Segredos coloniais sob o controle do rei
A reforma dos correios em Portugal e no ultramar em finais do século xviii: modelos, resistências e limites
p. 57-72
Texte intégral
1A historiografia dedicada ao estudo dos impérios coloniais tem se mostrado sensível ao tema da distância, em particular as formas como as monarquias na Europa elaboraram soluções para «vencê-la». As interpretações conferem um destaque específico para o fenômeno das comunicações entre as monarquias europeias e os territórios ultramarinos, posto que o governo de territórios longínquos se realizou na dependência de uma intensa troca de papéis. Ao lado das preocupações com a defesa das colônias, as metrópoles estabeleceram uma ampla rede de informações sobre as terras e os povos que conquistaram1.
2Para além dos conteúdos que estavam fadados a transportar, os escritos tornaram-se também registros das angústias provocadas pelo tema da distância: preocupações com a morosidade das trocas de informação, com sua irregularidade, com a incerteza de que as comunicações chegariam seguras em seus destinos. Ao mesmo tempo em que as dimensões oceânicas dos impérios da época moderna impunham uma separação abissal entre os territórios de uma mesma monarquia, cada vez mais a experiência da modernidade acrescentava uma outra categoria para medir a extensão de um lugar a outro: o tempo investido nos deslocamentos2.
3Nesse processo, os sistemas de correios, tanto internos quanto para o ultramar, colocam-se como um recorte privilegiado para compreender uma face fundamental do governo à distância3. Na Península Ibérica, as primeiras redes de correspondência foram oficialmente criadas no início do século xvi, simultaneamente à experiência da «abertura do mundo». Passadas as duas primeiras centúrias da colonização, o serviço postal do século xviii foi alvo de intensos debates nos centros políticos das monarquias europeias, contribuindo tanto para a modernização da estrutura das comunicações internas e entre os reinos, quanto para a criação de novas dinâmicas ao seu funcionamento no ultramar.
4Sob o prisma da racionalidade econômica de viés ilustrado, a reforma dos correios visava transformar o serviço em fonte de receita para os cofres das monarquias, integrando-o a um leque de outras melhorias fiscais e fazendárias. No que se refere às comunicações ultramarinas, as reformas contribuiriam para a ampliação do controle sobre as colônias, transferindo para as monarquias europeias o domínio sobre os fluxos de informações. A eficiência almejada traria grande contribuição ao comércio, em particular as redes de negócios instaladas nas principais capitais europeias e coloniais.
5Como Portugal participou desse processo transformador do serviço de comunicação postal? No final do século xviii assistiu-se a um grande esforço para a reestruturação dos correios, trabalho capitaneado pelo ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812). Sua gestão da Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos (1796-1801) coloca-se como um momento privilegiado para analisarmos os embates políticos, as resistências e os desafios de implantar um sistema mais eficiente de correspondência, ponto nevrálgico para um bom governo. Neste estudo, colocaremos em exame algumas faces da reforma dos correios encaminhada por D. Rodrigo: as críticas e as experiências reformistas que embasaram seu projeto; as resistências que sofreu na corte; as reflexões sobre o correio marítimo a partir da colaboração dos governadores coloniais; e, por fim, alguns reveses da reforma postal e seus limites na região norte da América portuguesa.
Sistemas postais em exame: modelos e reformas
6Ao assumir sua função no ministério em setembro de 1796, D. Rodrigo encaminhou um conjunto de medidas para recriar o sistema postal em Portugal. A orientação principal do projeto previa o estabelecimento de um sistema que fosse rentável aos cofres régios, sem negligenciar os entraves que tornavam o sistema de correios lento e pouco eficaz. Sua análise sobre o serviço postal foi marcada pela sua experiência como plenipotenciário em Turim, de onde foi possível comparar a realidade portuguesa com estruturas de comunicação mais ágeis, presentes na Espanha, França, Inglaterra e Itália.
7Boa parte das proposições de D. Rodrigo resultaram das observações que realizou dos sistemas implementados na Europa, em particular na Grã-Bretanha e na Espanha. No caso inglês, o processo revolucionário do século xvii expôs a fragilidade do sistema postal em tempos de guerra e de conflitos civis, aspecto que contribuiu para o estabelecimento de um serviço de cartas monopolizado pela Coroa4. O controle exercido no interior do território, integrava a Escócia e, na virada do século xvii para o xviii, a Inglaterra tornou-se pioneira na criação de um sistema de comunicação ágil com as colônias da América. O serviço postal cresceu acompanhando o incremento mercantil entre a Inglaterra e suas colônias ultramarinas, evidenciando a importância de uma troca eficiente de correspondência para o aumento dos lucros comerciais.
8O meio mais comum de comunicação atlântica até 1740 foram as ship letters, embarcações criadas especificamente para o transporte das cartas. Segundo Ian K. Steele, os habitantes da América ou de algum porto na Inglaterra estavam seguros de que sempre havia um navio carregando para um destino de um ou outro lado do Atlântico, aspecto que teria contribuído para o fomento da escrita de cartas. Para além dos navios mercantes e das frotas militares, a Inglaterra investiu nas embarcações de avisos para as notícias vitais e urgentes do governo, os chamados advices boats5.
9Esse processo foi considerado um elemento fundamental à integração do Atlântico inglês e de unificação política e econômica britânica, e contribuiu para tornar os correios parte significativa da receita real até 1760. O volume de cartas — do governo, dos comerciantes, de banqueiros, de militares e privadas — bem como a circulação de jornais e outros suportes de notícias, representavam o grande monopólio de informações sob controle do governo inglês. Londres revelava-se como um centro incontestável de notícias, afirmando-se como a capital dos investidores financeiros e de negócios6.
10O sistema postal inglês serviu de exemplo às reformas implementadas na Espanha e, mais tarde, em Portugal. Em particular, a introdução dos packet boats, embarcações que faziam o transporte do correio ordinário semanalmente da Inglaterra para a América inglesa e vice-versa. Esse modelo influenciou a reforma realizada pelo ministro Pedro Rodríguez Campomanes em 1764, visando mais regularidade das notícias entre a Espanha e as colônias7. No caso espanhol, a Guerra dos Sete Anos foi um componente fundamental para fomentar as reformas, pois a invasão pelos ingleses de Manila e Havana em 1762, evidenciou a necessidade de fortalecer os vínculos com os territórios coloniais estratégicos para a Monarquia Espanhola. A guerra deixou exposta a falta de um sistema de informação organizado, mais urgente em tempos de conflitos diplomáticos8.
11Nos casos inglês e espanhol, as conjunturas de guerras foram fundamentais ao estabelecimento de correios eficientes controlados diretamente pelas monarquias. Tais experiências serviram de amparo as propostas feitas por D. Rodrigo para a reforma do sistema de correios em Portugal. A conjuntura diplomática de guerra no final do século xviii tornavam o controle das cartas uma urgência e esse tom acompanhou diretamente as preocupações do ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos 9.
12Para além dos modelos de sistema postal implementados na Europa, D. Rodrigo possivelmente considerou as críticas elaboradas nos círculos políticos portugueses. Conforme Margarida Sobral Neto identificou, observa-se a ocorrência de uma rica discussão sobre o funcionamento dos correios em Portugal nos anos de 1740. Em particular, as reflexões do ministro e diplomata D. Luís da Cunha (1662-1749) registradas em seu Testamento político. Além das duras críticas à morosidade do giro das cartas, recomendou ao rei D. João V abolir a propriedade do ofício de Correio-mor por meio de uma indenização. Em seu entendimento, a Coroa deveria administrar o serviço postal, conforme ocorria na Inglaterra, na França e na Holanda10.
13Ainda de acordo com a análise de Sobral Neto, a conjuntura ficou marcada pela circulação dos chamados «Três papéis anônimos» que, além de ecoarem as críticas elaboradas por Cunha, atacavam o fato do serviço postal gerar despesas extraordinárias à Coroa. As demandas postais do governo eram garantidas por frequentes contratações de serviços de particulares. Os textos também defendiam a necessidade de os correios gerarem rendas aos cofres régios e, apesar de não terem surtido efeito prático ao circularem em meados do século, aproximam-se das propostas que D. Rodrigo defenderia em 179611.
14As proposições de D. Rodrigo mostram-se afinadas com as críticas que, ao longo do século xviii, foram formuladas ao sistema postal em Portugal. Os correios precisavam ser ágeis, lucrativos e deveriam facilitar «todas as comodidades da vida»12. Para cumprir tal finalidade, os modelos implementados na Inglaterra e na Espanha serviram de clara inspiração. No entanto, colocar em prática as ações que culminariam com a reforma dos correios a partir do Alvará de 1798 não foi tarefa fácil. O ministro teve que enfrentar a oposição do titular do ofício de Correio-mor, cuja propriedade pertencia a uma única família em Portugal. Trataremos desse ponto a seguir.
Resistências ao novo sistema postal
15A implantação dos correios gerou obstáculos e revelou profundas resistências na corte do príncipe regente D. João. Encarregado de transferir para o poder da Coroa o controle sobre o serviço postal, D. Rodrigo se viu diante do enfrentamento dos interesses da família Gomes da Mata que, desde o século xvii, esteve à frente dos serviços postais do reino, tanto por terra e quanto por mar.
16O ofício de Correio-mor foi adquirido por Luís Gomes da Mata Coronel em 1606, tornando-o responsável pelo correio em toda a metrópole. Já em 1657, D. Luísa de Gusmão concedeu à família o acréscimo do ofício das cartas do mar, uma recompensa por serviços prestados pelos Gomes da Mata para a Campanha do Alentejo, bem como para atender as solicitações feitas por negociantes para a regulamentação do serviço postal13. Se para D. Rodrigo era claro que a reforma traria mais dinâmica, rapidez e racionalidade ao cotidiano administrativo, bem como servir de uma importante fonte de lucro para os cofres régios, para seus pares na corte, as medidas afrontavam negócios profundamente enraizados.
17O interesse de D. Rodrigo pela situação dos correios em Portugal não surgira apenas quando de posse do ministério. Em suas «Reflexões sobre a fiscalidade e as finanças de Portugal», de 1786, sintetizou o que futuramente seria o cerne do seu plano para o sistema postal:
Sobre os outros impostos, quem ignora que o soberano em Portugal não é o senhor do correio, o que o priva de uma grande renda, que seria muito considerável se fizesse as estradas que então aumentariam e fariam mais rápidas todas as comunicações. O mesmo se pode dizer das postas de cavalos diligências e recovagens, que formariam um ramo muito importante de renda pública, enquanto seriam muito úteis aos particulares, facilitando as comodidades da vida14.
18A relevância do tema pode ser mensurada pelo desejo que manifestou em duas cartas particulares de ocupar um cargo na corte que permitisse a administração do sistema postal. Em de 3 de agosto de 1791 afirmou ao seu irmão José António, futuro principal Sousa:
Sabes tu o único lugar que eu desejaria, seria que a Rainha N. S. tomasse para si como deve o correio das cartas, e que depois m’o confiasse, com a inspeção das estradas, pontes e canais. Então poderia servir utilmente a nossa Soberana e o Reino que valeria mais do que agora vale15.
Em janeiro de 1792, declarou:
Se tivesse crédito, o único lugar que ambicionaria seria o de uma Repartição que compreendesse «estradas, correios de cavalos e cartas, rios, canais e pontes». Parece-me que apesar da minha ignorância, com algum crédito havia de surpreender […] a favor do engrandecimento das rendas reais16.
19A aspiração de administrar os correios pode ser traduzida na intenção de D. Rodrigo em retirar o serviço postal das mãos de particulares e transferi-lo para a gestão da Coroa. Para além desse aspecto primordial, seus escritos revelam a preocupação em modernizar os correios, tornando-os lucrativos e integrados a uma infraestrutura que garantisse mais agilidade às comunicações. A circulação de papéis era dependente também do investimento na melhoria das estradas, pontes e canais viários. A reforma dos correios fazia parte de um programa mais amplo de recuperação financeira da Coroa em uma conjuntura de guerras, tal como a que se desenhou no final do século xviii. Tais ações extrapolavam o âmbito de sua jurisdição na Marinha e Domínios Ultramarinos, pois como demonstrou durante os anos que atuou junto ao poder central, preocupou-se em oferecer uma visão de conjunto para os dilemas enfrentados por Portugal frente à acirrada competição entre as potências europeias17.
20O primeiro passo era, assim, enfrentar o monopólio da família Mata na administração dos correios. Para isso, D. Rodrigo convocou em 13 de outubro de 1796 o proprietário do ofício, Manuel José da Maternidade da Mata de Sousa Coutinho, um jovem de 14 anos18. A proposta de resgate oferecida pelo ministro era uma renda anual de 30 mil cruzados e um título hereditário de conde, o que foi recusado pelo representante do menino, seu tio D. Duarte de Souza, pois o correio rendia 60 mil ou 70 mil cruzados anuais. Após as negociações, o acordo final garantiu uma renda anual de 40 mil cruzados advindos, a escolher, de um bem territorial, comenda ou título da dívida pública, mais uma pensão vitalícia do mesmo montante19.
21Meses depois, em 18 de janeiro de 1797, D. Rodrigo entregou ao príncipe regente D. João uma minuta do alvará de suspensão do Correio-mor, contendo às condições do acordo e os detalhes da administração do novo correio. O documento sugeria que a Secretaria dos Negócios Estrangeiros ficaria encarregada da gestão do correio no reino e a Marinha e Domínios Ultramarinos pelo correio marítimo. O acordo com a família titular do ofício tramitou pela Secretaria dos Negócios Interiores e do Reino sob a responsabilidade de José de Seabra da Silva. Durante quatro meses, entre o intervalo da assinatura do acordo e do decreto que suspendeu o ofício, a correspondência entre D. Rodrigo e Seabra da Silva está repleta de tensões:
Dorme novamente nas mãos de José de Seabra a conclusão do que se determinou e ajustou sobre a extinção do ofício de Correio-mor, e tem este procedimento dois fins: o 1.o manter o sistema que sempre seguiu de desacreditar um tão Augusto Príncipe, e tão adorado pelos seus ditosos vassalos, fazendo ver que ele obedece quando quer, e que nada tem que temer; o 2.o de mostrar ao público que o negócio se não conclui porque eu o ajustei por ordem de Vossa Alteza Real, e fazer o contrário de tudo o que eu proponho como útil ao real serviço […] Um dos seus aderentes ameaçou-me anteontem, lembrando-me todo o poder das suas astúcias e artifícios20.
22D. Rodrigo estava convicto de que havia uma «cabala forte e bem organizada contra ele», impedindo-o de concluir suas proposições «úteis ao real serviço»21. Nas entrelinhas, atribuía as resistências à sua forma de administrar aos conluios políticos do marquês de Ponte de Lima e de Seabra da Silva contra a regência do príncipe D. João22. Sua avaliação ficou expressa em uma carta para o príncipe D. João de 22 de janeiro de 1797:
Hoje os meus inimigos (oxalá fossem somente meus!) se propõem de vilipendiar-me fazendo ver que V. A. R. não há de ter firmeza em proteger as suas criaturas, e […] não assine o Decreto de abolição do ofício de correio-mor, já que V. A. R. me encarregou desse negócio. […] insinuam indiretamente que eu pretendo ter toda a influência, que V. A. R. não deve confiar-se em mim, porque desejo governar tudo, como na sua Real presença se atreveu já a proferir o marquês de Ponte de Lima. Estes fatos que ouso asseverar na sua augusta presença, combinados com a situação difícil do momento, que poderia somente ser feliz tirando-se partido da mesma, o que contudo é impossível com Luís Pinto vendido torpemente à Espanha, com o marquês que arruína cada dia mais a sua Real Fazenda, com José de Seabra, que V. A. R. conhece melhor do que eu23.
23Os argumentos de D. Rodrigo — a favor da implementação dos correios e das suas vantagens financeiras e políticas —, não eram suficientes para conter as objeções do grupo liderado pelo marquês de Ponte de Lima e de Seabra da Silva. Este chegou a elaborar um novo texto para o alvará, propondo que a jurisdição do correio marítimo ficasse a cargo dos Negócios Estrangeiros. D. Rodrigo reagiu pedindo demissão, pois se o novo texto fosse aprovado esvaziaria sua competência no assunto:
A minha dor he tal que a minha saúde não resiste ao trabalho de que V. A. R. se dignou encarregar-me, e de rastos vou hoje ao Conselho de Justiça, e amanhã aos reaes pés de V. A. R., para o suplicar humildemente que se digne nomear outro Ministro do Estado24.
24As oposições de Seabra da Silva ao decreto carecem de maiores investigações. No entanto, as cartas trocadas entre ele e D. Rodrigo evidenciam os conflitos entre distintos grupos de poder na corte em torno das decisões que ampliariam o controle das informações circulantes no reino e no mundo ultramarino25. Resistências que acabavam por beneficiar os interesses corporativos em torno do ofício de Correio-mor e, em particular, o correio marítimo. Em linha divergente, marcado pelas leituras da economia política de meados do século xviii, em particular pela obra de Adam Smith, D. Rodrigo representava a defesa de ideais contrários às práticas monopolistas e advogava o controle, por parte da Coroa, de áreas estratégicas do governo26.
25Tal linha de defesa encontrava-se em consonância com a «política pombalina do direito», como se referiu António Manuel Hespanha. De acordo com este autor, Portugal, seguindo outros países da Europa, buscou submeter o direito e os juristas a um controle maior da Coroa a partir da segunda metade do século xviii. Essa política «desenvolveu-se em três frentes de reforma — a da legislação, a do sistema das fontes de direito e a do ensino do direito»27. Frente aos questionamentos sobre a eficácia desse processo, alguns movimentos podem ser identificados no esforço da Coroa em abolir os estancos, como ocorreu com o do sal e o da pesca da baleia em 1801. Registra-se também a abolição dos privilégios criados por contratos de exclusividade, como a dos cortes de madeira na América portuguesa28.
26A ameaça de demissão de D. Rodrigo surtiu algum efeito. No discurso proferido na abertura da Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica em dezembro de 1798, após propagandear os objetivos da nova instituição, tratou de oferecer aos seus ouvintes um arrazoado dos feitos do príncipe durante seus anos de regência. Destacou, entre outros assuntos, a incorporação do «correio das cartas» à Coroa. Louvou a generosidade da indenização ao último administrador e, na contrapartida, sua honrosa contribuição à monarquia, «um sacrifício tão útil à coisa pública, e que faz de uma vez cessar o ridículo que se dava ao governo português por ser o único Estado em que o correio público era o património de um particular»29.
27O discurso colocava o ministro do Ultramar na posição de vencedor da disputa e, desse modo, marcava seu lugar de influência junto ao príncipe. Mas suas palavras também revelam a tentativa de criar um equilíbrio harmônico entre os interesses da Coroa e a felicidade pública. Uma forma de compreender a realidade social marcada pela noção de «polícia» característica das administrações nos estados reformistas europeus na segunda metade do século xviii30. Esse «Estado de Polícia», na definição de Hespanha, operou como um «novo desígnio ordenador do poder em relação a uma sociedade que já não é considerada como refletindo uma ordem natural, mas [que] carece de ser organizada»31.
28Conceito que contribuiu para a elaboração de uma nova ordem interna, estabelecida pela ação do Estado, com base no bem comum e público, que em Portugal só foi possível a partir do reformismo. Tal como sugeriu Michel Foucault, este foi um momento em que se reuniram os «meios (leis e regulamentos) através dos quais seria viável fazer crescer as forças do Estado, mantendo a boa ordem do Estado». Esse mesmo autor, ainda afirmaria um tipo de atitude política que se encontra nas iniciativas de D. Rodrigo: «o que se chama até o fim do Antigo Regime de Polícia não é somente a instituição policial; é o conjunto dos mecanismos pelos quais são assegurados a ordem, o crescimento canalizado das riquezas e as condições de manutenção do bem-estar em geral»32.
29O enfrentamento do monopólio dos correios e a ampliação do controle da Coroa do serviço postal ocorreram simultaneamente as ações do ministro para o estabelecimento do correio marítimo. Este era um assunto central na pasta da Marinha e Domínios Ultramarinos e, para que seu funcionamento ocorresse de modo eficiente, D. Rodrigo contou diretamente com o apoio dos governadores das conquistas, particularmente com as ilações de seu irmão D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho sobre o assunto.
O sistema postal do Grão-Pará: um modelo para o correio marítimo
30Poucos são os registros que evidenciem a preocupação direta de D. Rodrigo com o correio marítimo antes de sua entrada no ministério. No entanto, a proposta de reforma do sistema postal estaria incompleta sem a consideração das trocas de informações entre Portugal e suas colônias. No que tange aos territórios da América portuguesa, a inquietação com o tema aparece dias após ao início de sua gestão, quando endereçou aos governadores uma circular sobre o estabelecimento de um correio entre cada capitania e Portugal, bem como destas com os outros domínios da África e Ásia33. Antes mesmo de receber as respostas dos governadores e do vice-rei conde de Resende, em 21 de março de 1797, anunciou o estabelecimento de um serviço de paquetes entre as colônias e o reino, dando ordens para a construção das embarcações adequadas ao serviço34. As respostas dos governadores chegam, desse modo, simultaneamente a implementação do novo serviço e, em alguns casos, como os de Pernambuco e Bahia, é possível perceber críticas ao sistema35.
31A urgência na implantação de um correio marítimo advém da compreensão do perigo representado pela distância na comunicação entre o centro e as periferias do império, em particular em conjunturas diplomáticas complexas como a que se apresentava no final do século xviii. A orientação ilustrada de suas reformas pressupunha o monopólio da informação por parte da Coroa. Era pouco produtivo solicitar aos governadores mapas pormenorizados sobre a demografia, o comércio, a produção agrícola, a organização militar, o recolhimento dos impostos, entre outros relatórios de governo, caso não se viabilizasse a redução do tempo entre as trocas de correspondência, vital à saúde administrativa.
32O conhecimento do território, suas potencialidades econômicas, abarcava também uma dimensão política: noções detalhadas sobre as conquistas estavam diretamente relacionadas à eficácia na cobrança de impostos, no planejamento ordenado de intervenções estruturais nas vilas e cidades, além do controle eficiente de vassalos rebeldes. Informações valiosas que não estavam sob o controle direto da Coroa, mas sim ramificadas no cotidiano do transporte realizado por comerciantes, vulneráveis à cobiça das potências inimigas. O segredo sobre as riquezas coloniais nos quadros do mercantilismo era uma prática das monarquias europeias. Como afirmou Robert Darnton, a política no Antigo Regime era uma atribuição do rei, «que tratava a ciência de governar como arcana imperii, uma arte secreta restrita aos soberanos e seus conselheiros»36. Era preciso cuidar, assim, do contrabando de notícias37.
33O desconhecimento prático de D. Rodrigo acerca das distâncias no interior do território colonial tornava suas ações dependentes dos olhares dos capitães-generais da América portuguesa sobre o assunto. Como demonstrou Mayra Guapindaia, a reforma do correio marítimo, corporificada no Alvará de 20 de janeiro de 1798, contou com uma ampla troca de ofícios entre D. Rodrigo e os governadores. No intenso debate gerado por esses escritos, Guapindaia destacou a ocorrência de duas visões sobre o sistema postal: uma que acreditava na necessidade de intervenção direta da Coroa; e outra que defendia a manutenção da estrutura existente, controlada pelos navios mercantes38.
34Das ideias que emergem dos ofícios dos governadores, destaca-se o «Plano sobre o estabelecimento de um correio marítimo para as correspondências de Portugal com as suas colônias da parte setentrional do Brasil», elaborado por D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho, governador do Pará, datado de 10 de maio de 179739. Na ausência de um estudo sistematizado assinado por D. Rodrigo sobre o correio marítimo, a atenção que o ministro confere a esse texto, como veremos adiante, nos permite afirmar que o manuscrito traduzia a forma como ele acreditava ser a mais eficiente para a implantação dos correios no interior da América. Tal assertiva se ampara no fato de que foi esse o texto que forneceu a base para a formulação do Alvará de 20 de janeiro de 1798 que regulamentou a implantação do correio marítimo com a América portuguesa até que ele fosse suspenso na conjuntura de 1820.
35O escrito mostra o comprometimento do governante com as ações que trariam benefícios à Coroa e aos súditos, tendo, como princípio, o bem-estar e a felicidade dos povos40. Em formato de perguntas e respostas, o texto endossa a necessidade de organização da comunicação interna e está permeado de ideais que justificavam as reformas ilustradas com intervenções no território colonial. São exemplos dessa necessidade as preocupações com a demarcação mais exata das distâncias entre as vilas, a extração de drogas do sertão e de madeiras. Revela também uma preocupação com a necessidade de criar rotas internas mais ágeis para o giro das cartas, aspecto que daremos maior atenção, posto que a solução capaz de conferir mais eficiência dos portos litorâneos à Lisboa, já estava dada por meio do sistema de paquetes. Estava claro para D. Francisco que, para garantir a segurança e a rapidez postal, era fundamental resolver os obstáculos internos.
36O documento foi, aparentemente, uma resposta à demanda da Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos sobre o melhor meio de implantar o correio marítimo na América portuguesa. Seu resultado, no entanto, reflete um amplo conhecimento que D. Francisco havia acumulado sobre a geografia da região norte, pois governava a região desde 1790.
37D. Francisco apresentou todos os pontos que pretendia solucionar a respeito da «rara regularidade» dos correios em tempos de paz que, quando ocorria, resultava de «mero acaso», e da necessidade de tê-los em bom funcionamento em «tempo de guerra», quando a demora «chega a um ponto insofrível»41. A ação nefasta da guerra sobre os canais de comunicação era uma experiência comumente lembrada pelos governantes, tema que surgiu no contexto da Revolução Inglesa no século xvii e, como tratamos anteriormente, durante a Guerra dos Sete Anos, para o caso espanhol42.
38O problema da falta de notícias em «tempo de guerra», afirmava D. Francisco, tornava o bom funcionamento dos correios central «para aproximar as colônias da Metrópole, para estreitar os laços entre uns e outros habitantes e promover a recíproca felicidade»43. A preocupação do governador do Pará combinava-se com o princípio de unidade política defendida por seu irmão D. Rodrigo, para quem a «centralização dos governos da América» garantiria mais força frente aos inimigos externos e permitiria à Coroa portuguesa «ocupar o verdadeiro limite natural das nossas possessões» na América. «Estreitar os laços» entre os habitantes era a chave para o fortalecimento do «enlace natural» dos domínios ultramarinos com a metrópole. Afinal, como apregoava o ministro, a reunião das «províncias da América, que se denominam com o genérico nome de Brasil» promovia uma «mútua e recíproca defesa da monarquia» e a realização do «inviolável e sacrossanto princípio da unidade», o que permitia a todos os povos sentir «os felizes efeitos da reunião de um só todo composto de partes tão diferentes que separadas jamais poderiam ser igualmente felizes»44.
39D. Francisco revelou um conhecimento profundo sobre o problema das distâncias entre as capitanias do norte da América portuguesa. Sua proposta era que toda a correspondência do Mato Grosso, Goiás, Grão-Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Bahia fosse destinada a Assú (Vila Nova da Princesa) no Rio Grande do Norte e, do cabo de São Roque, para a corte45. A correspondência do reino também chegaria a esta região e dali seria dirigida por via terrestre para as capitanias. Na ótica do governador, a via terrestre fornecia uma leve vantagem quando comparada ao envio de paquetes diretos para cada capitania, pois permitiria às localidades receber as cartas com pouca diferença de tempo entre elas46. Pelos seus cálculos, a viagem de Assú à corte ocorreria com uma regularidade de trinta dias e, com mais cinco ou dez dias no máximo, as capitanias receberiam as notícias da Europa.
40A eficiência do correio também dependeria do número de embarcações a serem construídas, com recursos da metrópole, para esse fim. Pelos cálculos do governador, com quatro paquetes, a Coroa teria, entre cento e vinte e cento e quarenta dias, a resposta de um ofício enviado para uma capitania. As despesas para a construção seriam facilmente compensadas por meio do carregamento de «tabuados de louro, cedro e pau amarelo», madeiras que podiam ser levadas em embarcações pequenas. Prevendo possíveis «oposição e embaraços» aos novos estabelecimentos postais, D. Francisco «julg[ava] mui necessária toda a Economia neste, e que as Cartas fiquem a preço mui comodo», evitando-se gastos com carregamentos supérfluos e tripulação, até que «o povo não sente[sinta] as vantagens [dos correios] para afoitamente os desfrutar»47.
41A aceitação das proposições do governador do Pará — em detrimento a outras propostas encaminhadas por outros capitães-generais, como analisado por Guapindaia — materializa-se no texto do Alvará de 20 de janeiro de 1798, como afirmamos anteriormente. Mesmo antes da assinatura do documento final, em setembro de 1797, D. Rodrigo enviou a todos os governadores da América, África e Ásia, a notícia sobre o estabelecimento do novo correio marítimo48. Ao que parece, o ministro conferiu pouca atenção às informações e sugestões de outros governadores, pois o documento final é muito próximo ao plano escrito por D. Francisco. O que estava por trás dessa medida?
42A dinamização das comunicações internas entre o Pará, Goiás, Mato Grosso e Rio Negro, inscrita no controle geográfico e político dessa ampla região, completava-se com as pretensões expansionistas sobre um território de limites em definição. Na mesma linha, a centralização da correspondência das capitanias mais ao interior da América portuguesa nas mãos do governador do Grão-Pará ligava-se às pretensões de D. Rodrigo em criar um vice-reinado para a região norte, com sede em Belém do Pará. Tal proposta previa, inclusive, a abertura de um Tribunal da Relação, evitando-se a necessidade dos habitantes da região recorrerem ao reino, a Bahia ou ao Rio de Janeiro49. A corroborar com tais intenções, data do mesmo contexto a elaboração de um plano para a Conquista de Caiena, também de autoria de D. Francisco50.
43O plano do correio marítimo de D. Francisco precisa ser examinado em atenção a outras proposições ligadas a um maior controle geoestratégico da América portuguesa. Essa visão sistêmica era partilhada por seu irmão na corte, pois sua proposta de reforma do sistema postal também não pode ser compreendida sem que se considere um conjunto de medidas de caráter fazendário e fiscal visando a ampliação das rendas reais, de uma maior eficiência financeira, capaz de garantir a defesa do Império Português em tempos de guerras. Uma diferença, no entanto, parecer ser fundamental: enquanto D. Rodrigo em Lisboa enfatiza o papel dos correios na ampliação das rendas reais, todo o plano de D. Francisco está focado na necessidade de controlar e acelerar a circulação das informações tanto no interior da colônia, quanto das capitanias com Lisboa.
Os limites da reforma postal na América portuguesa: notas finais
44O correio marítimo foi criado a partir de outros modelos que reestruturaram o sistema postal entre as colônias e suas metrópoles na Europa. Apesar dessa aproximação parecer evidente para os que analisam o período, não se identificam menções na documentação aos exemplos das Américas inglesa ou espanhola. Mas algumas comparações podem ser feitas, em especial acerca dos limites da reforma. Como demonstram os estudos de Araneda Riquelme e Moreno Cabanillas para o caso espanhol, a implantação de um novo sistema de correios gerou conflitos, oposições e resistências por parte daqueles que, anteriormente, eram responsáveis pelo serviço. Examinando os planos encaminhados pelos governadores das distintas capitanias da América portuguesa, Guapindaia também apontou como um desafio ao correio marítimo a ruptura com o monopólio dos navios mercantes no tráfico postal51.
45A leitura da documentação do período, em particular os manuscritos avulsos do Conselho Ultramarino, aponta para as resistências locais no transporte da correspondência em especial nas redes estabelecidas no interior da América portuguesa. Uma delas é o controle dos comerciantes locais no transporte das cartas. É necessário considerar que o processo de ocupação do território colonial exigiu a abertura progressiva de caminhos pelo interior da América portuguesa que garantissem a circulação de mercadorias, animais de tração, escravos e gentes. À medida que a administração se tornava mais complexa e as redes mercantis mais constituídas, tais passagens serviam também para a condução das correspondências oficiais.
46Para além desse aspecto, uma novidade parecia ser a cobrança postal. No plano dos correios, Francisco Maurício de Souza Coutinho registrou as queixas e «os sentimentos de alguns Negociantes [que] achavam excessivo o [valor] de 80 réis costumados a não pagar nada», lembrando ao poder central «que o grande inconveniente para o Correio» resultava «da concorrência de Cartas gratuitas vindas em Navios de Sua Majestade»52. Guapindaia aponta para a existência de uma «escrita momentânea», na qual o comerciante enviava suas cartas por qualquer navio sem precisar aguardar as datas rígidas de saídas dos correios. Os tropeços colocados à plena aplicação do alvará podem ser variáveis de acordo com a região e colocam-se como um campo aberto às pesquisas53.
47A reforma postal era, para D. Rodrigo, um aspecto da sua agenda de recuperação dos cofres régios. A preocupação com a arrecadação postal marcou todo o encaminhamento para suspender o monopólio da família Gomes da Mata, mas também guiou as diretrizes para o estabelecimento do correio marítimo e do interior da América portuguesa. Todos os governadores tiveram que responder sobre as despesas e os lucros que podiam advir desse novo sistema. Mas, como observamos, as respostas dos governadores às demandas da Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos parecem caminhar em outra direção. Demonstravam estar mais interessados na criação de um sistema capaz de garantir a regularidade e a eficiência do giro de informações, do que com as rendas resultantes do negócio das cartas.
48Comparado as rendas anuais do Correio-mor, em curto espaço de tempo o correio marítimo mostrou um desempenho mais lucrativo para a Coroa do que o sistema de transporte realizado pelas embarcações mercantis54. Aparentemente, a reforma do correio marítimo foi um sucesso. No entanto, dois séculos de enraizamento de um sistema de trocas de cartas realizado por comerciantes não se desfazem em alguns meses. Há indícios de que tanto o ofício de Correio-mor quanto o transporte feito pelos navios mercantes tenham continuado a funcionar em paralelo às novas diretrizes. Em 26 de março de 1798, o ministro anunciava ao príncipe D. João:
O correio marítimo produziu 353$956 réis que vão imediatamente entrar no Erário, e que seria uma maior soma se o Correio-mor estivesse já satisfeito e expulso do lugar que pretende sempre não largar. Digne-se Vossa Alteza Real ver que as disputas com os meus colegas são sempre sobre os interesses da sua Real Coroa, e que apesar de não ser nem nunca ter sido amigo do Marquês [de Ponte de Lima], sempre contribui da minha parte com todas as noções e com aquela atividade que poderia ter posto a Fazenda Real no pé o mais respeitável55.
49A queixa de D. Rodrigo pode ser um indicativo de que uma rede não oficial de correspondência seguiu em funcionamento, garantindo os interesses de particulares no negócio das cartas. Hipótese que merece investigação. O porto de Assú, defendido como o melhor local para o envio e recebimento das correspondências, nunca saiu do papel, como assegura Guapindaia56. Cabanillas, em seu estudo sobre o caso espanhol, apontou para a intensa polêmica provocada pela transferência do correio marítimo para La Coruña em detrimento do porto de Cádiz. Teria ocorrido algum tipo de resistência por parte dos comerciantes da América portuguesa em favor da oposição e embaraços manutenção dos antigos portos como local de despacho das correspondências? Mais uma pergunta que merece atenção.
50Há também razões para desconfiar que o correio com o interior da América portuguesa não funcionou tão bem quanto o plano de D. Francisco parece demonstrar. Um breve exame da correspondência dos governadores do Mato Grosso e de Goiás no período revela alguns entraves. No final de 1797, reiterando as queixas da demora das ordens vindas de Lisboa, o governador do Mato Grosso, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, havia recebido «notícias particulares» sobre o «rompimento da guerra (entre Portugal e Espanha) e outras a davam por já declarada», mas ansiava por notícias oficiais. Isolado, tratou de consertar com urgência as armas que, «muito velhas», praticamente não tinham mais serventia. Escreveu sobre suas intenções em pedir socorros ao vice-rei no Rio de Janeiro e ao governador do Pará, mas não queria agir precipitadamente antes de receber alguma instrução da corte. Na espera por mais de dois anos, acabou surpreendido com a invasão espanhola do presídio de Nova Coimbra em 180157, localizado às margens do rio Paraguai, capitania do Mato Grosso.
51Montenegro tinha noção exata dos prejuízos provocados pela dificuldade de comunicação entre o Mato Grosso e a corte. Impressionado com o tamanho do território que governava, mandou elaborar um novo mapa da capitania para que no reino se pudesse «fazer ideia mais completa de toda sua extensão»58. Em seu diagnóstico, o isolamento do Mato Grosso seria resolvido caso «fossem vencidos os obstáculos naturais de comunicação com o Pará», uma vez que as «costumadas inundações dos rios» provocavam a «demora dos correios» por mais de dois meses. Alertou a D. Rodrigo sobre a necessidade de «facilitar a comunicação das suas importantes colônias do Brasil com a Metrópole», porque as diretrizes do poder central eram úteis «no tempo da paz», mas faziam-se «mais necessária no tempo da guerra, porque de outra sorte, ou se tomam as medidas tarde, ou antes do tempo, estando elas sempre dependentes de combinações vagas e falíveis»59.
52Ao elaborar suas considerações acerca das condições de estabelecimento do novo correio no interior da capitania que administrava, Caetano Pinto de Miranda Montenegro apontou não apenas para o isolamento da região, mas para um aspecto negligenciado pelos que contribuíram com o debate sobre as melhores formas de estabelecer e regularizar o correio marítimo na América portuguesa. Segundo ele:
Os Posseiros e Mineiros vivem concentrados no meio da sua Escravatura, e esta espécie de Sociedade Doméstica, de viver violenta, para que os aparta de toda a cultura, e comércio humano. […] Donde concluo, que o número das cartas há de ser pequeno, enquanto a Povoação, e as fortunas destes Colonos não tiverem um aumento considerável, e talvez que nem a despesa do Estabelecimento chegarão a cobrir60.
53A ausência de uma cultura de escrita de cartas no interior da América portuguesa talvez tornasse as chances de lucro com o correio marítimo uma quimera. Imersos na faina colonial, na mineração ou na agricultura, os vassalos dos sertões mostravam-se avessos aos princípios que guiavam as Luzes do ministro D. Rodrigo e seus governadores letrados. A experiência da colonização se fez de acordo com os imperativos da distância. Se nas colônias inglesas, os súditos britânicos passaram a escrever mais cartas por estarem certos de que sempre havia uma embarcação pronta a dar destino as suas palavras, no interior do Mato Grosso súditos de «viver violento» não se mostravam seduzidos por tal possibilidade. Curiosamente, as condições de letramento da população forjavam, para além das distâncias geográficas e temporais, uma nova noção de afastamento, de ordem cultural, tornando o habitante do interior da América portuguesa um súdito distante dos padrões civilizatórios impostos pela ilustração europeia.
Notes de bas de page
1 Uma síntese importante do assunto e do debate historiográfico acerca do tema da distância encontra-se em Gaudin et alii, 2017.
2 Sobre as pressões exercidas pela categoria do tempo: Le Goff, 1995. Ver também Hartmut, 2019.
3 Sobral Neto, 2005; Araneda Riquelme, 2017; Moreno Cabanillas, 2017; Guapindaia, 2017.
4 Steele, 1986, pp. 113-116.
5 Ibid.
6 Ibid.; Le Roux, Richez, 2014; Caplan, 2016.
7 Moreno Cabanillas, 2017.
8 Ibid.
9 Sobre a conjuntura diplomática e as guerras do final do século xviii, ver Alexandre, 1993.
10 Sobral Neto, 2005, pp. 36-38.
11 Ibid.
12 «Reflexões sobre a fiscalidade e as finanças de Portugal [1786]», em Coutinho, Textos políticos, t. I, pp. 234-239.
13 Sobral Neto, 2005, pp. 19-25.
14 «Reflexões sobre a fiscalidade e as finanças de Portugal [1786]», em Coutinho, Textos políticos, t. I, p. 235.
15 Carta de D. Rodrigo a José António, Turim, 3/8/1791, ANTT, Condes de Linhares, [Cartas pessoais], mç. 62, doc. 12.
16 Carta de D. Rodrigo a José António, Turim, 25/1/1792, ibid., doc. 13.
17 Cardoso, 1989; Silva, 2006; Pombo, 2015.
18 Silva, 2006, p. 25; Pombo, inédita, p. 113.
19 Além do que foi proposto no acordo, o jovem proprietário do ofício do Correio-mor foi agraciado com o título de conde de Penafiel. Ver Pereira, 1990, t. II, p. 97.
20 Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho ao príncipe regente D. João, Lisboa, 12/11/1796, ANRJ, Negócios de Portugal, cx. 716, pct. 1, doc. 36.
21 Ibid.
22 Pombo, inédita, pp. 62-120.
23 Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho ao príncipe regente D. João, Lisboa, 22/1/1797, ANRJ, Negócios de Portugal, cx. 681, pct. 1, no 1, doc. 37.
24 Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho ao príncipe regente D. João, Lisboa, 27-28/3/1797, ibid., doc. 53.
25 Anexos às cartas de D. Rodrigo ao príncipe D. João, ibid., cx. 716, pct. 2. Encontra-se uma rica correspondência entre o ministro e Seabra da Silva sobre o assunto.
26 Pombo, 2015, p. 186 sqq.
27 Hespanha, 1998, p. 196.
28 Novais, 2001, pp. 246-254.
29 «Discurso feito pelo Ilmo. e Exmo. Sr. D. Rodrigo de Souza Coutinho, na abertura da Sociedade Real Marítima [1798]», em Coutinho, Textos políticos, t. II, p. 183.
30 Raeff, 1975.
31 Hespanha, 1984, p. 68.
32 Foucault, 2008, pp. 419-457; Id., 1984, p. 197.
33 Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho aos governadores das capitanias do Brasil, Lisboa, 22/9/1797, ANRJ, Negócios de Portugal, cx. 744, pct. 1, no 2a.
34 Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho aos governadores das capitanias do Brasil, Lisboa, 21/3/1797, ibid., cx. 747, pct. 1.
35 Sobre as respostas dos governadores ver o estudo de Guapindaia, 2017.
36 Darnton, 2005, p. 46.
37 Para o caso espanhol, Araneda Riquelme, 2017.
38 Guapindaia, 2017.
39 «Ofício (2a via) do D. Francisco de Sousa Coutinho, para o D. Rodrigo de Sousa Coutinho, remetendo um plano para o estabelecimento de um correio marítimo…», Pará, 10/5/1797, AHU-CU, Pará, cx. 109, doc. 8578 [doravante «Ofício (2a via)»]. O plano foi analisado com mais detalhes em minha tese de doutorado, Pombo, inédita, cap. vii. Ver também o estudo de Guapindaia, 2017.
40 Astuti, 1984, pp. 264 e 266-267; Raeff, 1975.
41 «Ofício (2a via)», § 1.
42 Steele, 1986, p. 114; Moreno Cabanillas, 2017.
43 «Ofício (2a via)», § 1.
44 «Memória sobre o melhoramento dos domínios de sua majestade na América [1797]», em Coutinho, Textos políticos, t. II, p. 49.
45 Mais detalhes sobre o funcionamento dos postos de recolhimento e distribuição da correspondência podem ser lidos em Pombo, inédita, p. 283 sqq.; Guapindaia, 2017.
46 «Ofício (2a via)».
47 Ibid., § 9.
48 Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho aos governadores das capitanias do Brasil solicitando o estabelecimento de um correio mensal entre cada capitania e o reino, Lisboa, 22/9/1797, ANRJ, Vice-reinado, cx. 744, pct. 1, no 2a.
49 Ofício de Francisco de Sousa Coutinho a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, 20/9/1797, BNRJ, Mss. I-28, 25, 30. Vale lembrar que em 1812 foi criado na região norte um Tribunal da Relação, mas com sede em São Luís do Maranhão.
50 Pombo, inédita.
51 Araneda Riquelme, 2017; Moreno Cabanillas, 2017; Guapindaia, 2017.
52 «Ofício (2a via)», § 22.
53 Guapindaia, 2017.
54 Silva, 2006, p. 32.
55 Despacho de D. Rodrigo de Souza Coutinho à S. A. R. o príncipe regente D. João sobre os rendimentos do correio marítimo, Lisboa, 26/3/1798, ANRJ, Negócios de Portugal, cx. 697, pct. 2, no 2, doc. 5.
56 Guapindaia, 2017.
57 «Ofício do [governador e capitão general da capitania de Mato Grosso] Caetano Pinto de Miranda Montenegro ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Rodrigo de Sousa Coutinho sobre informações recebidas do Presídio de Coimbra; a visita de um soldado dos domínios de Castela, com pretexto de buscar escravos e índios fugidos; o reforço da guarnição do presídio e orientações para o comandante do forte do Príncipe da Beira», Vila Bela, 3/8/1797, AHU-CU, Mato Grosso, cx. 33, doc. 1756 (doravante «Ofício sobre informações do Presidio»).
58 «Ofício do [governador e capitão general da capitania de Mato Grosso] Caetano Pinto de Miranda Montenegro ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Rodrigo de Sousa Coutinho a informar que mandou fazer um mapa geral da capitania», Vila Bela, 1/3/1798, ibid., cx. 34, doc. 1771.
59 «Ofício sobre informações do Presidio».
60 «Ofício do [governador e capitão general da capitania de Mato Grosso] Caetano Pinto de Miranda Montenegro ao [secretario de estado da Marinha e Ultramar] Rodrigo de Sousa Coutinho, sobre o estabelecimento de Correio com a corte e os domínios ultramarinos», Vila Bela, 5/7/1798, ibid., cx. 35, doc. 1796.
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IFCH, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rede-Proprietas, Universidade Federal Fluminense
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