O nascimento de um museu
Texte intégral
Um percurso difícil
A esperança
1O Verão de 1975 fora duro para Michel Giacometti, o mentor do Plano Trabalho e Cultura (PTC). Coordenara a acção dia a dia nos planos científico, logístico e financeiro, acção esta cujo planeamento tinha sido prolongado. Visitara as brigadas e dera directrizes sobre as actividades em curso. Mantivera a sede em funcionamento, atento aos problemas surgidos aqui e ali, velando pelo ritmo de trabalho. Em Lisboa, centralizara e ordenara a chegada dos objectos e dos outros materiais recolhidos pelas brigadas. Com as hostes no terreno, foi na capital que esteve o comando central. Para além disso, Giacometti ocupava responsabilidades na Comissão de Reestruturação do INATEL.
2E, não menos importante, o autor do projecto do Centro de Documentação Operário-Camponesa — Museu do Trabalho (CDOC-MT) preparava o caminho para a institucionalização dos materiais recolhidos pelo PTC.
3A primeira pista segura que encontrámos da concretização do CDOC é também desse Verão e refere já a sua localização em Setúbal. Lê-se numa acta camarária:
“Informou a vogal Sr. ª Dr. ª Maria Odete dos Santos Costa que tinha sido recebido do INATEL o ofício registado em 5 de Agosto findo, sob o nº 6367, que passou a ler e é do seguinte teor:
‘De acordo com as conversações havidas entre a Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Setúbal e o membro da Comissão Administrativa do INATEL Sr. Rogério Paulo, vimos pela presente confirmar o seguinte:
1) Está este Organismo interessado em fundar em Setúbal o Centro de Documentação Operário-Camponesa/Museu do Trabalho utilizando os edifícios do antigo convento ao lado da Igreja de Jesus.
2) Esse Centro seria de projecção nacional e não só local.
3) A Câmara Municipal de Setúbal entraria, pela sua parte, com os edifícios e respectivas obras, de forma a os tornarem praticáveis. Igualmente seria da sua conta (e eventualmente da Junta de Planificação de Setúbal, de acordo com a Câmara), a manutenção dos edifícios e o seu pessoal menor.
4) O INATEL garante o Director, especialistas e arranjo do Museu e CDOC, bem como peças de exposição e investigação, visando tornar o Centro num Organismo vivo e sempre em progressão.
5) O CDOC seria, portanto, uma realização do INATEL e da Câmara Municipal de Setúbal.
6) O Ministério da Comunicação Social estaria na disposição de fundar no mesmo edifício um Centro de Animação Cultural do distrito que englobaria a vossa pretendida Companhia de Teatro. Aconselhamos um contacto pessoal e directo com a Direcção-Geral de Espectáculos.
7) Esse Centro de Animação Cultural contaria com o apoio do CDOC, o que permitiria formar um complexo economicamente mais razoável e com um alcance nacional (caso do CDOC) e regional (CDOC e CAC) de grandes proporções. As máquinas necessárias, por exemplo, poderiam servir aos dois Centros.
Esperando a vossa confirmação por escrito a esta carta, e o começo das obras, bem como a indicação de uma provável data para a instalação dos nossos Serviços, subscrevemo-nos com amizade e simpatia.’
Concluída a leitura, a vogal Sr. ª Dr. ª Maria Odete Santos Costa pôs em destaque o valor da iniciativa, o interesse que tinha para Setúbal a instalação do Centro a que o ofício transcrito se refere nesta Cidade e informou que se aguardava que o arquitecto que está a proceder ao estudo das instalações apresente o respectivo projecto.”1
4Segundo esta proposta, pois, o CDOC-MT seria um empreendimento conjunto da Câmara Municipal de Setúbal e do INATEL, cabendo à primeira disponibilizar instalações na área do Convento de Jesus assim como alguns recursos humanos e à segunda entidade fornecer os materiais para exposição e documentação, assim como pessoal especializado, nomeadamente o director.
5Apresentada esta proposta no início de Setembro, a Câmara preocupou-se logo com as instalações do Centro e do Museu, para o que estabeleceu contactos com a Santa Casa da Misericórdia, então instalada no Convento de Jesus e nos edifícios anexos. Em carta que noticiava as intenções e os passos dados, comunicava-se laconicamente:
“[…] já oficiámos à Fazenda Pública a quem na verdade pertence o edifício”.2
6Repare-se como todos estes passos no sentido de concretizar o CDOC-MT foram dados em pleno Verão, ainda com o PTC em curso, com os brigadistas no terreno e sem a maioria dos materiais chegados. Parece, pois, que o CDOC-MT era algo para ser realizado a curto prazo, algo em que Giacometti estava profundamente empenhado, o que o obrigava a actuar simultaneamente em várias frentes.
7Com o fim do Verão e do PTC, acabaram de chegar à capital os materiais recolhidos. Se terminara a acção dos brigadistas, redobrava então o trabalho da retaguarda e do mentor do PTC. Os meses seguintes não seriam menos preenchidos. As actividades desenrolaram-se em vários campos.
8Por um lado, Giacometti atendeu imediatamente à literatura oral, começando uma equipa de sete pessoas a efectuar a transcrição dos textos de literatura oral recolhidos, trabalho este que se prolongou até Outubro de 1976.3 A equipa foi composta por elementos que tinham colaborado no PTC (no seu lançamento, no curso preparatório e no seu acompanhamento durante o Verão). Este trabalho, em que se empenhou Manuel Viegas Guerreiro, da Faculdade de Letras de Lisboa, foi posteriormente continuado na linha de acção Recolha e Estudo da Literatura Oral Portuguesa existente nessa Faculdade e dirigida por este mesmo professor. Esta vertente, que se traduziu num trabalho efectuado com grande rigor, foi aquela que mais rapidamente se exprimiu em obras editadas. Bastantes recolhas do PTC, cuidadosamente referenciadas, constituem alguns dos materiais utilizados por Alda e Paulo Soromenho nos seus dois volumes Contos Populares Portugueses. Inéditos (1984, 1986) e por Aliete Galhoz no Romanceiro Popular Português (1987, 1988). Parte das anedotas recolhidas também já foram publicadas por António Machado Guerreiro — outro colaborador desta linha de acção —, agora em obra para o grande público e na qual as indicações sobre o contexto da recolha são pouco detalhadas (Guerreiro, A. M. 1989). Este último autor preparou ainda um outro volume, Teatro Tradicional Português do Continente, que também incluía recolhas do PTC. Foi assim em torno desta linha de investigação sobre literatura oral que primeiramente se tornaram visíveis resultados do PTC.
9Para além deste eixo de actividade, que sobressaiu pela equipa envolvida e pela sua continuidade, outros vectores do trabalho existiram. Concentremo-nos num outro eixo essencial: a recolha de cultura material.
10A inventariação dos objectos recolhidos constituiu uma prioridade. Contou Michel Giacometti que foi feito um primeiro inventário de peças, a partir das fichas, por um grupo integrado por membros dos Serviços Centrais; este primeiro inventário manuscrito teria depois servido de base para a elaboração de um segundo inventário, efectuado ainda por um destes funcionários, que centralizou também informações complementares.4 Os dados recolhidos indiciam que, no final de Março, um inventário estava pronto.5
11A classificação do material etnográfico ocupou também Giacometti e o seu grupo de colaboradores.6 Preocupados com a cultura material, estes realizaram ainda outros trabalhos, nomeadamente a montagem dos teares — no que ajudaram por vezes os brigadistas que os tinham recolhido.7
12Lamentavelmente, não conseguimos encontrar estes inventários, as fichas das peças e a sua classificação.
13Entretanto, Giacometti e a sua equipa continuaram a recolher mais material etnográfico pelo país. Uma parte teria sido apalavrada ou mesmo comprada por brigadas que não teriam conseguido enviar as peças: certamente é o caso da viagem Lisboa – Setúbal – Santarém – Juncal – Leiria – Setúbal – Lisboa, em que foram acompanhados por membros da brigada da área.8 A Faro e Albufeira, efectuaram outra viagem na última semana do ano de 1975, que incluiu uma entrevista com o governador civil: material novo?, ou apalavrado pela equipa algarvia? Desconhecemos.9 Situação diversa é a de uma expedição a Alcácer do Sal — onde não estivera qualquer brigada —, para recolha de material etnográfico.10 Contou ainda Giacometti aos autores que adquirira uma colecção de cangas numa região não coberta pelo PTC.11 Como as verbas do PTC não tinham sido todas gastas durante a estada no terreno, Giacometti pôde continuar a realizar expedições para adquirir objectos para o futuro Museu do Trabalho (MT).
14Havia ainda outra frente de batalha: a das instalações. De acordo com Michel Giacometti, os objectos estiveram nas salas do Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis (FAOJ), donde as transferiram para o corredor, na sua ausência (lembre-se que a sede do PTC ocupava as instalações do FAOJ); depois, as peças foram para o Gabinete de Etnografia do INATEL, na sede da CGTP; em seguida, levaram-nas para Setúbal para um pré-fabricado, donde seriam finalmente transferidas para o Convento de Jesus, ficando uma parte nas salas do próprio convento — onde estava também a sede do grupo de teatro local — e outra parte nas enfermarias anexas.12
15Conjugando estas informações com a análise dos livros de contabilidade, podemos afirmar que, no Outono de 1975, as peças já estavam a ser encaminhadas para Setúbal: as expedições de recolha de material passavam por esta cidade, as montagens de peças eram aí efectuadas, assim como o inventário e a classificação etnográfica.13 Sabemos também que a colecção etnográfica ficou armazenada no Pavilhão da Junta Distrital, aguardando a transferência para instalações definitivas.14
16Este problema das instalações revelou-se delicado e moroso. Como afirmámos, em meados de Setembro tinham sido estabelecidos contactos com a Misericórdia para resolução desta questão. Em 25 de Novembro de 1975, a Comissão Administrativa da Santa Casa informa que:
“[…] concorda com a instalação do Museu do Trabalho de Setúbal no edifício pertencente a esta instituição, ainda que edificada em terreno da Fazenda Pública, situado na cerca do Mosteiro de Jesus”.15
17Neste contexto, a Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Setúbal (aprova a instalação na cidade do CDOC-MT, consubstanciado num acordo com dez cláusulas, proposto e apresentado pela mesma vogal, aprovado por unanimidade, devendo produzir efeitos imediatos e ser reduzido a escritura.16
18No dia seguinte, 10 de Dezembro de 1975, a escritura da fundação do CDOC-MT em Setúbal foi efectivamente assinada:
“Entre a Câmara Municipal de Setúbal e o Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores (INATEL) é estabelecido o presente acordo: No dia dez de Dezembro de mil novecentos e setenta e cinco […] perante mim […]”
compareceram como outorgantes:
Primeiro — O Excelentíssimo Senhor Francisco Leonel Rodrigues Lobo […], vice-presidente da Comissão Administrativa do Município de Setúbal, em exercício, outorgando nesta qualidade em representação do mesmo município […]
Segundo — O Senhor Rogério Gomes Lopes Ferreira […] em representação do Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores.
Pelo primeiro outorgante foi dito que entre a Câmara Municipal de Setúbal […] e o INATEL é estabelecido, através da presente escritura, conforme deliberações anteriormente tomadas, um acordo cujas cláusulas se passam a transcrever:
Cláusula 1ª — É autorizada pela Câmara a instalação e funcionamento em dependências de sua propriedade ou de que detenha o uso e fruição, do Centro de Documentação Operária-Camponesa (C.D.O.C.) do INATEL, incluindo o seu Museu do Trabalho.
Cláusula 2ª — O Centro de Documentação Operária-Camponesa — que passamos a designar apenas por Centro — e o seu Museu do Trabalho é uma dependência do INATEL em cujo funcionamento colabora a Câmara Municipal de Setúbal, terá âmbito nacional e existirá por tempo indeterminado.
§ único — A colaboração da Câmara manter-se-á enquanto o Centro funcionar em Setúbal.
Cláusula 3ª — O Chefe do Gabinete de Documentação Operária-Camponesa do INATEL exercerá, por inerência, a direcção do Centro e do seu Museu do Trabalho.
Cláusula 4ª – Constitui encargo do primeiro outorgante:
a) todas as obras de adaptação e manutenção das instalações cedidas para o Centro e o seu Museu do Trabalho;
b) as remunerações do pessoal relativamente a contínuos, paquetes, porteiros, telefonistas e limpeza ao serviço do Centro e seu Museu do Trabalho;
c) consumo de água, gás, energia eléctrica e telefones.
Cláusula 5ª — Constitui encargo do INATEL:
a) remuneração do pessoal técnico e administrativo cujo número é fixado de acordo com as necessidades, pelo INATEL, por proposta do Chefe do Gabinete de Documentação Operário-Camponesa;
b) todo o apetrechamento incluíndo o material técnico necessário ao funcionamento do Centro e do seu Museu do Trabalho;
c) a aquisição de peças e documentação para o Centro e seu Museu do Trabalho.
Cláusula 6ª — As peças do Museu, documentação e material técnico já adquiridos, ou a adquirir, pelo INATEL, são propriedade deste.
Cláusula 7ª — Constituem receitas do Centro e do seu Museu do Trabalho:
a) as edições impressas, fonográficas, fotográficas, slides, filmes, eventuais programas de Rádio e Televisão e festivais ou espectáculos;
b) o fornecimento de cópias dos documentos existentes no Centro e seu Museu do Trabalho;
c) os donativos, legados, subvenções e comparticipações de entidades públicas ou particulares.
§ único — Não constituem receitas para os efeitos da Cláusula 9ª os donativos, legados, subvenções e comparticipações consignados à aquisição de peças, documentação e material técnico.
Cláusula 8ª — As visitas ao Museu do Trabalho dentro das horas habituais do funcionamento, a fixar, serão gratuitas.
Cláusula 9ª — O eventual saldo financeiro de actividade do Centro e seu Museu do Trabalho será dividido proporcionalmente ao volume das despesas anuais suportadas pelo INATEL e pela Câmara Municipal de Setúbal, não entrando em linha de conta o valor das obras de adaptação a realizar pela Câmara.
Cláusula 10ª — Ambos os outorgantes se comprometem a cumprir pontual e integralmente tudo o que neste acordo fica estipulado.
As deliberações anteriormente referidas, que autorizaram a celebração desta escritura, foram tomadas pela Comissão Administrativa em reunião ontem realizada […] e pela Comissão Administrativa do INATEL em reunião realizada em sete do mês findo […].”17
19O Centro e o Museu pareciam, pois, estar em vias de instalação, noticiando, aliás, tal facto a imprensa local.18
20Desde muito cedo que o processo do CDOC-MT contou com o apoio de um arquitecto.19 Neste final de 1975, após inúmeros trabalhos preparatórios, o projecto do Centro Cultural de Setúbal, da sua autoria, estava pronto (Melo 1975). Este Centro Cultural, que se instalaria na área do Convento de Jesus e anexos, seria composto por vários centros, sendo os principais o CDOC e o Centro de Actividades Teatrais.20
21Precisando algumas das instalações provisórias de obras urgentes, foi sob orientação do arquitecto responsável que elas foram efectuadas. Abriu-se um concurso, onde se apresentaram duas empresas: a Revolucionária, SCARL21 e Firma Delmiro Manuel Pacheco. Analisados os orçamentos para “Construção de uma escada de acesso ao 1º andar, de betão descofrado para as futuras instalações do Museu Operário e Camponês”22, foi aprovada em reunião da Câmara a proposta de Delmiro Manuel Pacheco, por ser menos dispendiosa do que a da Revolucionária. Cooperativa Operária de Produção e Construção Civil.23 Em Abril de 1976, as obras já tinham sido iniciadas.24
22Giacometti acompanhou pessoalmente todo o processo.25
23Entretanto, a Câmara Municipal de Setúbal procurava financiamento para as obras. Efectuou múltiplos pedidos a diversas instituições — Fundação Calouste Gulbenkian antes do mais, mas também Comissão Regional de Turismo da Serra da Arrábida, Junta Distrital de Setúbal e FAOJ.26 Argumentou da forma que mais poderia sensibilizar cada instituição: assim, ora realçou o interesse cultural regional do Museu, ora acentuou o seu papel enquanto centro de estudo e divulgação da história das lutas operárias e camponesas. O que nos indicia que o Centro Cultural era uma aposta profunda da Câmara, para a qual se procurava empenhadamente financiamento, estando assegurada a comparticipação da própria Comissão de Cultura e Recreio e esperando-se contar com os subsídios da Junta Distrital e da Comissão Regional de Turismo da Serra da Arrábida.27
24Em suma, no Verão de 1976, Giacometti e o seu grupo de colaboradores trabalharam a vários níveis. As peças estavam em Setúbal, em instalações provisórias, mas as obras mais urgentes já haviam começado, o arquitecto responsável tinha o projecto do Centro Cultural pronto e a autarquia estava seriamente envolvida na sua concretização. Nesse Verão, tudo aparentava, pois, estar bem encaminhado. A iniciativa parecia avançar.
25Sublinhe-se entretanto que, desde a ideia inicial de Michel Giacometti até ao Verão Quente de 1975, houve uma modificação quanto à localização. Segundo o projecto do CDOC-MT realizado por Michel Giacometti no princípio de 1975, este deveria instalar-se
“[…] num espaço verde da periferia de uma zona de concentração operária (Barreiro, Almada, Seixal)”.
(Giacometti 1975: 7)
26Porém, constatamos que sempre se encaminhou para Setúbal.
27Apesar de não ser o destino inicialmente pretendido, Setúbal representava uma opção relativamente próxima do Barreiro, Almada, Seixal.
28A cidade possuía o cunho vermelho no qual Giacometti estava interessado. A auréola vermelha de Setúbal, conseguida durante a Primeira República — em que ficou conhecida como a Barcelona portuguesa —, reforçou-se nos anos 70 como capital do distrito em que a oposição ao Estado Novo parecia ser mais forte, se atendermos aos resultados eleitorais e ao movimento grevista. Após o 25 de Abril de 1974, a cidade de Setúbal era vista como um laboratório político-social. Esta visão radica nomeadamente na força do movimento sindical, na estruturação dos órgãos de poder popular, nos movimentos sociais urbanos com intervenção até no planeamento urbano e na tentativa de estabelecer uma outra relação cidade-campo (Downs & al. 1978, Downs 1989, Faria 1981: 144-154). O carácter de laboratório político-social da cidade condizia com o cunho laboratorial que Giacometti queria dar ao seu Museu:
29"Preconizamos [...] um Centro de Documentação Operário-Camponesa, que seria um autêntico Museu do Trabalho — e, por Museu, queremos dar a entender o laboratório onde se documenta, analisa e projecta a história das classes trabalhadoras e do Povo português em geral"
30(Giacometti 1975: 6).
31Setúbal possuía ainda um grupo de teatro bem activo que deveria constituir uma trave-mestra do Centro Cultural a realizar.28 O seu objectivo principal consistia na animação cultural da cidade e do distrito através do teatro, contribuindo para a descentralização cultural e o avanço do processo revolucionário (Melo 1975: 3). Importa talvez estabelecer um paralelo com a situação em França, de onde tinham vindo em momentos diferentes Giacometti e o director do grupo teatral. No caso francês, o teatro foi um eixo estruturador essencial das maisons de la culture e a descentralização teatral articulou-se frequentemente com a criação na província de centros culturais (Ory 1984: 444-451, 1990: 693-841; Queyranne 1975: 1-23, 621-646). O teatro era suposto ter poder mobilizador, capacidade de gerar públicos participativos e recorrentes, sendo visto como a “locomotiva da popularização cultural” (Ory 1984: 447). Por todas estas razões, Setúbal, a capital vermelha, foi a terra de l’espoir.29
A quebra do encanto
32Giacometti trabalhava sobre o Plano Trabalho e Cultura, os objectos estavam em Setúbal, o projecto estava feito, a escada construiu-se. Contudo, as obras não prosseguiram, o processo de instalação e de construção do CDOC-MT não avançou substancialmente,eo do Centro Cultural de Setúbal, no qual este se integraria, também não.
33Foram certamente várias as razões que levaram a que a esperança não se tenha materializado. Algumas terão certamente a ver com a conjuntura política então vivida.
34Apesar da inflexão do 25 de Novembro não ter levado à interrupção do trabalho sobre a colecção etnográfica reunida pelo Plano Trabalho e Cultura, o recuo na concretização do CDOC-MT está certamente relacionado com as modificações a vários níveis decorrentes desta jornada política e do ciclo político da normalização constitucional (eleições legislativas, presidenciais e autárquicas).
35Na Câmara de Setúbal, com as primeiras eleições municipais, houve uma recomposição política dos autarcas e uma redistribuição de pelouros. A tal facto não poderia ser indiferente uma realização como o CDOC-MT.
36A um outro nível, Giacometti deixou o INATEL, numa situação de conflito aberto com a instituição. Este facto criou uma situação de difícil solução.
37Lembre-se que o CDOC-MT era uma realização conjunta da Câmara Municipal de Setúbal e do INATEL segundo a qual, grosso modo, este último era o proprietário das peças e o responsável pela orientação científica, enquanto o Município de Setúbal era o fornecedor das instalações. Ora Giacometti, o previsível director do Museu no tempo do Plano Trabalho e Cultura e nos meses seguintes, já não estava no INATEL. Mas as peças já estavam em Setúbal. Como resolver este problema? Não podendo já Giacometti efectuar a ligação entre as instituições responsáveis pelo CDOC-MT, como solucionar o caso? E, mesmo que se pretendesse avançar sem ele, seria acaso possível passar sem o homem que tinha pensado, planeado, concretizado, coordenado e trabalhado nos resultados do Plano Trabalho e Cultura? Michel Giacometti, se não possuía o poder, possuía a informação, o conhecimento sobre os objectos e a documentação anexa, sobre a acção, as suas condições, as suas características e os seus resultados. Se bem que esta hipótese nos pareça ter algum poder explicativo do bloqueamento em que o CDOC-MT se encontrou, ficaria de qualquer modo em parte por entender o facto de o Centro Cultural não ter avançado nessa conjuntura: mesmo sem o CDOC-MT, havia o Teatro de Animação de Setúbal (TAS) cujas actividades se continuaram a desenvolver. De qualquer modo, esta questão de co-responsabilidade terá condicionado bastante o desenrolar do processo.
38Outro factor de bloqueamento poderá ter a ver com o financiamento. É bem possível que os subsídios previstos da Junta Distrital, da Comissão Regional de Turismo da Serra da Arrábida e da Comissão de Cultura e Recreio tivessem dificuldades em o assegurar inteiramente. Não conhecemos o destino das propostas apresentadas neste sentido à Fundação Calouste Gulbenkian.30
39Ainda se levantavam outros problemas. Vendo o processo parado, parte das suas instalações ocupadas, e propondo-se alargar as suas actividades, a Santa Casa da Misericórdia modifica a sua posição, reclamando para si os terrenos e os edifícios. Mais concretamente:
“1 — Os terrenos […] foram cedidos a título definitivo à Misericórdia e não a título precário, conforme decreto régio de D. Carlos, publicado no Diário do Governo nº 23 de 30/1/1892.
2 — Enquanto o Hospital da Misericórdia esteve instalado no Convento, dado que o mesmo se tornou insuficiente, a Misericórdia construiu à sua custa dois pavilhões, num dos quais foi a Câmara autorizada a instalar um pequeno Museu do Trabalho.
3 — A Misericórdia tem junto ao [seu] Lar [junto ao Convento ] […] um terreno próprio para além do que lhe foi cedido por decreto régio, no qual sempre pretendeu ampliar o lar de idosos referido.
4 — Até à presente data, a Misericórdia não recebeu qualquer planta das obras que se pretendem realizar […].
5 — Não foi até agora proposta pela Câmara qualquer indemnização ou concretizada qualquer troca por outro terreno que à Misericórdia apenas interessa se for contíguo ao Lar […].
Assim, pelo atrás exposto, conclui-se que o assunto, deveras complexo e vital para a Misericórdia, tem de ser tratado e ponderado devidamente, o que até agora não aconteceu.
Embora não queiramos obstar a realizações de interesse para a cidade, pretendemos contudo ver assegurados os nossos direitos como instituição de utilidade pública que somos.”31
40Meses mais tarde, a Misericórdia insiste:
“Dado que desde 1975 não tem estado a ser utilizado para os fins em vista […] o antigo hospital sito na cerca do Mosteiro de Jesus, solicitado a esta Misericórdia, por essa Câmara, para nele instalar o Museu do Trabalho, e dado que fomos contactados pela Direcção Distrital de Saúde de Setúbal para cedência de um edifício para armazenamento de medicamentos, leites e outros artigos, […] vimos informar que demos o nosso acordo para cedência do referido pavilhão, a título precário, a partir de 01/02/1978.”32
41Esta questão arrastada não se resolveu a contento de nenhuma das partes: nem a Misericórdia recuperou as suas enfermarias anexas ao Convento de Jesus, nem nelas se instalou o Museu do Trabalho. De acordo com o então director do Museu de Setúbal, Fernando António Baptista Pereira, quer os terrenos, quer os edifícios anexos ao Convento de Jesus, quer ainda este último (que deixou de funcionar como hospital em 1959 e foi transformado em Museu, aberto ao público, em 1961) foram considerados em 1984, após um período de indefinição, como sendo propriedade e posse do Estado e a sua administração confiada ao Instituto Português do Património Cultural; em 1990, os pavilhões em questão foram demolidos (Pereira 1990: 28, 42-43).
42Verificou-se, pois, um litígio expresso sobre as condições e as características da propriedade e da posse dos terrenos e dos edifícios da área do Convento de Jesus. No fundo, esta disputa entre a Misericórdia e a Câmara, ao nível local, entrecruza-se e remete até certo ponto para a questão geral das relações entre a Igreja e o Estado na época contemporânea. Mais especificamente, para a legislação sobre ordens religiosas e para as práticas posteriores. Afloram aqui sobretudo os problemas abertos pela utilização dos espaços pertencentes aos estabelecimentos das ordens religiosas, extintas em 1834, frequentemente atribuídos e apropriados por instituições de assistência desde então até à actualidade, a coberto das quais se reinstalaram frequentemente inúmeras ordens e outros corpos ligados à Igreja. No contexto imediato do pós-25 de Abril, pouco se valorizou o problema da propriedade dos terrenos e dos edifícios, sendo que a Misericórdia aparecia numa posição de fraqueza relativa; finda a conjuntura revolucionária, a questão emergiu à luz do dia.33
43Desconhecemos a data exacta em que os objectos transitaram do pavilhão da Junta Distrital para os edifícios anexos ao Convento de Jesus, que estão em causa nesta troca de correspondência. Sabemos que, em qualquer dos casos, as condições de acomodação eram muito más. Giacometti preocupava-se com a degradação dos objectos. Falou-nos dum princípio de incêndio originado por um curto-circuito que deflagrou quando os artefactos permaneciam no pavilhão da Junta Distrital.34 Nas instalações anexas ao Convento de Jesus, as condições também seriam muito problemáticas.
44Entretanto, alguns dos obstáculos à concretização do CDOC-MT — nomeadamente os que radicavam na dupla tutela quanto à realização do Museu do Trabalho — começavam a ser ultrapassados.
45Estabeleceram-se contactos entre a Câmara Municipal de Setúbal e o INATEL para a resolução do problema. Finalmente, em Janeiro de 1979, após negociações e troca de mais correspondência, efectuou-se uma Relação dos Objectos Adquiridos por Elementos do Serviço Cívico Existentes nas Instalações do Museu da Câmara Municipal de Setúbal.35
46Ao recenseamento do espólio existente seguiu-se, em 28 de Junho de 1979, a doação das peças. É então assinada a Escritura de Cedência de Objectos com Valor Etnográfico à Câmara Municipal de Setúbal pelo INATEL:
“No dia vinte e oito de Junho de mil novecentos e setenta e nove […] perante mim […] compareceram como outorgantes:
Primeiro […] o senhor José Nogueira Pardal […] em representação do INATEL, na qualidade de Presidente da Comissão Administrativa […]
Segundo […] o Presidente da Câmara de Setúbal Orlando Augusto Curto […]
Pelo primeiro outorgante foi dito:
Que a entidade que neste acto representa é legitima proprietária de diversos objectos com valor etnográfico existentes no Museu do Trabalho de Setúbal, conforme relação que se considera inteiramente reproduzida neste contrato […]
Que dos referidos objectos, pelo presente contrato, faz doação pura e de hoje para sempre à Câmara Municipal de Setúbal […]
Que esta doação é todavia feita sob a condição de o segundo outorgante não poder alienar os referidos objectos, afectando-os necessariamente à finalidade de, com eles, ser organizado um Museu do Trabalho.
Pelo segundo outorgante foi dito que, na sequência da deliberação de nove de Dezembro de mil novecentos e setenta e cinco, aceita esta doação, nos termos exarados na presente escritura […]”36
47Numa primeira leitura, parece estarmos perante uma doação pura e simples de mil e duzentas peças. Porém, impõe-se comparar este documento com a anterior listagem na íntegra, que apenas consta do dossier preparatório da escritura e que finaliza com as rubricas Material pertencente ao INATEL, existente nas instalações da Câmara Municipal de Setúbal (laboratório fotográfico), Material de escritório, pertencente ao INATEL, nas instalações do Museu da Câmara Municipal de Setúbal, e Material diverso. Conclui-se, pois, que, se a Câmara ficou efectivamente com os artefactos, o INATEL terá recuperado a generalidade dos artigos das outras rubricas (mobiliário, material fotográfico, etc.) constantes da relação, mas omissos na escritura.37 O INATEL ficou com os bens de equipamento, a Câmara Municipal de Setúbal com os objectos etnográficos.
48Com esta separação negociada entre o INATEL e a Câmara, cumpriu-se mais uma fase da vida destes objectos. Desde que tinham saído das “suas terras”, já tinham estado na capital nacional, já tinham ido para a capital vermelha e, agora, em vez de a sua responsabilidade caber a duas entidades, já só cabia a uma. A Câmara Municipal de Setúbal tornou-se, pois, a única responsável pela colecção etnográfica que há mais de três anos estava na cidade. Acabou a dupla tutela.
49Note-se também que, nos últimos documentos citados, já só se fala de um Museu do Trabalho (MT); o Centro de Documentação Operária-Camponesa, com o qual este se relacionava, desapareceu. Algumas das preocupações de Giacometti (a articulação do MT com um CDOC e a designação deste último) foram abandonadas. Em 1975, verificara-se um extremo cuidado com a designação da instituição em vista: realizou-se até uma reunião extraordinária da Comissão Administrativa do INATEL para mandatar o seu representante para que, entre outras coisas, intitulasse a nova realização Centro de Documentação Operária-Camponesa — Museu do Trabalho e não apenas Museu do Trabalho.38 O contexto mudou e, no final dos anos 70, do projecto elaborado na conjuntura revolucionária portuguesa restava a ideia de um Museu do Trabalho e a materialidade das peças com vista à sua constituição.
A redefinição do projecto
50Vários anos tinham já passado sobre a recolha das peças. Michel Giacometti, que, pelo menos do ponto de vista formal, ao abandonar o INATEL, deixara de ter qualquer responsabilidade sobre elas, tivera de dedicar-se a outras áreas no seu trabalho de investigador da cultura popular portuguesa. Os membros da equipa técnica de apoio (uma parte dos quais eram estudantes voluntários) há muito que tinham deixado de trabalhar sobre a colecção, prosseguindo nos seus estudos ou nas suas carreiras noutros locais. O problema das instalações do Museu não avançara desde 1976, ou melhor, recuara bastante desde essa data, deixara de haver contactos para financiamento e a Misericórdia colocava problemas à ocupação dos edifícios da área do Convento de Jesus pelas peças. Havia um ritmo que se tinha perdido. Neste contexto, a doação do INATEL acabou por ser mais sentida como a resolução de um problema pendente do que como a grande oportunidade para a instalação do Museu do Trabalho. Efectivamente, este não arrancou imediatamente.
51Entretanto, as peças começaram a ser expostas em realizações que frequentemente não eram da iniciativa camarária. Algumas delas foram exibidas no quadro de uma Exposição de Arte Popular na Festa do Avante! em 1980.39 Em 1983, nesta Festa do PCP, foram novamente mostradas cerca de trinta peças escolhidas por Giacometti, sobretudo alfaias agrícolas e peças de tecelagem. Neste caso, o lugar ocupado por estes artefactos foi maior. A exposição foi acompanhada pela edição da cassete Cantos e Ritmos de Trabalho do Povo Português e integrou-se na exposição Cultura popular: as tradições artesanais, para a qual foi editada uma brochura que incluiu um texto de Giacometti (Giacometti 1983, Festa 1983). Em Setúbal, alguns testemunhos orais confirmam a apresentação de peças nas festas da cidade.40 A passagem para os anos 80 constituiu, assim, o tempo das mostras ocasionais.
52Se a exposição de peças contribuiu para a sua conservação e valorização, as suas condições habituais de acomodação continuavam a ser péssimas. Assim, por exemplo, em Novembro de 1982, as peças e a documentação anexa foram muito atingidas pelo temporal que assolou o país.41 Uma parte da documentação danificada pela inundação foi recuperada e a ela tivemos acesso; é bem possível que outra, que não conseguimos encontrar (nomeadamente os inventários dos artefactos e as fichas museográficas), se tenha então extraviado.
53Lentamente porém, a colecção etnográfica voltou a ser objecto de atenção. Em momentos diferentes e em conjunturas locais diversas, a partir de 1982, entidades várias recomeçaram a atendê-la. Preocupou-se Fernando António Baptista Pereira, o novo conservador do Museu de Setúbal42, assim como Luís Marques, um responsável do sector cultural da Associação de Municípios do Distrito de Setúbal43, e empenhou-se também José Rebelo, vereador da Cultura (Giacometti 1987: 4, Rebelo 1987: 3); assim, acabou por ser designada Isabel Victor como responsável pelo Museu do Trabalho44.
54Novamente, eram dados passos no sentido da concretização do Museu do Trabalho. Levantou-se a hipótese da abertura ao público, ainda que provisória, do Museu e pensou-se numa data simbólica: o centenário do Primeiro de Maio.45
55Porém, os inúmeros problemas estruturais demoravam a resolver, continuando o Museu sem dispor de instalações próprias: assim, previa-se que continuasse a funcionar provisoriamente — ainda que sem prazo marcado — nas instalações anexas ao Museu de Setúbal. A sua colecção fundadora continuava a ocupar os espaços que a Santa Casa da Misericórdia reclamava como seus. Aliás, em 1987, com a exposição inaugural do Museu do Trabalho já aberta, ainda continuavam os ofícios: a Santa Casa quer reaver os
“[…] vulgarmente designados pavilhões para infecto-contagiosos, […]”
56e
“[…] sendo o actual recheio de tais pavilhões constituído por objectos pertencentes a essa Câmara Municipal, a [Misericórdia] solicita os bons ofícios [do Sr. Presidente da Câmara] no sentido de que sejam desocupados, a fim de que a Santa Casa deles possa fazer o uso de que carecem.”46
57Foi nestas circunstâncias que se realizou a exposição inaugural. Esta intitulou-se O Trabalho faz o Homem e decorreu de 25 de Abril a 19 de Julho de 1987. Uma data simbólica de inauguração, mais uma vez.
58Tratava-se não de mostrar todas as peças mas sim de expôr uma selecção através da qual fosse possível apresentar as colecções e exprimir a vocação do novo Museu do Trabalho (Pereira & Víctor 1987: 5). Este foi assumido como complementar ao Museu de Setúbal, que estava virado para a história local e a história da arte. Assim,
“[o Museu do Trabalho], recortado no âmbito da antropologia e da sociologia, [visaria] uma perspectiva mais global.”
59Quanto ao público do Museu do Trabalho, assim foi ele esboçado:
“[…] Setúbal, meio operário com largas tradições e terra de imigração de população originariamente rural, oferece à partida todas as condições para que um museu deste tipo se imponha, como participe activamente no reencontro de uma população desenraizada com a sua memória colectiva, relançando igualmente a discussão sobre os parâmetros da força e dos meios de trabalho na sociedade do futuro. Esta perspectiva ao mesmo tempo que combina e recupera uma memória de objectos e fazeres com a discussão da projecção de necessidades, expectativas e ilusões, tem o indiscutível mérito de abrir um campo de estudo multidisciplinar em que as diversas ciências sociais e humanas, a história ou a filosofia são chamadas a contribuir na longa e interminável questionação sobre o devir da existência humana.”
60Olhando ainda para o seu público-alvo, os responsáveis pretendiam que o Museu do Trabalho beneficiasse da “rica experiência de animação educativa do Museu de Setúbal”, que noutro passo consideraram “brilhante” (Pereira & Victor 1987: 5).
61Michel Giacometti colaborou na preparação da exposição, deslocando-se repetidamente a Setúbal para apoiar a sua organização, escrevendo para a brochura então editada e aceitando orientar o colóquio A Músicaeo Trabalho. Realizou-se um debate subordinado ao tema A Filosofia e o Trabalho. Decorreram actividades com artesãos. Realizaram-se sessões de animação, sobretudo com a população escolar. O trabalho é o fio condutor destas realizações.
62Em 1987, nasce, pois, um Museu do Trabalho atento à comunidade local envolvente e que atribui uma grande importância às actividades de animação para a infância e para a juventude.
63Em 1975, Giacometti tinha projectado um Centro de Documentação Operário-Camponesa, com um Museu do Trabalho incluído, que recolheria, trataria e divulgaria testemunhos da vida e da luta do nosso povo. Eram estes os seus objectivos e o público-alvo pretendido:
“O CDOC serviria directa e prioritariamente os trabalhadores que, de vários pontos do país, aí se deslocariam para colectivamente:
a) fortalecer a sua consciência de classe, mediante visitas comentadas e programas de animação sociocultural, utilizando meios audiovisuais e outras técnicas modernas de informação;
b) enriquecer o seu conhecimento objectivo do Movimento Operário e Camponês, através do acesso fácil a documentos de toda a ordem, que testemunham a condição operária e camponesa, no passado e no presente.”
(Giacometti 1975: 6)
64No mesmo texto, numa passagem anterior, afirmara:
“Acreditamos na importância social, política e cultural de um organismo que documente exemplarmente a luta das classes trabalhadoras e do povo português em geral contra o fascismo e a exploração capitalista.
Não temos dúvida que essa longa luta merece ser documentada de forma exemplar, pois que nenhum povo sofreu, acaso, opressão tão ferozmente subtil e profunda. Acreditamos, sem qualquer espécie de dúvida, que nenhum organismo melhor que o INATEL seja capaz, no momento actual, de assegurar o funcionamento de um Centro de Documentação Operária-Camponesa que reúna os testemunhos dessa mesma luta.”
(Giacometti 1975:1)
65Entre os textos de 1975 e os de 1987, tinham decorrido anos decisivos na transformação da sociedade portuguesa. Em torno da formação e do percurso duma colecção até à constituição de um museu, vemos expressarem-se sucessivas tensões da história do tempo seu contemporâneo. A designação do museu já não inclui qualquer referência ao Centro de Documentação Operária-Camponesa. A infância e a juventude substituíram os trabalhadores como público-alvo no discurso sobre o museu. A atenção às questões sociais exprime-se de outra forma e em torno de outros problemas. O Museu assume como um dos seus objectivos a contribuição para a integração de populações desenraizadas — logo de grupos sociais potencialmente problemáticos. Um discurso museográfico de ruptura é substituído por um outro de integração.
66Michel Giacometti seguiu, com a sua experiência e o seu saber, esta nova fase do processo. Vejamos como o autor do PTC contava a história deste Museu pelo qual tanto tinha lutado:
“Para a História da Colecção
O material aqui reunido constitui parte substancial da recolha a que procederam jovens alunos do Serviço Cívico Estudantil, voluntariamente integrados num projecto de pesquisa, de caracterização etnossociológica, que estruturámos e dirigimos, no Verão de 1975, sob a designação de Plano Trabalho e Cultura:
1. Aquela iniciativa receberia de imediato, e para além do apoio logístico do próprio Serviço Cívico Estudantil, o auxílio material de entidades oficiais e privadas (Ministério da Comunicação Social, INATEL, FAOJ, câmaras municipais e juntas distritais, Fundação Calouste Gulbenkian).
2. Instruídos, embora sumariamente, nos métodos de pesquisa no terreno, mediante cursos e aulas práticas,1 os 124 alunos participantes no projecto constituiriam 31 equipas que levariam a cabo a sua investigação em cerca de 90 localidades, principalmente situadas a norte do Tejo.
3. Os resultados obtidos, pela sua importância social e cultural, ultrapassaram as previsões mais optimistas:
3. 1. Recolha de mais de 1200 alfaias, ferramentas e instrumentos utilizados nas fainas agrícolas, piscatórias e em artes e ofícios vários.
3. 2. Registo sonoro de cerca de 3000 espécimes de literatura popular (contos e lendas, romances e canções narrativas, provérbios e adágios, orações, rezas e benzeduras, autos pastoris e outros textos teatrais, etc.).
3. 3. Realização de 300 inquéritos respeitantes às condições de saúde e de higiene públicas e campanhas de educação sanitária.
3. 4. Colheita abundante de fórmulas medicinais populares e cautelas supersticiosas.
3. 5. Programas de animação cultural e iniciativas várias de auxilio concreto às populações rurais (inclusive na construção de centros de recreio, lavadouros públicos, etc.).
4. Por acordo firmado entre o Plano Trabalho e Cultura e o INATEL ficou estipulado que as alfaias, ferramentas e instrumentos recolhidos, bem como a documentação adstrita, reverteriam para este organismo e, mais precisamente, para um projectado Gabinete de Documentação Operário-Camponesa (GDOC) que, sob a nossa direcção, substituiria mais tarde o Gabinete de Etnografia e Folclore da extinta FNAT. No desenvolvimento daquele projecto, o INATEL estabeleceu um protocolo com a Câmara Municipal de Setúbal mediante o qual ambas as entidades comprometiam-se num projecto de criação, naquela cidade, de um Instituto ou Centro de Documentação da vida operária e camponesa, orientado pelo referido GDOC do INATEL e integrando, assim, parte substancial do material recolhido pelos alunos do Plano Trabalho e Cultura.
5. Aquele material, contudo, viria a ter um destino incompatível com a sua extrema valia documental e seria objecto de múltiplas depredações, no decurso das suas sucessivas transferências para locais inseguros e inadequados à sua conservação.
6. Por fim, uma nova administração do INATEL, ao suprimir, em 1976, o Gabinete de Documentação Operário-Camponesa, resolveu do mesmo passo desfazer-se deste material em proveito exclusivo do Município de Setúbal (protocolo de 28 de Julho de 1979).
Eis como, passados 12 anos sobre a recolha destes valiosos materiais, o destino quis que, graças ao empenho do actual Vereador da Cultura da Câmara Municipal e do Director do Museu de Setúbal/Convento de Jesus, se vislumbrasse num horizonte próximo o nascer de um Museu do Trabalho.
O Museu do Trabalho, estamos em crer, assumirá, na realidade de hoje, e não obstante os condicionalismos conhecidos, os compromissos de princípios e de orientação pedagógicos que informaram o Plano Trabalho e Cultura, quando 124 alunos do Serviço Cívico Estudantil se lançaram na aventura de recolher, para as gerações futuras, estes documentos preciosos da vida e da luta do nosso povo.
(1Cursos que, além da nossa, tiveram a participação, entre outras, dos Drs. Jorge Gaspar e António Machado Guerreiro e, sobretudo, do Prof. Dr. Manuel Viegas Guerreiro que, desde o início, encorajou o projecto e nele se empenhou activamente.)
(Giacometti 1987: 4)”
67Dos projectos de 1975 à acção do Verão Quente, de Lisboa à capital vermelha, da co-responsabilidade do INATEL e da Câmara Municipal de Setúbal por uma colecção etnográfica à sua posse plena pelo Município setubalense, das relações delicadas entre a Câmara e a Misericórdia, das hesitações às realizações da década seguinte, enfim, do museu projectado sob o signo do CDOC, numa conjuntura revolucionária, ao Museu do Trabalho do final dos anos 80, com avanços e recuos, de uma forma morosa, é o nascimento dum museu que acontece. Museu este que não só conta a vida do nosso Povo, tal como foi recolhida em 1975, como a sua própria ao longo de mais de uma década. Estamos, assim, em múltiplos sentidos perante a nossa contemporaneidade.
Notes de bas de page
1 Acta da reunião ordinária da Comissão Administrativa (CA) do Município de Setúbal realizada em 1 de Setembro de 1975.
2 Ofício nº 311/CCR, de 15/09/75, da CMS à CA da Misericórdia de Setúbal sobre as instalações do MT.
3 Circular assinada por Giacometti [Junho 1976], posse particular; PTC Pasta de Contabilidade II, refª 589, 590, 591, 592, 593, 594, 595, 596, 597, 608, 609, 610, 611, 612, 613, 614, 625, 626, 629, 630, 631, 632, 636, 637, 638, 639, 640, 643, 644, 645, 646, 647, 652, 653, 654, 655, 656, 659, 660, 661, 662, 663, 669, 670, 671, 672, 673, 675, 674, 676, 677, 678, 679, 680.
4 Informações orais de Michel Giacometti (Primavera de 1990).
5 PTC Pasta de Contabilidade II, refª 624.
6 PTC Pasta de Contabilidade II, refª 599.
7 PTC Pasta de Contabilidade II, refª 587, 588, 624.
8 PTC Pasta de Contabilidade II, refª 583, 584, referente a 12/01/1976.
9 PTC Pasta de Contabilidade II, refª 579
10 PTC Pasta de Contabilidade II, refª 624, referente a 27 e 28/03/1976.
11 Informações orais de Giacometti (14/02/1990) e PTC Pasta de Contabilidade I, refª 529, 552.
12 Informação pessoal de Giacometti, fornecida em apontamento em [25 de Maio de 1990].
13 PTC Pasta de Contabilidade I, refª 494, 545, 546, 547, 555 [25 de Novembro de 1975], 563, 564 e PTC Pasta de Contabilidade II, refª 584, 587, 588, 599, 624.
14 Circular do PTC assinada por Giacometti, s.d. [Junho de 1976]. Posse particular.
15 Ofício nº 707 de 25/11/1975 da Santa Casa da Misericórdia à CM – Comissão de Cultura e Recreio.
16 Acta da reunião ordinária da CA do Município de Setúbal, de 9 de Dezembro de 1975.
17 Escritura do acordo estabelecido entre a Câmara Municipal de Setúbal e o Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, 10/12/1975.
18 Notícias de Setúbal, 10/01/1976, pp. 3-4.
19 Desde a primeira referência ao CDOC-MT em actas da Câmara (01/09/1975) que é apontada a existência de um arquitecto responsável. Mas já anteriormente havia contactos para a fundação do Centro Cultural. Ver ofício nº 231/1876, de 22/02/1975, do presidente da CA da Câmara Municipal de Setúbal ao governador civil do distrito, Memorando 10/75 CCR-S/CMS, de 02/10/1975, e carta da mesma data de Cândido Palma de Melo à Comissão de Cultura e Recreio (que refere Memorando 12/74).
20 Os outros seriam um Centro de Actividades Recreativas, um Centro Pedagógico para professores primários e um Centro de Actividades Artísticas (Melo, C. 1975).
21 Tratar-se-á da Cooperativa de Construção Civil, cuja constituição foi proposta ao Sindicato da Construção Civil pela CA da CMS e pelo Gabinete de Planeamento de Setúbal? Ver Faria 1981: 153.
22 Carta nº 131 RM/LT da Revolucionária, SCARL, de 13/01/1976 à CCR da CMS.
23 Acta da reunião ordinária da CA do Município de Setúbal, realizada em 15 de Março de 1976.
24 Carta de 26/04/1976 de Delmiro Manuel Pacheco ao presidente da CMS.
25 Carta de 21/06/1976 de Cândido Palma de Melo à CA da CMS - CCR.
26 Respectivamente ofícios nº 48/CCR de 16/03/1976 da CCR ao presidente da CA da FCG, nº 207/SIRP de 06/08/1976, nº 208/SIRP de 06/08/1976, nº 209/SIRP de 6/8/1976, da CA da CMS ao presidente da Comissão Regional de Turismo da Serra da Arrábida, ao presidente da Junta Distrital de Setúbal, ao FAOJ.
27 Acta da reunião ordiária da CA do Município de Setúbal, realizada em 15 de Março de 1976.
28 A importância deste grupo no campo cultural pode ser confirmada através do Relatório de Actividades da Comissão de Cultura e Recreio [1974-1976] (1976) ou dos livros de actas das reuniões da CMS. Na maioria da documentação respeitante à instalação do CDOC-MT, o grupo teatral é também mencionado.
29 Alusão à obra L’Espoir (1937), de André Malraux (1901-1976), que é considerada o “romance-tipo por excelência da Frente Popular” (Ory 1990: 446). Como tentamos demonstrar, Giacometti, em muitas das suas acções e motivações, comungou do entusiasmo revolucionário e humanista característico das experiências de Frente Popular e da Libération, assumindo-o, aliás.
30 Correspondência vária não conclusiva: memorando 10/75 CCR-S/CMS de 02/10/1975 de Palma de Melo à CCR, ofício nº 343 de 30/01/1976 da FCG à CA da CMS, ofício nº770 de 09/03/1976 da FCG à presidente da CCR da CMS, ofício nº 48/CCR de 16/03/1976 da CCR ao presidente da CA da FCG, ofício nº 942 de 22/03/1976 da FCG à presidente da CCR da CMS.
31 Ofício nº 182 de 21/04/1977 da Santa Casa da Misericórdia ao director-geral do Património, Ministério das Finanças.
32 Ofício nº 75, de 23/01/1978, da Santa Casa da Misericórdia à CMS.
33 Contudo, mais ou menos claramente a questão sempre existiu. Houve hesitações na preparação da escritura de fundação do CDOC-MT de 10/12/1975 devido à cláusula 1ª. O texto desta cláusula é cauteloso, se comparado com anteriores formulações que mencionavam os direitos da Câmara sobre o Convento de Jesus e os edifícios anexos. Ver documentação constante do processo Notariado Privativo. Actos ou Contratos em Preparação. Outorgantes — CMS e INATEL. Deliberações ou Despachos — 9/12/1975.
34 Informação pessoal de Michel Giacometti, fornecida em apontamento [25 de Maio de 1990]. Informações orais recolhidas em 1990.
35 Relação dos objectos adquiridos por elementos do Serviço Cívico existentes nas instalações do Museu da Câmara Municipal de Setúbal, 12/01/1979.
36 Escritura de Cedência de Objectos com Valor Etnográfico à Câmara Municipal de Setúbal pelo INATEL, 28/06/1979.
37 Foi um autarca, Francisco Lobo, que nos alertou para a questão de que teria havido uma qualquer contrapartida na doação (Informação recolhida em 07/11/1991). A pesquisa, nos Serviços de Notariado Privativo da CMS, confirmou inteiramente esta pista: ver ofícios nº 29709 de 28/12/1978, nº 2559 de 01/02/1979, nº 5285 de 05/03/1979, nº 7036 de 20/03/1979 da CA do INATEL ao Presidente da CMS.
38 Ver as fotocópias das actas nº 1409 de 07/11/1975 e nº 1409-A de 10/11/1975 das reuniões da CA do INATEL.
39 Informação de um membro do grupo responsável pela exposição. Ver o prospecto Exposição de património cultural e arte popular. Lisboa: Edição Festa do Avante!, 1980.
40 Uns testemunhos recordarão a Feira de Santiago, outros um desfile bocagiano. Nem a consulta da imprensa regional, nesses momentos, nem dos programas da Feira de Santiago foi esclarecedora.
41 Documentação do Museu do Trabalho. Informação pessoal de Michel Giacometti, fornecida em apontamento [25 de Maio de 1990]. Informações orais várias (de responsáveis do Museu do Trabalho e de Giacometti).
42 Em 1982, o novo conservador do Museu de Setúbal, sito no Convento de Jesus, ao entrar em funções, encontra aí as peças e empenha-se na resolução do problema (Pereira & Victor 1987: 5).
43 Este aponta o caso num periódico desta Associação, no qual, aliás, Giacometti colabora (Marques 1985: 10, Giacometti 1985).
44 Em 1986, uma socióloga é destacada da Associação de Municípios do Distrito de Setúbal para o MT.
45 Esta inauguração, projectada para 1 de Maio de 1986, aparece num texto para um Encontro de Autarcas APU s.d. [provavelmente Junho de 1986]. Posse particular.
46 Ofício nº 190 de 22/06/1987 da Santa Casa da Misericórdia à CMS.
Auteur
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Castelos a Bombordo
Etnografias de patrimónios africanos e memórias portuguesas
Maria Cardeira da Silva (dir.)
2013
Etnografias Urbanas
Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista et António Firmino da Costa (dir.)
2003
População, Família, Sociedade
Portugal, séculos XIX-XX (2a edição revista e aumentada)
Robert Rowland
1997
As Lições de Jill Dias
Antropologia, História, África e Academia
Maria Cardeira da Silva et Clara Saraiva (dir.)
2013
Vozes do Povo
A folclorização em Portugal
Salwa El-Shawan Castelo-Branco et Jorge Freitas Branco (dir.)
2003