clandestinos, pedidores de asilo, recusados de pedidos de asilo ; todos os dias ou, realmente, todos os semestres existem novas categorias ligadas a este controlo policial da mobilidade e a esta necessidade de categorizar. Ao mesmo tempo esses deslocamentos criam espaços que, de certa forma, são emergentes ou que nos colocam novas questões, novas problemáticas sobre a localidade, o local e, de certa forma, creio, sobre o modo de urbanizar, de fazer novos espaços urbanos. O que se vê nessas situações é que, frequentemente, as possibilidades ou os desejos de retorno são menos e menos assegurados, as pessoas perderam o que Marc Augé chamou os “lugares antropológicos”, quer dizer, lugares onde tinham uma memória, relações e identificação com um espaço, e todos os procedimentos de identificação local têm de ser repensados não somente pelos pesquisadores, mas também pelas próprias pessoas.
5Muitos antropólogos da mundialização – Appadurai, Fergusson e outros – se perguntaram sobre a crise da localidade, explicando que os próprios deslocamentos, a própria perda da referência local ou da aparente “naturalidade” da referência local, colocam em questão o que Appadurai, por exemplo, chamou de “técnicas de produção da localidade”. Outros, como Fergusson, falam de “fábrica de lugar”. Hoje tornou-se uma problemática porque precisamente já não é mais vivido como algo natural, evidente, estando sempre colocado em tensão. Então interessa-me pesquisar essa questão da localidade, como repensar a localidade nesses espaços que hoje em dia são considerados liminares, espaços entre-dois, provisórios, transitórios, incertos, intermediários, associados a essas circulações forçadas – usando o termo genérico de deslocamento forçado. Sem entrar agora no detalhe do que é um deslocamento forçado, diria que são pessoas que têm de sair de um lugar por causa de uma profunda miséria, por causa de um perigo vital, por causa de uma guerra, por exemplo, por causa de uma organização do deslocamento de onde são obrigadas fisicamente a sair. Espaços formam-se, então, como etapas nessas circulações, ou como refúgios e campos de refugiados – estes têm que ser primeiro entendidos no sentido do refúgio, “procurar refúgio”, um asilo. Esses espaços hoje em dia diversificam-se, estabilizam-se, e podemos pensar – é essa a hipótese forte que eu formulo – que uma boa parte desses espaços vão formar os quadros a vir das identificações locais dentro de uma certa precariedade, dentro de uma certa “extraterritorialidade”, como diz Zigmunt Bauman (um sociólogo que trabalhou bastante sobre esses factos de mundialização), espaços onde há uma certa perda de solidez, perda de estabilidade, uma realidade mais “líquida” onde as coisas são incertas, não são estáveis.
6Que espaços são esses? São de vários tipos: de acampamento de trabalhadores itinerantes, precários; centros de trânsito para agrupamentos de longa duração de estrangeiros com pedidos de asilo; hotéis que são prisões ao mesmo tempo e campos de detenção para imigrantes que esperam regularização ou expulsão perto dos portos ou dos aeroportos; prédios abandonados; antigos espaços industriais abanabandonados; ruínas vazias que são invadidas, e que chamamos de squats, ou outros lugares de invasões; terrenos de camping que são ocupados por pessoas que se instalam na periferia das cidades e cujos espaços vazios de acampamento podem ser lugares de moradia duradoira; campos de refugiados; aldeias de refugiados ou sítios em geral das organizações humanitárias, ou do ACNUR, por exemplo, onde as pessoas vivem sob assistência e controlo humanitário e das organizações internacionais. Esta enumeração já significa que um inventário desses espaços é possível. Não falamos de uma antropologia da mundialização de uma maneira abstracta. Existe uma possível etnografia desses espaços. Cada estudante, cada pesquisador, pode escolher um terreno de investigação nesses lugares. Eles existem, não são uma abstracção. Isto é um ponto que me parece importante. Há uma maneira encantadora de falar da antropologia da mundialização e de dizer, por exemplo, que os refugiados e exilados são os precursores de uma sociedade pós-nacional. Há uma certa antropologia da mundialização que, tomando como objecto abstracto os fluxos, o transnacional, esses conceitos que parecem não ter uma realidade empírica, acaba por fazer acreditar na ideia de que os refugiados, exilados, deslocados, emigrantes clandestinos, são os maravilhosos precursores de um mundo cosmopolita e mágico onde viveríamos no transnacional, no pósnacional e no pós-local.
7Para mim a realidade é completamente contrária a partir do momento em que vos pergunto o que é que um antropólogo pode dizer. Ele pode trabalhar a partir de uma certa etnografia. O que podemos fazer com a etnografia? A etnografia dos lugares desta mobilidade, onde as pessoas reconstroem, recompõem uma certa ancoragem em cada um dos lugares. Por isso acho interessante fazer um inventário desses espaços e dos possíveis espaços a mais que podem aparecer ligados a essas grandes migrações e precursores, provavelmente, de formas de fazer cidade, de urbanizar, de novas lógicas urbanas em gestação, em curso.
8Esses lugares, a príori, estão duplamente fora da cidade, ou nascem como uma negação da cidade. Primeiro, porque fisicamente eles se situam fora dos espaços ou das estruturas formais oficiais daquilo a que chamamos cidade, cidade oficial, cidade delimitada, cartografada, transformada pelas políticas públicas. São os espaços mais abandonados, às vezes espaços edificados longe de quaisquer estabelecimentos humanos. Há campos de refugiados que estão exactamente no meio do deserto, ou ao lado de uma pequena aldeia de 500 ou 1000 habitantes, e assim aparecem campos de refugiados de 150 000 habitantes no meio de um deserto, no meio de uma floresta, etc. E a outra negação, na qual esses lugares se definem, é a negação provocada pelas próprias políticas de exclusão, de abandono, de distanciamento. Esses espaços, de certa forma, emergem no vazio, no indefinido, como no terreno vago das políticas públicas.
9Colocam-se nesses espaços pessoas das quais não se sabe o que fazer. Há uma proximidade entre esses espaços humanitários e as margens actuais do urbano, as periferias e favelas, invasões, os bairros chamados de espontâneos (déguérpi como temos na África). São espaços mantidos à distância e o destino desses espaços ele próprio é mais, e mais frequentemente, sujeito a um tratamento, não social ou político, mas a um tratamento profilático, ou policial, comunitário ou humanitário.
10Os pesquisadores que entram nesse tipo de espaços não podem, acho eu, satisfazer-se com uma questão que hoje em dia é muito divulgada nas ciências sociais da cidade e cuja origem é mais técnica e gestionária do que propriamente antropológica. A pergunta a fazer é se, e como, a cidade faz ou não faz sociedade. Ouve-se muito “a cidade já não faz sociedade”; essa problemática parece-me ligada a uma representação do poder estruturante da cidade histórica cujo poder é muito colocado em questão pelos fenómenos da regionalização, da mundialização, no plano económico, no plano político, no plano do mercado de emprego, no plano da polícia, no plano dos conflitos, dos deslocamentos de população. Frequentemente os mesmos dizem que já não há cidade hoje em dia, que é o fim da cidade, e ao mesmo tempo dizem que “a cidade não faz mais sociedade”. Então prefiro inverter a pergunta e interrogar como é que os grupos, as sociedades, ou mais precisamente, as situações, as acções “fazem” a cidade. E por isso eu preciso de me destacar de uma representação dominante da cidade que diz que a cidade é o que é institucional, funcional, formal, material, constituída como a imagem que nós temos da cidade. Eu tenho pesquisado durante 20 anos em lugares que parece que não são cidades, são lugares de barracas, lugares de acampamentos, lugares onde há um mínimo de materialidade; às vezes não têm materialidade, e são as próprias pessoas que fazem essa materialidade, e ao mesmo tempo elas fazem as relações que vão com a materialidade. E então a gente encontra-se em situações onde, de forma muito concreta, material, e de forma muito social, as pessoas fazem a cidade. São citadinos sem a cidade, e as cidades vêm depois. Têm o espaço, a aglomeração, um certo vazio: é onde essas pessoas fazem a cidade.
11É esta a minha problemática, a questão que eu coloco, sem negar obviamente o peso desses constrangimentos institucionais, políticos, materiais, que fazem, num certo momento, uma cidade constituída. Mas podemos de cada vez refazer a génese dessas fabricações de cidade e, de certa forma, trabalhar nos espaços liminares, precários ou vazios, que permitem fazer e repensar essa génese.
12Abordo dessa maneira a investigação sobre campos de refugiados. A abordagem que eu tenho é explicitamente a de uma etnologia urbana dos campos de refugiados. Não há, repito, nenhum carácter normativo evolucionista nessa questão.
13Fazendo essa pergunta eu não olho os campos em função de um objectivo que eles teriam que alcançar, e que seria a forma da cidade conhecida como organização do espaço, como formas arquitectónicas, como instituições urbanas. Eu procuro ver e entender as criações sociais, as mudanças culturais, eventualmente as novas formas políticas que aparecem nesses contextos a partir do momento em que, como diz Louis Wirth (um dos primeiros pesquisadores da Escola de Chicago), existe “uma implantação relativamente permanente e densa de indivíduos heterogéneos”. E isso é o que eu vejo num campo de refugiados. Qualquer que seja ele, é a definição que Louis Wirth dá do que é uma cidade!
14Os próprios espaços dos campos de refugiados podem ser muito diversos. E muito raro que no conjunto dos campos de refugiados que existem hoje em dia no mundo hajam tendas. A figura, o modelo, que conhecemos das tendas como sendo um campo de refugiados é algo que muda rapidamente: pessoas e organizações humanitárias constroem rapidamente barracas, casas de madeira, casas de terra, no lugar das tendas. O factor tempo é muito importante. A transformação dos espaços é importante. Um campo que tem 5 anos de existência, por exemplo, pode parecer um enorme bairro de lata. Às vezes não se vê na materialidade uma grande diferença entre uma favela e um campo de refugiados, às vezes pode-se pensar, como no caso do Quénia, numa espécie de museu etnográfico onde cada um tenta reproduzir o que sabe fazer de casa. Cada um faz o tipo de casa que sabe fazer, redondo, quadrado, com tecto assim com tecto assado, e no final temos um tipo de espaço multicultural na forma das construções, ainda mais porque são construídas com materiais recuperados do material humanitário, têm cobertas com as cores do ACNUR, branco e azul, que são usadas para fazer cortinas, ou portas, o material das latas que é usado para fazer janelas ou mesas, etc. Temos então um espaço colorido, muito diverso, híbrido, que é a própria materialidade do campo.
15Mas a questão que eu coloco neste caso, nesses espaços, é que se trata de um espaço que é literalmente desconhecido. Ele é desconhecido do próprio pesquisador mas ele é também desconhecido das pessoas que chegam aqui, pois quando se chega não se sabe com antecedência o que é que vai ser o mundo no qual se vai viver, não se tem referência deste mundo. Depois de um certo tempo entre indivíduos que têm uma heterogeneidade étnica, um desenraizamento social, uma pobreza económica muito forte, e sendo todos eles colocados à distância do resto do mundo, das cidades, ou dos Estados-nação, a pergunta é: como se vai fazer cidade entre essas pessoas, no sentido relacional, a urbs, o espaço de trocas como experiência do outro, como experiência da alteridade, no sentido político, o da polis, no sentido do mundo onde se cria uma comunidade de palavra, onde as pessoas acabam por se identificar umas com as outras?
16Uma maneira de observar isso é olhar pela entrada da organização do espaço. A organização do espaço é uma maneira de ver como se transformam e se organizam socialmente as pessoas nesses campos de refugiados. Por exemplo, no Nordeste do Quénia há um conjunto de três campos com 150 000 habitantes, “moradores”, de certa forma, dos campos. O espaço é a priori definido da seguinte maneira: o ACNUR constrói cercas com arame farpado, com material de madeira, enfim, vários tipos de cerca no perímetro dos campos, mas também no seu interior, criando assim a separação de 10 a 15 sectores. No interior de cada campo existe um traçado ortogonal das ruas, das vias, dos blocos e, em cada “sector”, ou “bloco”, as pessoas chegam a ser agrupadas por lugar de origem, por etnia, por clã, etc.
17Esses agrupamentos existem nos sectores onde as pessoas fazem os seus abrigos e, às vezes, há alguns grupos, como por exemplo o sector sul-sudanês, que reorganizam completamente o seu espaço, que fecham com uma cerca o conjunto do espaço e vão construindo, o que parece ser uma cidade em miniatura ou um povoado próprio, protegido, fechado dos vizinhos. Frequentemente, nesses casos, há conflitos, disputas com os vizinhos que são de um grupo diferente, mas também há circulação das crianças que vão de um grupo para o outro. Então isso quer dizer que há uma certa transformação linguística, cultural, na vida social, que acontece nesses lugares mesmo que a priori as pessoas cheguem e tentem fechar-se para se proteger umas das outras. Existem esses intercâmbios e existem também outros lugares no próprio espaço do campo que são lugares abertos onde as pessoas têm encontros, no bar, num pequeno mercado, em pequenas feiras na entrada dos campos, etc.
18A questão que eu coloco a partir daí é que se nós temos, após um ou dois anos, uma certa materialidade que já não é essa das tendas, mas uma que reorganiza o espaço onde os moradores reorganizam um espaço, e se temos também uma certa sociabilidade, certas formas sociais que começam a desenvolver-se, então a questão que se coloca rapidamente é a questão política, de uma certa “desordem” criada pela acção dos refugiados, distinta da ordem inicialmente prevista do campo.
19Podemos destacar duas maneiras de falar dos acampamentos. Uma é genérica, é a do campo como forma genérica, como expressão de um “bio-poder”, para dizê-lo à la Foucault, em que o campo organiza o controlo sobre a vida de quem lá está. Assegura a vida mas também controla as pessoas, é uma certa negação da existência social dos indivíduos, das identidades de cada um. Todo o mundo é vítima ou todo o mundo é acusado, ou todo o mundo é designado como sendo, devendo ser, controlado ou devendo ser ajudado. Fora disso não têm existência. Ora, é possível falar de uma outra maneira dos campos. Aos poucos vai-se vendo o que acontece com o meio social de vida, alguns líderes aparecem nos campos de refugiados, algumas pessoas vão falar com os responsáveis das organizações humanitárias em nome dos refugiados para dizer que não estão satisfeitos com tal, tal e tal, e uma certa forma de contestação aparece. Essas formas de contestação que aparecem são da maior importância a meu ver, porque elas fazem sair as pessoas dessa identidade de vítimas sem palavra – na ordem dos campos, elas não precisam de falar porque são vítimas e têm direito, num certo momento, a uma ajuda alimentar, mas num outro momento, quando as organizações decidem que elas não são mais vítimas porque a guerra acabou lá no outro lado ou porque o tempo passou e a situação melhorou, então decidem da noite para o dia que aquelas pessoas já não são vítimas e não têm mais ajuda. Quer dizer que ser vítima é ter alguns direitos, chamados de “direitos humanos”, mas que se perde da noite para o dia o direito aos direitos humanos, a partir do momento em que se sai da categoria humanitária que o define como “vulnerável”, como “vítima” ou o que quer que seja. Ora, quando os refugiados começam a fazer política eles usam esse discurso das Nações Unidas – das “U. N.”, como eles lhes chamam. O discurso das Nações Unidas é reutilizado pelos refugiados para criar reivindicações, com acções que são a meu ver acções políticas. Por exemplo, como as que aconteceram na Guiné, em Julho-Agosto de 2003, manifestações de rua no meio do campo, organizadas por mulheres que reclamavam telas plásticas para os tectos das barracas porque chovia e os outros já tinham recebido e elas não; elas usavam a retórica humanitária da vulnerabilidade dizendo que eram viúvas da guerra: “temos filhos, então entramos na categoria de vulnerabilidade do ACNUR, está aí no papel, e temos direito às nossas telas plásticas”. Foram recusadas, ocuparam a rua principal (porque o campo também tinha uma rua central). Fizeram parar os veículos das organizações humanitárias, sequestraram os humanitários – que não entenderam porque os refugiados faziam isto, porque eles estavam ali para os ajudar. Os refugiados foram falar com responsáveis do campo do ACNUR; e finalmente conseguiram um encontro com o responsável local da administração guineense, e em dois dias receberam as telas plásticas para as casas.
20O interessante é que há um desentendimento, um conflito de significados, entre os refugiados e as pessoas das organizações humanitárias, porque, usando a mesma linguagem, os refugiados fazem dessa linguagem um discurso a partir do qual eles podem agir em termos políticos. Noutro campo há líderes que se formam entre os refugiados, representantes de tendas colectivas, para negociar, para organizar as coisas com os representantes da administração do ACNUR e das ONGs no campo. Os refugiados designam pessoas para falar. Em pouco tempo essas pessoas tornam-se líderes de sector, chamados “líderes de comunidade”, e acontece que esses que emergem como líderes já não são os mais precários, geralmente são pessoas que já têm na sua trajectória de pré-refugiados, antes de chegar ao campo, um certo status social: são comerciantes, são pastores de igrejas pentecostais, são professores de l.° grau, são pessoas que têm um certo status, – e então os refugiados consideram que são pessoas que podem representá-los e negociar com a administração dos campos. As pessoas das organizações humanitárias reagem negativamente, porque esses não são os “verdadeiros” refugiados, porque eles não parecem “sofrer”, porque eles não estão tão mal como os outros que vimos aqui neste campo, e não querem falar com eles. Eles não são reconhecidos como possíveis interlocutores enquanto, de facto, o que ocorre é mesmo o processo da representação política, diferente do modelo da representatividade categorial. Ou seja, para o discurso humanitário o modelo do interlocutor é o modelo da vítima: é a mulher sofrendo com o bebé inocente nos braços, essa é que é a figura para as organizações humanitárias, alguém sofrendo. Se o interlocutor não está magro, não é pobre, fala bem e negoceia com agressividade, com listas de reivindicações, então as organizações humanitárias e o ACNUR não gostam de tratar com esse tipo de pessoas, porque consideram que são políticos, e de facto é uma acção política que se introduz no campo.
21A conclusão que eu quero tirar disto, em algumas palavras, é que a observação etnográfica dos campos de refugiados pode permitir dizer que nesses espaços mundos sociais constituem-se aos poucos, e que não são a reprodução de mundos anteriores, étnicos, por exemplo – a etnicização da problemática dos refugiados é uma forma de culturalismo, como quando se considera, por exemplo, que um Patchun será sempre um Patchun e que quando ele é um refugiado ele continua sendo o mesmo e nada muda. Sim, as coisas mudam porque o campo é um espaço em si, que gera a sua própria dinâmica. Então parece-me que a etnicização da problemática dos refugiados nos espaços da mobilidade onde eles vivem é algo errado no plano teórico, é uma forma de “culturalismo”, antes de ser um a priorí político, e que pode desembocar, inclusive, num a priorí racista sobre os migrantes e os refugiados, como vemos hoje em dia na Europa.
22De facto, esses espaços formam novos contextos sociais. Dois componentes são essenciais para entendê-los. Um é a questão da fundação de novos espaços, e remete para a ideia de “raizamento” (o racinement, segundo Mareei Détienne), não de enraizamento. Significa que as raízes não vêm do chão, as raízes são produzidas através de rituais de fundação, rituais de inscrição material num certo local. Isso permite entender que, às vezes, as pessoas podem acabar por gostar do campo de refugiados onde vivem, como no famoso caso dos Palestinianos, como noutros lugares em África onde isso acontece, onde há pessoas que já não se querem ir embora dos campos onde vivem há 5, 10 ou 20 anos. O segundo componente da criação desses novos contextos é o do começo da política: acções nascem nesses campos de refugiados, com tomadas de palavra utilizando a retórica humanitária como linguagem política. Então estamos também face a formas políticas completamente inéditas e diferentes, às quais temos que dar toda a atenção.
Notes de bas de page
1 Conferência proferida a 18 de Novembro de 2005, na abertura do encontro pluridisciplinar “O Lugar da Rua”, organizado no ISCTE pelo CIES e CEHCR
Auteur
Antropólogo, Centre d’études africaines – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Institut Recherche pour le Développement.
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