A Crónica Geral de Espanha de 1344 entre os séculos XIV e XV
A génese de um scriptorium de corte?
Résumés
A proposta de participação que apresentei à organização do Congresso dos Jovens Investigadores em Idade Média começa por uma breve abordagem explicativa do contexto histórico no qual surgiu a primeira redação da Crónica Geral de Espanha de 1344 e das relações histórico-filológicas entre a primeira e a segunda redações desta Crónica de 1344 e a Crónica de Portugal de 1419. É no âmbito das bibliotecas régias e principescas constituídas durante os reinados de D. João I (1385-1433) e de D. Duarte (1433-1438) que, de acordo com a tese que pretendo provar, residirá a génese de um presumível scriptorium de corte. Já porventura, produto da atividade desse scriptorium régio serão, dentre o final do século XIV e o início do século XV, a segunda redação da Crónica Geral de Espanha de 1344 e a redação da Crónica de Portugal de 1419. Todavia, a produção literária dos primeiros senhores da casa de Avis não se resumiu à encomenda de crónicas, antes se estendeu à tradução de uma grande variedade de textos, a par da produção autógrafa de tratados morais, filosóficos e políticos. Os resultados do estudo codicológico e artístico individual a oito códices iluminados de corte, do século XV português, onde toda essa produção literária está representada, seguiu para uma análise comparativa, no intuito de se perceber se, por essa via, seria possível confirmar ou refutar a hipótese de origem comum. O propósito criador destes textos – que vieram a materializar-se nos oito códices em observação – estava intimamente relacionado com uma estratégia de propaganda política que tomou como instrumento privilegiado, o documento escrito e que terá tido como ponto de partida, não por acaso, a refundição do texto da primeira redação da Crónica Geral de Espanha de 1344.
The participation proposal presented to the International Congress for Young Researchers on Middle Ages begins with a short overview about the historical context in which the General Chronicle of Spain of 1344 came up, as well as the historical and philological relations between the first and the second writings of this Chronicle of 1344 and the Chronicle of Portugal of 1419. It was in the sphere of royal and princely libraries, constituted during the reigns of John I (1385-1433) and Edward I (1433-1438) that we could find the genesis of a court scriptorium, which is the thesis I intend to prove. The General Chronicle of Spain of 1344 and the Chronicle of Portugal of 1419 were probably made in this scriptorium, both been written between the end of the 14th century and the beginning of the 15th century. However, the literary production of the first lords of the Avis dynasty did not summed up to the chronicles, they ordered also several translations and simultaneously, they authored texts of philosophical, moral and political nature. The results obtained from the individual and comparative codicological study performed to eight 15th century Portuguese court illuminated manuscripts, where all this courtly literary production is reflected, intended to support or to refute the common origin thesis. The purpose behind the writing of this texts, represented by the manuscripts at stake, was closely related to a strategy of political propaganda which took as main instrument, the written document. All this bookish activity had started, much likely, and not occasionally, with the rewriting of the General Chronicle of Spain of 1344.
Entrées d’index
Keywords : manuscript, scribe, illuminator, scriptorium, Avis
Palavras chaves : Códice, copista, iluminador, scriptorium, Avis
Texte intégral
Duas Crónicas na corte portuguesa de final do século XIV e início do século XV
1O texto primitivo da primeira redação da Crónica Geral de Espanha de 1344 foi composto por D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos, filho ilegítimo de D. Dinis. Sabe-se, através de uma passagem do texto, que a sua redação estava em curso no ano de 13441. Na primeira edição crítica feita ao texto português da Crónica de 1344, Lindley Cintra define-a como «(…) um dos mais extensos entre os primeiros ensaios da prosa portuguesa» (CINTRA, 2009, p. XVIII). No meado do século XX, Cintra defendia que a historiografia portuguesa se desenvolvera apartada da escola de Afonso X, de tradição neo-isidoriana, devedora do Toledano e do Tudense. Caracterizava-se antes por uma produção de cariz eminentemente analista e linhagístico. Segundo o ilustre filólogo fora no reinado de D. Dinis que a historiografia portuguesa dera os primeiros passos no sentido de acompanhar a cronística castelhana de Afonso X. Na primeira metade do século XIV foram traduzidas para galego-português algumas crónicas afonsinas por mandado ou por influência de D. Pedro Afonso. Durante o período de exílio que viveu na corte de Castela, tomou contacto direto com a cultura literária do centro da Península. Regressado a Portugal retirou-se no seu paço em Lalim, onde deu corpo às suas duas obras de grande fôlego: o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, de 1340 e a Crónica Geral de Espanha de 13442. Esta última, que Lindley Cintra considerou um dos primeiros desempenhos cronísticos em Portugal, apesar de ter tido como matriz impulsionadora, a produção de crónicas da escola do rei Sábio, afastou-se desse modelo pelo emprego de fontes poéticas e lendárias inéditas, bem como pela tradução de crónicas oriundas de outras paragens, como a Crónica do Mouro Rasis3. Demais, é hoje sabido que a Crónica Geral de Espanha de 1344 não foi, de facto, a primeira crónica a ser redigida em território português. Em 1971, Diego Catalán mencionava uma crónica, anterior à de 1344, que intitulou de Chronicon Galego-Português de Acenheiro ou Crónica de Acenheiro, em homenagem ao historiador do século XVI que a redescobriu. De acordo com os relatos que contém, Catalán sugeriu a data de 1341-42 para a sua conclusão4. O filólogo espanhol propôs então o nascimento da cronística portuguesa em época anterior ao século XIV. Este assunto foi, nos últimos anos, estudado por Filipe Alves Moreira. O autor admite a existência de uma Primeira Crónica de Portugal, datada da segunda metade do século XIII e originária da corte régia de Afonso III ou de meio com o qual a corte estabelecia relação próxima. Segundo Moreira, a chamada Crónica de Acenheiro corresponde a uma refundição dessa Primeira Crónica de Portugal e terão sido ambas textos fonte da Crónica Geral de Espanha de 1344 e da Crónica de Portugal de 14195.
2Um dos valiosos contributos fornecidos pela edição crítica de Lindley Cintra foi a árvore genealógica dos códices que se fizeram da Crónica de 1344, englobando tanto os que hoje se conhecem, quanto outros tantos perdidos6. A primeira árvore genealógica foi mais tarde atualizada por Diego Catalán, no que se refere ao ramo castelhano7. De qualquer modo, o esboço inicial de Cintra mantém-se atual para o ramo português e revela que depois da sua criação, a Crónica Geral de Espanha de 1344 foi copiada logo após a sua criação, pelo menos, em Espanha. Em Portugal parece ter sido votada ao esquecimento até à década de 80 do século XIV, quando decorria o período de crise dinástica. Nessa época terá sido redigido o terá sido redigido o texto primitivotexto primitivo da segunda redação8, isto é, nesse tempo foi efetuada uma reformulação ao texto da primeira redação. As diferenças entre as duas redações são significativas9. Enquanto a primeira redação usou na construção dos primeiros capítulos a Crónica do Mouro Rasis, a segunda redação recorreu sobretudo à Primeira Crónica Geral de Afonso, o Sábio. Esta diferença, que resulta de uma escolha propositada por parte do compilador justifica-se pelo facto da segunda redação da Crónica de 1344 ter nascido num contexto político no qual convinha exaltar uma nova conceção de espaço ibérico, onde se rejeitava o universalismo transmitido por Al-Razi, no século X10. Outras modificações igualmente expressivas estão também relacionadas com esta dicotomia imperialismo / nacionalismo. Através da manipulação textual11 que foi favorecida por um relato, em grande medida, assente em fontes poéticas e lendárias, e por isso fortemente ambíguo, o compilador desenvolveu a história dos reinos periféricos – Navarra, Aragão e Portugal – resumindo, em contrapartida, as narrativas que versavam sobre os reinos de Castela e Leão, e sempre que possível denegriu a imagem dos reis de Castela. Noutra vertente, assiste-se nesta segunda redação, ao louvor da figura do rei, em detrimento da valorização da aristocracia, enquanto a primeira redação tinha como principais objetivos, a defesa da ideia de união ibérica e o elogio à nobreza. No fundo, o texto da Crónica de 1344 foi recuperado no final do século XIV, para sustentar uma ideologia contrária àquela apadrinhada pelo Conde de Barcelos. Os propósitos universalistas e pró-senhoriais do conde foram substituídos por outros bem distintos, preconizados pelos líderes da nova casa reinante de Avis. Eram eles: a exaltação do sentimento nacionalista, a afirmação e a legitimação da nova dinastia e a apologia à monarquia e à figura do rei12.
3Mas porquê recuperar um texto que apresentava uma ideologia tão díspar daquela que agora se pretendia transmitir? Em primeiro lugar porque esta crónica continuava a ser um dos principais testemunhos da história dos reis de Portugal, cujo relato ecuménico unia os senhores de Portugal às mais nobres linhagens ancestrais. Esta perspetiva universal da narrativa da primeira redação convinha sobremaneira à jovem dinastia, no sentido da legitimação e glorificação do atual poder régio. E em segundo lugar, porque como já foi dito, o texto do Conde possibilitava, em toda a sua extensão, a manipulação do texto, dado ter apoiado com assiduidade a sua história em fontes poéticas e lendárias.
4Do texto primitivo da segunda redação da Crónica de 1344 derivaram dois códices iluminados do século XV, um da primeira metade e outro da segunda metade do século: os denominados códices L e P, respetivamente. L encontra-se na Academia das Ciências de Lisboa, com a cota Manuscrito Série Azul 1 (M.S.A. 1). P está na Biblioteca Nacional de Paris, com a cota Portugais 9.
5O códice L da Crónica de 1344, é aquele que de entre todos os manuscritos conhecidos desta Crónica, está mais sumptuosamente decorado. Por esse motivo, pensa-se que terá sido encomendado e copiado para a biblioteca de D. Duarte. Na mesma época, D. Duarte ainda infante, ordenou a Fernão Lopes a redação de uma Crónica de Portugal, que conhecemos na atualidade como Crónica de Portugal de 141913. Fernão Lopes foi cronista régio e guarda-mor da Torre do Tombo desde 141814. Deve ter iniciado por essa altura a missão que lhe fora incumbida por D. Duarte, de juntar num só texto todas as notícias respeitantes aos feitos dos reis de Portugal. Nesse labor o cronista utilizou o texto da Crónica Geral de Espanha de 1344 como fonte principal. Em torno de 1 de julho de 1419 deu-se início à redação da Crónica de Portugal. Uma grande porção do seu texto adveio da extração da parte correspondente à história dos reis de Portugal constante no texto da primeira redação da Crónica Geral de Espanha de 134415. Também neste começo de século terá sido redigido o códice L da Crónica de 1344, a partir de uma cópia intermédia do texto primitivo da segunda redação, de finais de Trezentos, hoje perdida16. Se o texto primitivo da segunda redação foi composto na década de 80 do século XIV, quando terá sido copiado o códice L? Lindley Cintra, na sua edição crítica, chama a atenção para um facto revelador. Ao contrário do que acontece com todos os outros códices que se conhecem desta Crónica, o códice L não inclui a história dos reis de Portugal17. Na parte que corresponde ao reinado de D. Afonso VII de Leão e Castela, onde em todos os outros textos da Crónica se começa a contar a história dos reis de Portugal, o copista deixou a restante área do fólio em branco e escreveu a seguinte nota:
(…) Mas desto e das cousas que acontecerom em sua vida, com todalas outras estórias dos reys de Portugal que depos el veherõ, nos nõ diremos aqui nada, mas contallas emos en fim deste livro por se entenderem melhor, posto que muitas cousas dellas fossem feitas en este tempo e as alguas estórias contem en este logar18.
Durante o relato do reinado de D. Fernando II de Leão e Galiza, o copista omitiu o episódio de Badajoz, escusando-se assim: «Depois de todas estas cousas, as quaaes vos contaremos cõpridamente quando falarmos das estórias dos reis de Portugal (…)»19. No último fólio do códice L encontra-se outra nota, de finais do século XV, princípios do século XVI, pouco visível e que diz: «(…) ca que (…) yua cro (…) sem a cronica abreuiada de portugal.»20. A parte da história relativa aos reis de Portugal, prometida para o fim desta transcrição da Crónica, para que se entendesse melhor, não foi afinal introduzida. Creio que esta omissão se deveu ao caso de naquela mesma altura a história dos reis de Portugal estar a ser posta por escrito numa crónica individual: a Crónica de Portugal de 1419. A elaboração do códice L da Crónica de 1344 será então contemporânea do «(…) tempo que nós, o iffante, fizemos esta coroniqua»21, a Crónica de Portugal de 1419. Julgo que será razoável afirmar que o texto da primeira redação estaria naquele mesmo momento, e quiçá em simultâneo, a ser utilizado como texto fonte, pelos redatores da Crónica de Portugal e pelo copista do códice L da Crónica de 1344. Ambos os textos teriam sido encomendados para integrar a biblioteca do Infante D. Duarte. A lista dos livros que constituíam a sua biblioteca faz parte do Livro dos Conselhos d’El Rei D. Duarte, e datará dentre 1423 e 143822. Nela aparecem duas Crónicas de Espanha. Uma seria o original da segunda redação, ou cópia intermédia, ou até uma cópia da primeira redação. Esta Crónica de Espanha que na lista surge em primeiro lugar, está expressamente diferenciada da que se segue, pois juntaram-lhe a indicação do seu estado primário «em cadernos». A segunda Crónica de Espanha aparece sem qualquer outro descritivo e localiza-se, no rol, imediatamente acima da «Coronica de Portugal» que se lhe segue23. O aparato que caracteriza o códice L da Crónica de 1344, permite aventar que este códice L corresponderá à segunda Crónica de Espanha da lista, sugestão que suporta a tese de Cintra, de que este códice terá sido realizado para rechear a livraria real, mais concretamente a livraria de D. Duarte24.
6É justamente durante este período, dos anos 10 do século XV, que se assinala o início de uma significativa produção literária na corte, não se resumindo esta atividade à encomenda de crónicas, mas estendendo-se à tradução de textos clássicos e cristãos e à redação de obras de cariz, moral, filosófico e político saídas do punho dos próprios reis e príncipes de Avis. Por exemplo, a primeira redação do Livro da Virtuosa Benfeitoria, da autoria do Infante D. Pedro, que foi terminada em 141825; ou o Livro da Montaria, de D. João I, que deverá ter começado a ser redigido em torno de 141526.
7Esta produção literária sugere ter tido como ponto de partida a composição da segunda redação da Crónica de 1344, bem como a redação da Crónica de Portugal de 1419, na transição entre os séculos XIV e XV, décadas do estabelecimento da casa de Avis enquanto dinastia reinante.
Um scriptorium régio nas cortes de D. João I, D. Duarte e D. Afonso V?
8A atividade literária desenvolvida pelos mais altos representantes da nova corte régia recorreu, naturalmente, à produção de manuscritos, muitos deles, iluminados, uma vez que estes textos se destinavam às suas bibliotecas. Será, então, que poderemos falar na existência de um scriptorium de corte criado naqueles primeiros anos do século XV? Um local dedicado exclusivamente à feitura de códices, no seio da corte, desde o reinado de D. João I ou de D. Duarte e que daria resposta ao croniciado régio em pleno desenvolvimento, encetado com Fernão Lopes, mas que responderia também a toda a produção literária gerada, em ambiente cortesão?27
9Tentarei responder a esta questão partindo de um corpus de estudo constituído por oito códices iluminados, oriundos da corte portuguesa e datados dos primeiros três quartéis do século XV, ou seja, dentro de um intervalo temporal que compreende os reinados de D. João I, D. Duarte e D. Afonso V. A eventualidade de ter existido na corte régia, um scriptorium instituído desde o início do século XV, de onde terão saído estes oito códices foi ensaiada por meio de um pormenorizado estudo codicológico e artístico, individual e comparativo, durante o qual procurei perceber se dentro deste grupo existem características físicas tais que me permitam apoiar ou recusar a citada tese de origem comum.
Corpus de estudo
10O corpus de estudo é composto por:
Crónica Geral de Espanha de 1344, Manuscrito Série Azul 1, da Academia das Ciências de Lisboa (CGEL);
Leal Conselheiro e Livro da Ensinança de bem cavalgar toda sela, Manuscrito Portugais 5, da Biblioteca Nacional de França, em Paris (LCLE);
Livro da Virtuosa Benfeitoria, Manuscrito cota 9/5487, da Biblioteca da Real Academia de História de Madrid (LVBM);
Livro da Virtuosa Benfeitoria, Manuscrito Cofre nº12, da Biblioteca Municipal de Viseu (LVBV);
Crónica de D. Duarte de Meneses, Manuscrito Livraria 520, do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa (CDDM);
Crónica dos feitos da Guiné, Manuscrito Portugais 41, da Biblioteca Nacional de França, em Paris (CFG);
Crónica Geral de Espanha de 1344, Manuscrito Portugais 9, da Biblioteca Nacional de França, em Paris (CGEP);
e Vida e feitos de Júlio César, Manuscrito Q-I-17, da Real Biblioteca do Mosteiro de São Lourenço do Escorial, em Madrid (VFJC).
De acordo com a datação dos códices podemos dividi-los em dois grupos. Um, situado temporalmente entre as décadas de 30 e 5028 e que inclui os quatro primeiros códices da lista anteriormente apresentada, e o outro, entre as décadas de 60 e 7029 e que engloba os quatro últimos códices.
Estudo codicológico - Encadernação
11O estudo codicológico envolveu, em primeiro lugar, o estudo da encadernação30. Foi realizado um exame individual e comparativo de todos os elementos em presença31. Este exame exaustivo partiu da observação de atributos particulares, selecionados e elencados igualmente para cada códice. Em seguida, essas características que se dividem em características físicas e artísticas32 foram colocadas em confronto, dentro de cada categoria, mas também em cruzamento de categorias, de maneira a esgotar todas as possibilidades de investigação. Neste ponto não foi, contudo, possível retirar conclusões sobre os modos de fazer primitivos (que poderiam conduzir à demonstração da tese de origem comum), pois todos os códices foram reencadernados no decorrer do seu percurso de vida, com exceção para o LVBV. Apesar dessa circunstância, existem para a globalidade dos códices, constituintes passíveis de ainda servir o estudo, como por exemplo, os nervos, as tranchefilas e as linhas de costura. Mas estes, ou já não existem na sua forma primitiva, ou não é sabido se se encontram ainda nesse estado, nem há informação disponível que o indique33. Análises laboratoriais à composição material destes elementos não fazem parte do presente estudo. A sua realização, num futuro próximo, é imprescindível, de molde a esclarecer mais firmemente as dúvidas de datação das várias partes que compõem as encadernações, e assim determinar-se o mais fielmente possível os procedimentos de produção, e consequentemente configurar os percursos dos códices ao longo dos séculos. Dado que foram recolhidos somente, dados relativos a alterações posteriores à encadernação primitiva (salvo o LVBV), esta informação servirá de complemento à circulação e à história dos códices, temas que não serão abordados no presente artigo.
Estudo codicológico - Cadernos
12Seguidamente foi examinado o interior do livro, começando pela estrutura e sequência dos cadernos. A estrutura preferencial do grupo é o quaterno. Existem apenas dois quínios e um sénio. A maioria dos códices, isto é, os quaternos, apresenta uma construção regular dos cadernos, o que significa que cumpre a Regra de Gregory. Esta regra diz que uma face pelo do pergaminho tem de estar para outra face pelo, e que uma face carne tem de estar para outra face carne, sendo a face pelo a primeira que habitualmente se encontra no início dos cadernos. No grupo verifiquei, contudo, que mesmo entre os códices regulares há cadernos que, distintamente, começam com o lado carne para fora e não com o lado pelo, como seria usual. Esta situação remete para uma tradição insular34 na montagem dos cadernos35. Logo, poderá ser indicativo de alguma influência inglesa na produção destes códices. Porém, não posso afirmar que a ter sucedido este pretenso influxo insular, ele tenha ocorrido, no seio da corte régia. O trabalho de construção de cadernos não tinha de ser forçosamente realizado no hipotético scriptorium de corte. Poderia, por exemplo, vir de fora, de ateliers especializados na preparação do pergaminho para a escrita, aos quais os copistas comprariam os cadernos já prontos36. Em todo o caso, também não identifico, no geral, para o tópico em causa, modos de fazer que possa relacionar com a prática própria do scriptorium de corte. São dados que revelam antes, formas de fazer genéricas, típicas do século XV.
13Unicamente o trabalho feito sobre a página, acima de tudo no que toca à escrita e à ornamentação, revelou elementos codicológicos e artísticos que contribuíram, de um modo efetivo, para o objetivo central do estudo: provar ou afastar a hipótese de origem comum destes códices a partir da corte régia.
Estudo codicológico - Paleografia
14Introduzo agora, não os itens relacionados com a estruturação da página, que nesta fase apareceriam em primeiro lugar, mas, por motivos que têm que ver com a clareza da exposição, a análise paleográfica37. Esta abordagem permitiu determinar, com algum grau de certeza38, por meio de detidos exames comparativos, as variantes significativas entre os aspetos formais das letras e os estilos de escrita: a disposição das palavras na linha de texto, ou mesmo das letras dentro da palavra, entre outros maneirismos do copista, potenciais indicadores da autoria39. Envidei então a identificação das mãos responsáveis pelas transcrições. Acredito que para a coleção de códices em apreço, o mesmo copista manifesta-se em mais do que um códice, na totalidade ou apenas em parte do texto.
15Apurei que a letra da CFG e da CDDM foi feita pela mesma mão, o escrivão dos livros de D. Afonso V, Diogo Gonçalves40, atribuição que justificarei adiante (Fig. 1). Em ambos os códices, a letra é idêntica, no que se refere à angulosidade e ao módulo. Algumas diferenças pouco expressivas foram detetadas, relacionadas com o prolongamento de hastes e pernas em três letras: o «a», o «d» e o «r». O tipo e quantidade de variações, bem como as semelhanças notórias em outras letras-chave da análise paleográfica, como o «g» e o «s», levam-me a crer que se tratará da mão do mesmo copista após algum interregno, hipótese que está de acordo com as datações dos códices, separadas por cerca de dez anos.
Figura 1 – (de cima para baixo) Letra da CDDM e da CFG

16A mão que transcreveu o LCLE é a mesma que copiou o Livro dos Ofícios (LO) que está incluído no LVBM41. Em ambos os textos identifiquei a mão como sendo do escrivão régio João Gonçalves. Cheguei ao nome deste copista por meio da comparação da letra do LCLE, com a letra do códice alcobacense Alc. 45142. Este possui uma inscrição na margem de pé do fólio 56v que diz: «Ataa q(ui) fez o escpuam dEl R(ei)», que à época, segundo Sousa Viterbo, era João Gonçalves43. É bastante significativa a similitude da decoração que este copista introduz nas letras caligrafadas da primeira linha de texto, nos prolongamentos das pernas das letras da última linha de texto e nas primeiras letras de cada linha da primeira coluna de texto, do Alc. 451 e do LCLE. Mais do que os aspetos formais da letra que no cômputo geral é nitidamente mais angulosa e de traço mais fino no LCLE, do que no Alc. 451, são estes enfeites das letras que delatam o escrivão. Assim é-me permitido sustentar, com base nesta constatação, a ideia que tinha desde início: era o copista e não o iluminador quem adornava as letras do texto. Demais não há qualquer ligação entre a ornamentação das letras do texto e aquilo que se observa na iluminura. De acrescentar ainda que, apesar das mencionadas claras diferenças na letra destes dois códices (no Alc. 451 apenas do fólio 1r ao fólio 56v), sinalizei para o LCLE, no princípio das colunas de texto, quando se inicia um capítulo, ou mesmo a meio do texto, um tipo de letra, em termos formais e estilísticos, em tudo idêntica ao se vê no Alc. 451. Como se no LCLE, por qualquer motivo (à partida estético), o copista se tenha obrigado a executar uma letra com características ligeiramente diferentes da sua letra habitual e no decorrer da escrita, por momentos, se esquecesse dessa imposição e voltasse à sua maneira de escrever normal. Defendo, por isso, que para ambos, LCLE e Alc. 451, se trata da mão do escrivão régio João Gonçalves (Fig. 2). Por consequência, e atendendo uma vez mais, ao método comparativo acima citado será também ele, João Gonçalves, o copista do Livro dos Ofícios (LO) do Livro da Virtuosa Benfeitoria de Madrid (LVBM)44.
Figura 2 – (da direita para a esquerda) Texto do Alc. 451 e do LCLE. Veja-se a letra do princípio do título do capítulo e princípio do texto do LCLE e compare-se com o restante título do capítulo e texto do LCLE e com o texto do Alc. 451

17Atendendo aos critérios paleográficos já mencionados de módulo, angulosidade, e outros como o desenho das letras e a disposição das palavras na linha de texto, pude ainda concluir que a mão do copista 1 (não identificado) da CGEP é a mesma que escreveu o Livro da Virtuosa Benfeitoria (LVB), a primeira parte do LVBM. A mão que transcreveu a dedicatória que abre o Livro dos Ofícios (LO) do LVBM é a mesma que redigiu o LVBV. O escrivão régio João Gonçalves escreveu pelo menos, os títulos dos capítulos da história dos reis de Portugal de D. Pedro I até à regência do Infante D. Pedro, na CGEP45 (Fig. 3). Os manuscritos do grupo com os quais, ao nível da letra, não estabeleço qualquer ligação são a CGEL e a VFJC, em princípio o mais antigo e o mais recente códice do grupo.
Figura 3 – (de cima para baixo) Letra do LCLE e da CGEP

Estudo codicológico – Estruturação da página
18Na estruturação da página começo pelo conjunto de medidas e cálculos que arranjavam as áreas de um fólio, para que este estivesse pronto a receber o futuro conteúdo, que se dividia entre texto e imagem. É curioso notar (e por essa razão foi trocada a ordem dos pontos codicológicos, tendo começado pela paleografia) que os códices que partilharam o mesmo, ou os mesmos copistas, têm a projeção da página e sua estruturação pensadas e executadas de forma similar. Este dado representa, portanto, um forte indício de que esta operação, para este conjunto de códices, foi executada pelo copista. Este tópico incluiu os seguintes componentes: o número de colunas, o número de linhas, a altura e a largura do fólio, a altura da caixa de texto e a unidade de regramento (UR), que é a medida do espaço interlinear. Com base nestes dados encontro grandes proximidades entre os dois LVB e a CGEP, que partilharam dos mesmos copistas na totalidade ou em parte dos seus textos. Assinalo igualmente grandes parecenças entre a construção da página da CFG e da CDDM que acredito terem também comungado do mesmo copista, Diogo Gonçalves, escrivão dos livros do rei D. Afonso V. A VFJC, no que concerne à planificação da página, aproxima-se do mais tardio códice do grupo, a CDDM, embora tudo o que foi executado dentro dessa estrutura não tenha ligação com os demais códices do grupo (nomeadamente a letra e a técnica e o estilo da decoração), salvo o estilo de repertório decorativo escolhido. Por fim, denoto semelhanças significativas entre as estruturas das páginas da CGEL e do LCLE. Os cálculos que deram origem aos arranjos de página destes dois últimos códices são, de facto, muito próximos. Trata-se de dois códices de grandes dimensões. Com uma altura de fólio entre os 400mm e os 460mm (ou mais, pois foram aparados em época posterior) são os maiores códices do grupo. Terão sido assim pensados, por motivos que acaso se prendem com a importância dos seus textos. Um, uma crónica geral que narra a história de Espanha e de Portugal, e que foi a fonte primordial do croniciado régio encetado na primeira metade do século XV, e o outro, uma compilação, num só volume, das duas obras literárias da autoria do rei D. Duarte. Todavia, no que diz respeito às mãos que copiaram os seus textos, são a exceção à regra que se constatou até aqui. Embora possuam estruturas de página afins, os textos foram escritos por copista distintos.
19O material com o qual se traçaram as linhas de justificação e regramento apoiam a associação aferida no parágrafo anterior entre o LVBV e o LVBM, e entre a CGEL e o LCLE. Os primeiros dois demonstram uma prática própria dos séculos XIII e XIV: estão justificados e regrados a mina de chumbo, o que pode também apoiar a datação comummente aceite da década de 30 do século XV. O segundo par tem justificação e regramento a tinta violeta, consolidando uma apreciável conformidade em termos da aparência projetada, tanto para o livro, quanto para a página.
Estudo artístico – Ornamentação
20Por último, a ornamentação que corresponde ao já várias vezes mencionado estudo artístico. A par da letra, é talvez o elemento codicológico exibido nos fólios desta família de códices que facultou mais detalhes acerca dos modos de fazer primitivos. Dividi este item em ornamentação pequena, que é aquela que está relacionada com as rubricas: títulos de capítulos, reclamos, caldeirões, etc., e a ornamentação grande, que tem que ver com a iluminura propriamente dita. Esta matéria originou um grande número conclusões, das quais exporei apenas as principais.
21Em relação à ornamentação pequena, os remates dos títulos dos capítulos repetem-se em todos os códices, sendo que foi registado um número muito reduzido de variantes (Fig. 4). Verifico uma preferência inequívoca pelo traçado de linhas ondeadas, pelas duas linhas entrançadas e pelas sequências de pontos. As modificações introduzidas neste estilo padrão, conforme referido anteriormente, são escassas, surgindo de forma muito pontual, no total dos fólios dos oito códices.
Figura 4 – (de cima para baixo) Remates dos títulos dos capítulos da CGEL e da CDDM

22As correções ao texto, por parte dos copistas, são idênticas. Os métodos usados caracterizam-se por uma grande uniformidade. Consistem em emendas interlineares ou com remissão para a margem. A sinalética aplicada neste processo de correção, por remissão para a margem do fólio, é constante: um símbolo que aparenta um acento de circunflexo. As rasuras no texto foram feitas maioritariamente a preto e em menor quantidade a vermelho. Quando se procedia à raspagem de uma palavra errónea, ou se escrevia a passagem correta no dito espaço, ou se deixava o espaço em branco, seguindo o texto a partir dali, ou ainda se rasurava a preto o espaço raspado. Testemunhei ainda amiúde, a existência de espaços em branco a meio do texto, sem rasura ou raspagem. De salientar que os procedimentos descritos são uma constante para todos os códices estudados, não existindo em nenhum deles qualquer variante específica, situação que julgo dizer muito acerca de um modo comunitário de trabalho.
23Quanto aos caldeirões convém esclarecer em primeiro lugar que três dos códices não possuem esta marcação de parágrafo. São eles a CGEP, a VFJC e a CDDM. Curiosamente, e talvez, não casualmente, os códices que comungam desta condição são os dois que foram encomendados pelo Condestável D. Pedro, e que datam da primeira metade da década de 60 do século XV. O outro é a Crónica de D. Duarte de Meneses (CDDM), o códice mais tardio do grupo, de cerca de 1470. O ambiente no qual foram executados terá ditado, o desprezo pela marcação dos parágrafos recorrendo a caldeirões. Nos dois códices do Condestável, que embora em termos genéricos, como já foi visto, não têm grande relação entre si, quanto aos modos de fazer, este aspeto particular une-os. Ou se parte do princípio que se trata de uma simples coincidência, ou se arrisca em dizer que esta situação poderá ter resultado de uma exigência do encomendante, uma vez que, não só os fólios não apresentam caldeirões, como nem tão-pouco foram deixados os espaços para a sua inserção. Isto significa que antes de começarem a escrever o texto, os copistas já sabiam que naqueles textos não se introduziriam estas marcas de pontuação. A CDDM, por seu turno, mostra um único espaço para a inserção de caldeirões, provido da sinalética habitual: dois traços paralelos e oblíquos à direita, no fólio 2r. A situação será idêntica à que se deduziu para a CGEP e para a VFJC, pois afora o reto deste segundo fólio – que poderá ter sido um engano do copista ao iniciar o texto – não se vislumbram, em todo o códice, quaisquer outros espaços para caldeirões, nem qualquer caldeirão desenhado. O LVBV constitui outra variante importante, porque embora possua caldeirões, estes não foram incluídos no texto após a sua redação, como era prática corrente, mas antes no decurso da escrita, pela mão do próprio copista e desenhados com a mesma tinta utilizada para escrever o texto. Restam então, a CGEL, o LCLE, o LVBM e a CFG. No interior de cada um destes códices, e numa perspetiva individual, constata-se uma continuidade técnica e estilística na realização dos caldeirões, com exceção para o LCLE. Neste códice denota-se, em consonância com a análise codicológica realizada em 2012 por Susana Pedro46, que existe diferença de cor e forma entre aquilo se observa no primeiro caderno e o que se vê daí em diante, em todos os outros cadernos até ao final da obra. Porém, consegue-se perceber uma afinidade significativa, em termos formais, entre os caldeirões do caderno inicial do LCLE, e os caldeirões do LO do LVBM, da CFG e da CGEL (Fig. 5). Outra situação comum a todos estes quatro códices com caldeirões, é a alternância errónea entre caldeirões vermelhos e azuis, afora o LVB do LVBM, onde não se verifica qualquer alternância, pois todos os caldeirões foram pintados a azul. Estes erros foram provocados, para a CGEL, o LCLE, o LO do LVBM e a CFG, pela viragem do fólio (de reto para verso), mas também por distrações na passagem entre verso e reto – fólios que se encontram lado-a-lado perante o observador –, distrações no mesmo fólio e até na mesma coluna de texto. Sobretudo estes últimos três exemplos de erro são tão flagrantes que penso estarmos perante uma de duas situações, ou até as duas em simultâneo: a introdução de caldeirões ser um preceito redaccional cuja aplicação não era rígida, ou uma atuação propositada do copista/rubricador que assim deixava uma marca distintiva, a sua marca distintiva ou do seu scriptorium. Por outro lado, esta atuação demonstra que esta tarefa se empreenderia fólio a fólio sobre os cadernos já montados. Isto diz-nos, por consequência, que o corte e a montagem provisória dos cadernos, antecedia o momento de cópia do texto, quer fosse esse corte e montagem executado na corte ou fora (ver nota de rodapé nº 35), e isto para os quatro códices: CGEL, LCLE, LVBM e CFG.
Figura 5 – (da esquerda para a direita) Caldeirões do LCLE e da CGEL

24O estilo das letras caligrafadas que ornam as primeiras linhas de texto, é equivalente para a maioria dos códices onde este tipo de letras se encontra: CGEL, LCLE (ou mais precisamente LC, pois na parte correspondente ao LE não existem letras caligrafadas), LVBM, CDDM, CFG (apenas na Tábua dos capítulos e na carta de Gomes Eanes de Zurara a D. Afonso V que antecede o prólogo). Não foram desenhadas letras caligrafadas no LVBV e na VFJC. É notável porém, uma maior proximidade, no que respeita à técnica, entre o LC, o LO (o Livro dos Ofícios, a segunda parte do LVBM), a CDDM e a CFG, o que permite, logo em primeira análise identificar um modelo que é reutilizado sem alterações de maior ao longo do tempo (atendendo ao facto de entre estes códices existir um intervalo temporal de 30 a 40 anos), o que por si só, remete prontamente para a ideia de um modus operandi próprio de um espaço comum, no qual se terão produzido todos estes códices. Admitindo o que foi proposto precedentemente em relação às mãos responsáveis pelas transcrições dos textos e partindo do princípio (decorrente das análises paleográficas e artísticas levadas a cabo neste conjunto de códices) que quem caligrafa as letras do texto é o copista e não o iluminador, (não obstante por vezes poderem ser a mesma pessoa), as conclusões retiradas do exame às letras caligrafadas vêm, por um lado, corroborar as teses defendidas quanto à autoria das transcrições, e por outro sublinhar, uma vez mais, a subsistência de modelos e a continuidade nos modos de fazer, ao longo das várias décadas. Um dos elementos que atesta essa repetência na maneira como operavam estes artesãos é o traço que parte paralelamente à haste da letra, sobretudo no caso do «d», e que depois segue horizontalmente na direção do limite lateral do fólio (provido ou não de decoração). Isto é visível na CGEL, no LC, no LO, na CDDM e na CFG. Este componente decorativo que remata o ornato caligráfico, se observado ao pormenor, pode configurar, por assim dizer, uma assinatura: a assinatura do copista. Tais firmas que expõem ao investigador os trejeitos particulares da mão de certo copista, podem também ser encontradas nos remates da chamada ornamentação grande executada pelo iluminador. Nesta altura convém salientar que existindo pormenores artísticos que são uma marca inequívoca do seu autor e se esta marca está presente quer no texto, quer na iluminura, ela provavelmente autorizará, então, inferir se copista e iluminador foram para determinado códice, a mesma pessoa. Digo «provavelmente» pois pode dar-se o caso de essa relação, a existir, não ser de tão imediata confirmação, em situações em que o artista não desenvolvia nos dois papéis, os mesmos motivos decorativos, ou em que se retraía nos remates/assinaturas dalgum dos dois tipos de decoração (grande e pequena), factos que podem impossibilitar o cotejo. Ao referir-me aos remates da ornamentação grande, ou seja, da iluminura, reporto-me ao(s) fecho(s) das iniciais ornadas que têm decoração que se estende pela margem ou intercolúnio e cujos adornos alternam frequentemente, no intervalo temporal considerado, entre filigrana e prolongamentos vegetalistas. Os remates da filigrana são as conhecidas terminações em chicote47. A decoração vegetalista, por seu turno, exibe nos seus limites pequenos remates florais a preto. Da análise individual e comparativa realizada a estes constituintes da iluminura pude concluir que o iluminador 3 da CGEL – por mim assim definido na tese de mestrado, onde identifiquei três mãos por detrás da iluminura deste códice48 –, é o autor da iluminura do LCLE (Fig. 6 e 7) O iluminador 3 da CGEL é também o autor da iluminura do LO do LVBM49. Um seguidor do iluminador 3 da CGEL é o autor da filigrana da carta de Zurara a D. Afonso V da CFG e da decoração zoomórfica e antropomórfica das hastes das letras da última linha de texto da CFG e da CDDM. Aventarei a identidade deste iluminador seguidor do iluminador 3 da CGEL, mais à frente nas conclusões, com base no conjeturado anteriormente (páginas 18 e 19) neste artigo sobre os métodos de análise artística que permitem destrinçar possíveis ligações entre copista e iluminador. O iluminador 1 da CGEL é o autor das iniciais filigranadas do LVBV (Fig. 8 e 9) e das iniciais filigranadas do LVB, a primeira parte do LVBM50. Neste caso foram comparadas as terminações em chicote, entre outros pormenores presentes nas ditas terminações.
Figura 6 - Pormenor da iluminura do LCLE

Figura 7 - Pormenores da iluminura da CGEL

Figura 8 - Pormenor da iluminura da CGEL

Figura 9 - Pormenores da iluminura do LVBV

25É notória, também, a coincidência de repertórios e componentes decorativos neste grupo de manuscritos (Fig. 10). Os fundamentais são a predileção, nos fólios de abertura, pelas cercaduras vegetalistas com inicial figurada/historiada no início do prólogo, e com armaria ao centro da margem de pé. No interior dos manuscritos, elegeu-se insistentemente as iniciais a cores e ouro e as iniciais a vermelho e azul, com ou sem filigrana. Esta realidade ornamental indicia que os programas decorativos destes manuscritos foram influenciados, naturalmente pelas tendências da época, mas paralelamente terão exercido influência, uns sobre os outros, se se pensar que partilharam o mesmo ambiente de criação, e mesmo de fruição51.
Figura 10 - (da direita para a esquerda) Fólios do prólogo da CDDM, da CGEP, da VFJC e da CFG

Primeiras Conclusões
26Atendendo às informações mais pertinentes obtidas a partir do estudo codicológico e artístico comparativo que englobou, a escrita, a estruturação da página, e a ornamentação, concluo liminarmente que se constatou a participação dos mesmos copistas e iluminadores no grupo de códices composto por: CGEL, LCLE, LVBV e LVBM, que por coincidência são os códices que compõem o primeiro subgrupo (assim definido de início com base em estudos de outros autores), cronologicamente situado entre a década de 30 e a década de 50. Quanto aos códices das décadas de 60 e 70, é possível afirmar que a CGEP terá dividido com os seus antecessores (os códices de 1430 a 1450) um copista e um rubricador. A CFG e a CDDM comungaram do mesmo copista e do mesmo iluminador, responsável pela filigrana e pela decoração das hastes das letras da última linha de texto, que são reproduções fiéis dos mesmos elementos decorativos (filigrana e ornamentação antropomórfica e zoomórfica nos prolongamentos das hastes das letras ou nas hastes dos ornatos filigranados) desenvolvidos pelo denominado iluminador 3, ativo na primeira metade do século. As cabeças de perfil desenhadas por este iluminador 3 no LCLE (ca. 1440-1450), bem como o seu estilo inconfundível de rendilhado da filigrana, que se vê igualmente no LO, do LVBM (ca. 1430), é cuidadosamente replicado pelo iluminador da CFG e da CDDM.
27O códice que mais se afasta de todos os outros, neste conjunto de oito códices de corte, no que respeita à letra, à página e à ornamentação – salvo o estilo de programa decorativo que obedece ao repertório padrão – é a VFJC. Este códice foi encomendado pelo Condestável D. Pedro e terá sido executado na corte portuguesa, tendo sido terminado no ano de 146452. Terá dividido com os outros sete códices o local de origem, embora por alguma razão, tenham nele trabalhado outros artistas. O motivo por detrás da escolha de uma equipa diferente de artesãos, poderá residir na simples vontade do Condestável, ou no facto de os copistas e iluminadores do rei estarem naquela altura ocupados com outros trabalhos, designadamente com outra encomenda do Condestável, a CGEP – um texto muito extenso, ao qual se acrescentaram ainda novos episódios da história dos reis de Portugal, prolongando o relato até ao tempo do Condestável (o texto fonte terminava no reinado de D. Afonso IV). Por tal, terá contado com a participação de três copistas na sua transcrição53 – que terá sido concluída entre 1460 e 146454, ou mesmo a CFG, mandada redigir por D. Afonso V, e cuja cópia de aparato, da Biblioteca Nacional de Paris, foi também terminada nos primeiros anos de 146055.
28Assim, será lícito afirmar que existiu, pelo menos, um grupo de copistas e iluminadores ao qual era por regra atribuída a execução dos códices iluminados, encomendados pelos senhores da casa de Avis, e que terá sofrido algumas alterações na sua constituição oficial com a subida ao trono de D. Afonso V. Uma das provas dessas modificações é o surgimento de Diogo Gonçalves como escrivão dos livros do rei, talvez em substituição de João Gonçalves, tão presente nas obras da primeira metade do século XV. Diogo Gonçalves deixou a sua assinatura num dos fólios da CDDM. Quando identifiquei como sendo da mesma mão a letra da CDDM e da CFG afirmei, remetendo para essa inscrição, que os textos de ambos os códices haviam sido copiados por este escrivão. Defendi igualmente atrás que quem decorava as letras do texto era o copista e não o iluminador. Assim sendo a letra do texto, as letras caligrafadas e as figuras antropomórficas e zoomórficas de perfil que adornam as extremidades das hastes das letras, na CDDM e na CFG foram delineadas pela mesma pessoa: Diogo Gonçalves. O mesmo género de desenho, em termos técnicos e estilísticos, encontra-se na filigrana da inicial do reto do primeiro fólio da carta de Zurara a D. Afonso V. Creio, portanto, que o copista da CFG é também o iluminador da filigrana deste códice. Por outro lado, o estilo destas figuras que, na verdade, são cabeças de perfil, é, como já tive ocasião de referir, análogo ao estilo das figuras pintadas pelo iluminador 3 da CGEL, no LCLE. O rendilhado da filigrana é igualmente idêntico entre a CFG e o LCLE. Logo, Diogo Gonçalves é o precedentemente citado iluminador, ou como se sabe agora, copista/iluminador que replicou (embora sejam simultaneamente claras as diferenças entre os maneirismos de cada um, as ditas assinaturas do copista e/ou iluminador), a filigrana e respetivos remates antropomórficos do iluminador 3 da CGEL, que é também o iluminador do LCLE e do LO, do LVBM. Este iluminador 3 poderá, entretanto, ter deixado de trabalhar na corte, pois aparentemente não tem qualquer participação nos códices da segunda metade do século, onde se nota um decréscimo acentuado na aplicação de filigrana, sendo as aparições deste tipo decorativo quase inexistente. Mais uma vez se reforça a ideia de mudança ao nível dos recursos humanos, mas também ao nível do gosto na corte régia de Afonso V.
29A historiografia diz-nos que foi no reinado deste rei que se estabeleceu na corte o scriptorium e a livraria. Sousa Viterbo cintando Rui de Pina na sua Chronica do Senhor Rey D. Affonso V transcreve a seguinte passagem: «(…) que elle foy o primeiro Rey destes Reynos que ajuntou boõs livros e fez livraria em seus paços.»56. Viterbo era da opinião que não se deveria interpretar literalmente esta afirmação do cronista e considerava que D. Afonso V teria apenas incrementado algo que já vinha do tempo de seu pai e de seu avô. Mas mesmo que a livraria real se tenha instituído como tal, só no reinado deste monarca, quanto ao local ou locais onde se produziam os livros encomendados pelos membros da família real mantém-se a ausência de informação. A estas áreas do Paço do Castelo, admitindo ou não pré-existências, poderá dizer-se que no mínimo, o rei Africano quis introduzir-lhes transformações, que terão sido em certa medida profundas, pois foi, por exemplo, encomendado mobiliário para a livraria57. É por isso natural que tenha também implementado alterações na composição da equipa de escribas, no seguimento da reestruturação da máquina do Estado do pós-Alfarrobeira. A presença assídua de João Gonçalves na redação dos textos dos códices da primeira metade do século XV (reinado de D. Duarte e regência do Infante D. Pedro) é descontinuada após 1450, passando as obras encomendadas pelo monarca a ser redigidas, por outros escribas, como Diogo Gonçalves. Talvez João Gonçalves tivesse atingido uma idade que já não lhe permitia ver-se envolvido em trabalhos de escrita tão exigentes, como os que assumira noutros tempos ou que, apesar do perdão concedido por D. Afonso V, este não mais lhe tenha restituído o protagonismo que outrora detivera enquanto escrivão régio58.
30O exame à decoração pequena demonstrou modos de fazer idênticos, no que se refere às rubricas e às correções ao texto. Estas mantiveram-se inalteradas no decurso dos dois períodos (30-50 e 60-70) o que remete para uma continuidade nos métodos de trabalho desenvolvidos, ainda que o(s) local(ais) específico(s) onde, dentro da corte, se desenrolavam estas atividades possam ter sido diferentes, entre as duas épocas. Será necessário nesta altura questionar que espaço de redação, de cópia, de iluminação e até eventualmente de encadernação de códices seria este, dada a mobilidade da corte régia ainda no final da Idade Média, e que relações estabeleceria, ou não, com a Chancelaria régia59. Desconheço qual a localização e quais as dinâmicas geradas entre ambos os serviços no interior da corte. Ignoro qual a relação que os escribas dos livros do rei mantinham com os escribas da Chancelaria, ou mesmo com os cronistas. Acumulando estes últimos, a função de Guarda-mor da Torre do Tombo haveria, nos Paços do Castelo, câmaras distintas para o cronista e seus copistas e para os escrivães da Chancelaria? Uma interessante notícia, proveniente da Chancelaria de D. Afonso V, foi transcrita por Sousa Viterbo:
E vynte e h~ua libras cynquo soldos por cem duzyas de purgamynhos respançados que emtregou a Gomez Eanes d Azurala, nosso criado, comendador d Alcãiz, autor dos feytos notauees de nossos regnos, pera os ter em guarda na nossa lyurarya, que está em a çidade de Lixbõa, de que ell tem cargo per aluará de mandado.60.
Diz Viterbo que este trecho corresponde a uma carta de quitação, do ano de 1450 e que este pergaminho havia sido importado da Flandres61. O primeiro comentário que esta passagem suscita é que o pergaminho mencionado vinha já preparado para a escrita, condição que se deduz pelo adjetivo «respançados» ou raspados, que remete para a raspagem com uma lâmina curva chamada lunarium ou lunellum, que se usava na fase final do tratamento, depois do pergaminho já ter sido seco e esticado na moldura de madeira. No entanto, nada indica que já viesse cortado e regrado. Não seria, portanto, esse o caso. Dizer-se que deveriam ser guardados após a receção, sem mais, também apoia a ideia de este ser um pergaminho tratado. O local onde permaneceriam conduz a outra consideração. Em princípio, se os pergaminhos para a escrita eram armazenados na livraria, significa que o espaço destinado à cópia dos livros, onde se lhes daria uso, ficaria por certo nas proximidades, podendo, quiçá, comunicar com a própria livraria ou até com ela dividir a mesma área. Por outro lado, foi o cronista do rei que recebeu a encomenda e que ficou encarregue de a guardar, em sítio que ficasse debaixo da sua supervisão ou do controlo de pessoal que consigo trabalhava – a livraria – dado o custo elevado deste material. Recebeu Zurara uma grande quantidade de pergaminhos: 1200. Não é dito de que animal(ais) provinham, mas no mínimo dariam um bifólio por pele (para códices de maiores dimensões, como as crónicas), o que perfaz o número de 2400 fólios, que permitiria por hipótese realizar, 8 códices de 300 fólios. Em 1450, já com a livraria em pleno funcionamento preparava-se então uma atarefada produção livresca que veio, na realidade, a constatar-se. São disso testemunho vivo os códices em estudo que constituem certamente apenas uma amostra do que se terá produzido em tempo de D. Afonso V.
31Tornando ao carácter móvel da corte portuguesa do século XV, pode-se indagar em que medida essa itinerância afetaria a produção de códices na corte. Que tipo de mobilidade poderia ou não ser exigida aos escrivães dos livros do rei? Quem desses escrivães acompanhava a corte, quando e porquê? Esta mobilidade era solicitada aos funcionários da chancelaria por motivos óbvios, pois a administração do reino não era interrompida pela movimentação da corte, antes a acompanhava, era justamente parte fundamental da sua razão de ser. Mas seria também pedido aos escrivães dos livros do rei que circulassem com o rei pelo reino? Parece-me que quer os cronistas, quer os escribas dos livros do rei não teriam grande necessidade de acompanhar a corte nas suas deslocações pelo país, primeiro porque o trabalho do cronista estava muito ligado à pesquisa e leitura das escrituras do Tombo – salvo saídas a campo para recolher testemunhos reais, mas que seriam deslocações privadas, como terá feito Fernão Lopes na cidade de Lisboa, ou como fez Gomes Eanes de Zurara à África setentrional62–, e em segundo lugar, porque mesmo para outros textos, como as traduções ou a transcrição de escritos particulares, as orientações e o acompanhamento requeridos por parte dos autores e/ou encomendantes acorreria com frequência, dado que os seus itinerários os localizam em Lisboa, ou nas imediações, a cada passo63. Por tudo isto penso que não se justificaria a ida dos cronistas e dos seus escrivães em comitivas régias pelo país. A sua atividade era certamente definida pela permanência num espaço pertencente à administração central, situado em Lisboa, muito provavelmente nos Paços do Castelo.
32Porém, não se pode desconsiderar que na primeira metade do século XV se vivia um momento singular em Portugal: a corte régia era uma «corte plural». Esta qualidade especial devia-se ao peso e ao relevo que as cortes principescas, sobretudo, de as de D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique detinham designadamente no quadro do poder jurídico-administrativo do reino64. As redes clientelares que gravitavam em torno da corte régia, Juvenesdesenvolveram-se identicamente nas cortes dos Infantes, espalhando-se por todas elas membros das mesmas famílias e exercendo o mesmo indivíduo, mais do que um cargo, em mais do que uma destas cortes. Neste contexto é conveniente perguntar se a produção de manuscritos iluminados decorreria em exclusivo na corte do rei, ou se os códices que fossem encomenda direta de príncipes e de princesas (alguns sendo compostos inclusivamente pelos próprios) seriam realizados nas casas desses senhores ou dessas damas. Na sua casa, o Infante D. Duarte dispunha do serviço particular do escrivão da puridade, Nuno Martins da Silveira e de vários escrivães da Câmara, entre eles, Rui Galvão e João Vasques. Ainda em tempo de D. João I, os servidores da casa do Infante detinham uma importância sem precedentes junto da corte régia65. Perante este cenário penso que seja aceitável pensar que alguns destes códices tivessem sido produzidos, nas cortes dos príncipes avisenses, executados, ou por pessoal exclusivo de suas casas ou por funcionários que poderiam deambular pelos vários polos desta corte quadricéfala. O modo de produção uniforme, que se comprovou ter dado origem aos oito códices iluminados, não fica de forma alguma comprometida, uma vez que o trânsito dos mesmos oficiais pelas várias cortes e a acumulação de diferentes cargos pela mesma pessoa, imprime a esta realidade cortesã uma imagem de comunhão, de trocas, de fortes e permanentes ligações. Por conseguinte, ainda que geograficamente a elaboração dos códices tenha acontecido em sítios distintos, a proximidade das relações familiares e profissionais do oficialato, neste caso, dos escrivães e dos iluminadores, não contraria as conclusões do estudo codicológico e artístico comparativo, que aponta para um modus operandi comum.
33Com a subida ao trono de D. Afonso V, instaurou-se uma nova centralidade na corte régia, que recuperou para si a exclusividade na distribuição de dignidades e privilégios e onde se passou então a concentrar a mole cortesã66. Ao estabelecer uma biblioteca e um scriptorium régios, D. Afonso V quis também centralizar a produção e a conservação livresca da casa real portuguesa. Esta evidência histórica assevera que os códices do segundo subgrupo tiveram origem do Paço real lisbonense. E quanto aos códices do primeiro subgrupo? Estes serão os únicos, em relação aos quais se pode colocar o problema do local de produção, levantado pela dita configuração «plural» da corte. Todavia, a circunstância dos códices mais antigos terem sido terminados no decénio de 30, quando D. Duarte já era rei, e de grande parte deles serem crónicas, localizará, sem grande dúvida, a sua feitura também na corte régia. A CGEL, cuja cópia terá começado ainda nos anos 20, tem a sua origem associada, como foi visto no princípio deste artigo, ao croniciado régio, logo naturalmente ao Paço do Castelo de Lisboa. As duas luxuosas cópias do Livro da Virtuosa Benfeitoria (LVBV e LVBM), redigido pelo Infante D. Pedro e pelo seu confessor, Frei João Verba foram começadas depois de 1428, quando este Infante regressou do périplo pela Europa. Sendo um dos dois códices destinado à biblioteca do rei, D. Duarte (o de Viseu) e o outro à biblioteca do Infante (o de Madrid), e tendo sido ambos copiados em simultâneo – como acreditava Adelino Calado, resultado do estudo filológico que realizou ao texto da Virtuosa Benfeitoria, teoria que o corrente estudo codicológico e artístico vem fortalecer – é igualmente crível que tenham sido os dois elaborados em ambiente cortesão. A realização do LCLE, tão-pouco gera qualquer objeção a que se tenha desenrolado no Paço da Alcáçova. A transcrição foi iniciada, ou logo após a morte de D. Duarte, ou durante a regência do Infante D. Pedro, ou depois de D. Afonso V ter subido ao trono. A posição social do encomendante (D. Leonor, D. Pedro ou D. Afonso V), mas, acima de tudo, o peso literário e simbólico do texto, vincularão a génese deste códice à corte régia. Fica assim demonstrado, através de uma conjunção entre factos históricos e as aferições extraídas da presente investigação, que estes códices compartilharam um mesmo local de produção e que esse local foi decerto a estrutura administrativa central da corte dos reis de Portugal, situada em Lisboa, nos Paços do Castelo. Como se disporiam o(s) espaço(s) destinados à redação e iluminação de livros dentro desse edificado é uma pergunta de difícil resposta, pois dessa construção quatrocentista quase nada restou depois do terramoto de 175567.
34Retornando ao ponto em que perguntava qual seria a relação entre os escrivães da Chancelaria e os escrivães dos livros do rei, em termos das áreas que frequentavam no paço, no exercício das suas funções, não é possível, para já, chegar a nenhuma conclusão. Mas no que se refere à natureza das suas profissões e à forma como elas conviviam, talvez seja possível esboçar algo. Rita Costa Gomes ao caracterizar a corte dos reis de Portugal durante o século XV, diz o seguinte: «Não há, nestes séculos [XIV e XV], departamento e corpo de serviço na casa do rei e da rainha, onde não prolifere o escrivão, o vedor (…)» (GOMES, 1995, p. 135). Não havia, portanto, funcionalismo na corte que dispensasse o assentamento de todo e qualquer acontecimento, de toda e qualquer ação. E na multiplicidade de cargos de escrivão (puridade, câmara, fazenda, sisas, contos, malfeitorias, etc, etc) circulavam os seus oficiais, experimentando também com frequência, outros lugares fora desse nicho profissional. Por exemplo, Álvaro Gonçalves da Maia desempenhou funções de escrivão da Câmara entre 1407 e 1414, mas participou também em várias missões diplomáticas a Castela e Aragão e foi posteriormente vedor da Fazenda, pelo menos durante o reinado de D. Duarte68. A mutabilidade da ação dos oficiais de corte, e em particular dos escrivães, não estaria relacionada com o carácter liberal das suas profissões – conforme cheguei a defender por paralelo estabelecido com a atividade dos escrivães de ateliers laicos exteriores à corte, que poderiam ser chamados ao serviço do rei, mas cuja atividade em Portugal julgo não estar documentada –, antes com a circulação destes profissionais no interior da corte, ou até em meios com ela relacionados. João Gonçalves, para além de escrivão dos livros do rei, participou também ativamente na redação de documentos de chancelaria69. As suas idas ao scriptorium de Alcobaça, aí exercendo funções de copista70, não terão que ver com uma posição de profissional liberal, antes com o cumprimento de ordens emanadas do monarca. A profissão de escrivão, e talvez especialmente a de escrivão dos livros do rei, era tal como as profissões de pintor ou de iluminador, «ofícios como quaisquer outros e que dentro da corte viviam como dependentes do monarca»71, repartindo, entre outros, com os escrivães da Chancelaria a porta giratória do oficialato cortesão.
35Foram a segunda redação da Crónica Geral de Espanha de 1344 e a redação da Crónica de Portugal de 1419 que marcaram o início de uma movimentação frenética que, entre o final do século XIV e princípio do século XV, se gerou em torno do livro, e em particular do livro iluminado, símbolo de luxo, erudição e poder, no seio de uma jovem dinastia que carecia de afirmação e de legitimação, dentro e fora do reino de Portugal. O recuperar da história dos reis de Portugal onde a nova casa reinante de Avis foi buscar a validação do seu poder encetou uma nova fase na vida cultural portuguesa que se abriu à corrente humanista que se propagava pela Europa. Assistiu-se, então, entre o final de Trezentos e os primeiros anos de Quatrocentos, a par do resgate da história de Portugal e dos feitos dos seus líderes máximos, os reis, um crescente e entusiasmante interesse pelo livro, pela sua leitura, tradução, compra, encomenda, composição e conceção. Teve lugar na corte régia, uma atividade literária sem precedentes secundada pela manufatura de códices iluminados. Participando comunitariamente neste processo produtivo, conforme tentei demonstrar neste artigo, esteve um grupo de copistas e iluminadores, que integravam a máquina do estado. Dividiam entre si a realização das obras que lhes eram solicitadas e colocavam em prática métodos de trabalho normalizados, próprios de um scriptorium, ainda que este, enquanto espaço físico destinado exclusivamente à redação, transcrição e iluminação de códices possa só ter sido estabelecido em tempo de Afonso V.
Bibliographie
ALBUQUERQUE, Luís de (dir.); SOARES, Torquato de Sousa (coment. e transc.) (1989) – Crónica dos feitos da Guiné / Gomes Eanes de Zurara. Lisboa: Alfa.
ALMEIDA, Manuel L. (introd. e rev.) (1981), Obras dos príncipes de Avis (…). Porto: Lello & Irmão.
BASTO, A. de Magalhães (1957) – A Crónica de 1419 e a historiografia medieval peninsular. Porto.
BISCHOFF, Bernhard (1985) – Paléographie de l’Antiquité Romaine et du Moyen Âge occidental. Paris: Picard.
CALADO, Adelino A. (ed. crítica, introd. e notas) (1998) – Crónica de Portugal de 1419. Aveiro. 1ª edição.
CALADO, Adelino A. (ed. crítica, introd. e notas) (1994) – Livro da vertuosa benfeytoria / Infante D. Pedro / [colab.] Frei João Verba. Coimbra: Universidade de Coimbra.
CALADO, Adelino A. (ed. crítica) – Trautado da Vida e Feitos do Mui Venturoso Senhor Ifante Dom Fernando / Frei João Álvares. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis.
CASTRO, Maria Helena Lopes de (1995) – Leal Conselheiro. Itinerário do manuscrito. Penélope. Nº 16.
CATALÁN, Diego; ANDRÉS, Maria Soledad (1971) – Crónica General de España de 1344, preparada por Diego Catalán y Maria Soledad Andrés. Madrid: Gredos.
CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2 edição.
CLEMENS, Raymond (2007), Introduction to manuscript studies. London: Cornell University Press.
GILISSEN, Léon (1977) – Prolégomènes à la Codicologie. Gand: Éds. Scientifique. Storky-Scientia. S.P.R.L.
GOMES, Rita Costa (1995) – A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média. Lisboa: Difel.
DANTAS, Júlio (1921) – Os livros em Portugal na Idade Média. A livraria do Infante Santo. Anais das Bibliotecas e Arquivos. Vol. II, nº 6, Abr.-Jun.
D’AZEVEDO, Pedro A.; BAIÃO, António (1950) – O Archivo da Torre do Tombo. Sua história, corpos que o compõem e organização. Lisboa.
DIAS, Isabel (1997) – A arte de ser bom cavaleiro. Lisboa: Estampa.
DIAS, Isabel de Barros (2003) – Metamorfoses de Babel. A Historiografia Ibérica (Sécs. XIII-XIV): Construções e Estratégias Textuais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
DIAS, João J. Alves (ed. Diplomática) (1982) – Livro dos Conselhos de el-rei D. Duarte – Livro da Cartuxa. Lisboa: Estampa.
DINIS, António Dias (1949) – Capítulo inédito da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses. Coim
DINIS, A. J. Dias – Em torno do testamento do Infante Santo. Ultramar – Revista da Comunidade Portuguesa e da Actualidade Ultramarina Internacional. Lisboa. Ano X, nº 40, vol. X, nº 4, 2º trimestre.
DIONÍSIO, João; NOGUEIRA, Bernardo de Sá (2007) – Sobre a datação do manuscrito P do Leal Conselheiro, de D. Duarte: a fórmula que Deus perdoe. Ehumanista. Vol. 8.
FERREIRA, Ana Cristina (2012) – Análise paleográfica de uma escrita de Chancelaria Régia: a letra joanina, 1370-1420. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dissertação de mestrado.
FIGUEIREDO, Albano (2005) – A crónica medieval portuguesa: génese e evolução de um género (Sécs. XIV-XV). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tese de doutoramento.
FOURNIER, António (1996) – A primeira parte da Crónica Geral de Espanha de 1344: o texto e sua construção. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Dissertação de mestrado.
FREITAS, Judite Gonçalves de (1999) - «Teemos por bem e mandamos»: a burocracia régia e os seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460). Porto: Universidade do Porto. Tese de doutoramento em História da Idade Média, Vol. III.
GOMES, Rita Costa (Ed.) (2017) – A Portuguese Abbot in Renaissance Florence: the letter collection of Gomes Eanes (1414-1463). Firenze: Leo S. Olschki Editore.
HOMEM, Armando Luís de Carvalho (1990) – O Desembargo Régio (1320-1433). Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de História da Universidade do Porto.
LEITE, Duarte (1941) – Àcerca da "Cronica dos feitos de Guinee". Lisboa: Bertrand.
LEMAIRE, Jacques (1989) – Introduction à la Codicologie. Louvain-La-Neuve: Institut d'Études Médiévales de l'Université Catholique de Louvain.
LOPES, Paulo Catarino; BARREIRA, Catarina Fernandes – Entre a corte e a normativa cisterciense: o Mosteiro de Alcobaça ao tempo do reformador D. Estevão de Aguiar (1431 – 1446). No prelo.
MARKL, Dagoberto (1988) – O retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa e os documentos. Lisboa: Caminho.
MATEUS, Maria Helena M. (coment.) (2010) – Vida e feitos de Júlio César. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2ª ed.
MOREIRA, Filipe Alves (2013) – A Crónica de Portugal de 1419: fontes, estratégias e posteridade, Lisboa: Fundação Calouste de Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
MOREIRA, Filipe Alves (2014) – A Historiografia portuguesa anterior ao Conde de Barcelos. Pombalina. Coimbra: University Press.
MOREIRA, Filipe Alves (2018) – Fr. Gil de Tavira e a datação do manuscrito do Leal Conselheiro de D. Duarte. Mátria Digital. Nº 6.
MORENO, Humberto Baquero (pref., comp. e notas) (1976) – Itinerários de El-Rei D. Duarte: 1433-1438. Lisboa: Academia Portuguesa de História.
MORENO, Humberto Baquero (1988) – Os Itinerários de El-Rei Dom João I (1384-1433). Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1ª ed..
MORENO, Humberto Baquero (1968) – Os Itinerários do Infante D. Pedro (1438-1448). Lourenço Marques: Revista Ciências do Homem.
MUZERELLE, Denis (2008) – Dating Manuscripts: What is at stake in the steps usually (but infrequently) taken. Journal of Early Book Society for the study of Manuscripts and Printing History. Vol. 11.
NASCIMENTO, Aires A. do; DIOGO, António Dias (1984) – Encadernação portuguesa medieval: Alçobaça. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
NASCIMENTO, Aires A. do (2012) – Ler contra o tempo: condições dos textos na cultura portuguesa (recolha de estudos em Hora de Vésperas). Lisboa: Centro de Estudos Clássicos. Vol. 1.
NASCIMENTO, Aires A. do (2003) – Nota mínima a “Vida e feitos de Júlio César: a questão da origem do manuscrito”. Razões e Emoção – Miscelânea de estudos em homenagem a Maria Helena Mira Mateus. Lisboa. Vol. II.
PEDRO, Susana Tavares (2012) – Apontamentos para uma descrição codicológica do códice BnF, Portugais 5. eHumanista. Volume 22.
PEIXEIRO, Horácio Augusto, “A iluminura portuguesa no século XV”. In AFONSO, Luís Urbano; PINTO, Paulo Mendes (org.) (2014) – O livro e as interações culturais judaico-cristãs em Portugal no final da Idade Média. Lisboa: Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pp. 152 e seguintes.
PEIXEIRO, Horácio Augusto (2009), Imagem e Tempo: Representações do poder na Crónica Geral de Espanha. Revista de História da Arte. Lisboa. Nº 7.
PEIXEIRO, Horácio (1986) – Missais iluminados dos séculos XIV-XV: contribuição para o estudo da iluminura em Portugal. Lisboa. Tese de mestrado em História da Arte.
PEREIRA, M. E. (1918) – Livro da Montaria, feito por D. João I, Rei de Portugal, publicado por ordem da Academia das Sciências de Lisboa. Coimbra: Imprensa da Universidade.
PIMPÃO, Álvaro da Costa (1939) – A “Cronica dos feitos de Guinee” de Gomes Eanes de Zurara e o Manuscrito do Conde d’Estrées: Tentativa de Revisão Crítica. Lisboa.
REI, António Botas (2007) – O louvor da Hispânia na cultura letrada peninsular medieval – das suas origens discursivas ao apartado geográfico da Crónica de 1344. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tese de doutoramento em História Cultural e das Mentalidades Medievais.
RUIZ, Elisa (1998) – Manual de Codicologia. Madrid: Fund. German Sanchez Ruiperez.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo (1972) – A historiografia portuguesa: doutrina e crítica. Lisboa: Verbo. I e II vols..
SILVA, José Custódio Vieira da (2002) – Paços Medievais Portugueses. Lisboa: IPPAR. 2ª ed. rev. e actualizada.
SILVA, Maria Manuela Santos (2014) – A rainha inglesa de Portugal: Filipa de Lencastre. Lisboa: Círculo de Leitores.
SOARES, Torquato de Sousa (coment. e transc.) (1989) – Crónica dos feitos da Guiné / Gomes Eanes de Zurara. Lisboa: Alfa.
SOARES, Torquato de Sousa (introd. e notas) (1978) – Crónica dos feitos notáveis que se passaram na conquista da Guiné por mandado do Infante D. Henrique / Gomes Eanes de Zurara. Lisboa: Academia Portuguesa de História.
STIRNEMANN, Patrícia (2008) – Dating, Placing, and Illumination. The Journal of Early Book Society for the Study of Manuscripts and Printing History. Vol. 11.
SZIRMAI, J. A. (1999) – The archeology of medieval bookbinding. Ashgate: Aldershot.
GILISSEN, Léon (1977) – Prolégomènes à la Codicologie. Gand: Éds. Scientifique. Storky-Scientia. S.P.R.L..
TIBÚRCIO, Catarina Martins (2013) – A iluminura do Manuscrito 1 Série Azul (…). Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dissertação de mestrado em Arte, Património e Teoria do Restauro.
TIBÚRCIO, Catarina Martins (2018) – A moda no M.S.A. 1 da Crónica Geral de Espanha de 1344: Contributo para a datação da iluminura. Mirabilia. Barcelona: Institut d'Estudis Medievals, Universitat Autònoma de Barcelona. Nº 26, 2018/1.
VEZIN, Jean (1981) – La reliure médiévale: trois conférences d’initiation. Paris.
VITERBO, Sousa (1901) – A livraria real especialmente no reinado de D. Manuel. Lisboa: Typ. Academia.
VITERBO, Sousa (1916) – Calígrafos e Iluminadores portugueses: ensaio histórico-bibliográfico. Coimbra: Imprensa da Universidade.
Notes de bas de page
1 CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, p. XXIII.
2 CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, pp. CLI-CLV.
3 Famoso apartado geográfico da Hispânia, escrito no século X por Ahmad ibn Muhammad al-Razi (888-955 d.C.), historiador muçulmano do Al-Andalus, durante o califado de Abderramão III (929-961 d.C.) e que foi utilizado para lá da Idade Média, e amplamente aproveitado pela Crónica Geral de Espanha de 1344. Não se conserva hoje nenhum exemplar desta Crónica do Mouro Rasis. António Botas Rei envidou a reconstrução do texto primitivo do século XII, pois foi de uma das cópias deste texto que se fez a tradução para galego-português encomendada, por D. Dinis, a Gil Peres, clérigo dos senhores de Aboim-Portel (sogros de D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos, filho natural de D. Dinis), primeiros governadores cristãos do Algarve, e que mais tarde foi utilizada pelo Conde de Barcelos na redação da Crónica Geral de Espanha de 1344. REI, António Botas (2007) – O louvor da Hispânia na cultura letrada peninsular medieval – das suas origens discursivas ao apartado geográfico da Crónica de 1344. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tese de doutoramento em História Cultural e das Mentalidades Medievais.
4 CATALÁN, Diego; ANDRÉS, Maria Soledad (1971) – Crónica General de España de 1344, preparada por Diego Catalán y Maria Soledad Andrés. Madrid: Gredos.
5 MOREIRA, Filipe Alves (2014) – A Historiografia portuguesa anterior ao Conde de Barcelos. Pombalina. Coimbra: University Press, pp. 38-49.
6 Do estudo filológico aos códices portugueses e castelhanos da Crónica de 1344 e suas fontes, um dos preciosos resultados obtidos pelo ilustre filólogo, foi a construção da primeira árvore genealógica dos códices existentes e perdidos, da dita Crónica. Ao original da primeira redação chamou Y (perdido). Dele derivaram diretamente dois códices castelhanos: M, da Biblioteca Nacional de Madrid e E, da Biblioteca Real de Madrid. Mais tardiamente surgiu outro derivado, neste caso, indireto: o arquétipo da segunda redação, ao qual chamou X (perdido). Deste descendem duas cópias, uma em português, o códice Z, (perdido), e outra em castelhano, o códice W (perdido). Cada um deles deu origem aos manuscritos portugueses e castelhanos que atualmente se conhecem: o códice Z originou os portugueses L, da Academia das Ciências de Lisboa, o seu contemporâneo, e fragmentário C, da Biblioteca Pública e Municipal do Porto, e outro mais tardio, P, da Biblioteca Nacional de Paris. Todos estes datam do século XV. Provieram de P duas cópias do século XVII, Li, da Biblioteca Nacional de Lisboa e Ev, da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora. O ramo castelhano é formado pelos códices U, e Q, ambos da Biblioteca Nacional de Madrid, coetâneos dos portugueses L e C, e o mais tardio V, da Biblioteca Real de Madrid, contemporâneo de P (todos derivados de W). CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, pp. DXXXIX e DXL.
7 Nos anos 70 do século passado, Diego Catalán e Maria Soledad de Andrés editaram o original castelhano da primeira redação da Crónica de 1344. Neste trabalho de investigação Diego Catalán chegou a uma nova árvore genealógica dos códices portugueses e castelhanos, existentes e perdidos. Não alterou o ramo português, reproduzindo as conclusões de Lindley Cintra, mas desenvolveu o lado castelhano. Apresentou o novo códice S, que corresponde à segunda parte do manuscrito V, já conjeturado por Cintra, e chegou ainda aos tardios (de finais do século XV) e fragmentários o e v, que tal como os anteriores, emanaram de W. Demonstrou assim que a refundição de finais do século XIV, ou seja, a segunda redação, teve muito mais repercussão nos dois séculos seguintes, em termos de cópias realizadas, tanto em Portugal como em Espanha, do que a primeira redação. CATALÁN, Diego; ANDRÉS, Maria Soledad (1971) – Crónica General de España de 1344, preparada por Diego Catalán y Maria Soledad Andrés. Madrid: Gredos.
8 Tendo analisado as modificações introduzidas ao texto da primeira redação da Crónica de 1344 que deram origem a uma nova redação, Isabel de Barros Dias datou, com segurança, o texto primitivo desta segunda redação, da década de 80 do século XIV. Nesses anos de crise dinástica, o discurso apologético de unificação ibérica, defendido pelo Conde de Barcelos, cerca de 40 anos antes, seria de evitar. Na realidade, a autora descobriu, ao longo do texto da segunda redação, várias alterações narratológicas que, ao invés da defesa da unidade peninsular, vão ao encontro do elogio de sentimentos identitários e nacionalistas. Reconheceu ainda outro sinal claro da manipulação textual operada durante o processo refundidor: a crítica subtil feita, reiteradamente, ao longo da segunda redação da Crónica, à ingerência das damas na vida política. A crítica generalizada às mulheres que se intrometiam nos assuntos de governo teria como objetivo a condenação indireta à postura da rainha D. Leonor Teles, antes e depois da morte do rei D. Fernando I. A preocupação em censurar discretamente o comportamento da soberana, não se verifica no relato do mais tardio (da segunda metade do século XV) códice P da Crónica de 1344. Aqui, para além de, ineditamente, a história dos reis de Portugal se estender até ao reinado de D. Afonso V, faz-se uma crítica direta e francamente pejorativa à relação de D. Fernando I com D. Leonor Teles. Sem nenhuma condescendência, o redator por várias vezes denigre a imagem da rainha e glorifica a figura do Mestre de Avis, futuro D. João I. Para Isabel Dias isto significará que o compilador do original da segunda redação não poderia, ao tempo em que este texto foi escrito, de uma forma explícita, como o viria a fazer décadas mais tarde o compilador do códice P, comentar negativamente as ações da rainha. Propôs assim a contemporaneidade entre a crise de 1383-85 e a composição da segunda redação da Crónica de 1344. DIAS, Isabel de Barros (2003) – Metamorfoses de Babel. A Historiografia Ibérica (Sécs. XIII-XIV): Construções e Estratégias Textuais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pp. 103-108. Já em 1951 Lindley Cintra apontava como data provável para a elaboração do texto primitivo da segunda redação, o final do século XIV. CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, pp. XXXVI-XL.
9 A primeira tabela que continha as principais partes constitutivas da narrativa de ambas as redações foi publicada por Lindley Cintra em 1951 (CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, p. DXL) e em 2005, Albano Figueiredo na sua tese de doutoramento delineou novo diagrama para o conteúdo narrativo das duas redações da Crónica de 1344, muito apoiado, porém, no precedente trabalho de Cintra. FIGUEIREDO, Albano (2005) – A crónica medieval portuguesa: génese e evolução de um género (Sécs. XIV-XV). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tese de doutoramento.
10 António Fournier analisou a primeira parte do original da segunda redação que considerou a secção do texto que mais se distingue da narrativa da primeira redação. Fournier afirma que o redator quis estruturar de forma díspar a história da Península Ibérica anterior à reconquista. Para tal aproximou-a do modelo cronístico afonsino, embora tenha conservado trechos da Crónica do Mouro Rasis da primeira redação. As circunstâncias políticas do início do século XV conduziram a um descrédito da história universal proveniente da Crónica de Al-Razi que, por esse motivo, foi muitas vezes reduzida ou mesmo suprimida. FOURNIER, António (1996) – A primeira parte da Crónica Geral de Espanha de 1344: o texto e sua construção. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Dissertação de mestrado.
11 Método recompilatório levado a cabo no decurso do processo narrativo que deu origem à segunda redação da Crónica de 1344 e que é explicado por Isabel de Barros Dias. A autora refere-se à manipulação textual enquanto técnica redaccional que jogava com passagens equívocas do texto fonte, de modo a abrir caminho a transformações profundas que, regra geral, resultavam na formulação de um relato novo. A multiplicidade de significados passíveis de serem atribuídos a determinado trecho, por força do emprego de notícias provenientes de fontes poéticas e lendárias, aquando da composição do texto da primeira redação, constituiu terreno fértil à remodelação textual operada posteriormente pela segunda redação. DIAS, Isabel de Barros (2003) – Metamorfoses de Babel. A Historiografia Ibérica (Sécs. XIII-XIV): Construções e Estratégias Textuais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
12 O sentido universalista e de união ibérica plasmado no texto da primeira redação foi completamente alterado pelo compilador da segunda redação, na qual se constata um estreitamento do discurso, aos acontecimentos decorridos em território português. A razão principal, segundo Cintra, radica no evento que alterou para sempre o entendimento dos conceitos de independência e nacionalidade em Portugal: a crise de 1383-85. CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, pp. CDII-CDX e CDXVIII-CDXIX.
13 BASTO, A. de Magalhães (1957) – A Crónica de 1419 e a historiografia medieval peninsular. Porto e MOREIRA, Filipe Alves (2013) – A Crónica de Portugal de 1419: fontes, estratégias e posteridade, Lisboa: Fundação Calouste de Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
14 D’AZEVEDO, Pedro A.; BAIÃO, António (1950) – O Archivo da Torre do Tombo. Sua história, corpos que o compõem e organização. Lisboa e SERRÃO, Joaquim Veríssimo (1972) – A historiografia portuguesa: doutrina e crítica. Lisboa: Verbo. I e II vols..
15 O estudo de Filipe Alves Moreira sobre a Crónica de Portugal de 1419 revela que essa fonte primordial foi a primeira redação da Crónica de 1344, o texto original escrito pelo Conde de Barcelos, ou cópia dele. MOREIRA, Filipe Alves (2013) – A Crónica de Portugal de 1419: fontes, estratégias e posteridade, Lisboa: Fundação Calouste de Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pp. 154-156.
16 Segundo o esquema genealógico de Lindley Cintra existiu um intermediário X entre o arquétipo Y e as cópias L e P do século XV. Ver a descrição da árvore genealógica dos códices da Crónica de 1344 na nota de rodapé nº 6.
17 CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, pp. CDII-CDIII.
18 CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, p. CDIV.
19 CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, p. CDIV.
20 CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, p. CDIV.
21 CALADO, Adelino A. (ed. crítica, introd. e notas) (1998) – Crónica de Portugal de 1419. Aveiro. 1ª edição, p. XXXIX.
22 DIAS, João J. Alves (ed. Diplomática) (1982) – Livro dos Conselhos de el-rei D. Duarte – Livro da Cartuxa. Lisboa: Estampa.
23 CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, p. CDIV.
24 CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, p. CDIX e CDX e DIAS, João J. Alves (ed. Diplomática) (1982) – Livro dos Conselhos de el-rei D. Duarte – Livro da Cartuxa. Lisboa: Estampa.
25 CALADO, Adelino A. (ed. crítica, introd. e notas) (1994) – Livro da vertuosa benfeytoria / Infante D. Pedro / [colab.] Frei João Verba. Coimbra: Universidade de Coimbra, pp. XXVII-XL.
26 PEREIRA, M. E. (1918) – Livro da Montaria, feito por D. João I, Rei de Portugal, publicado por ordem da Academia das Sciências de Lisboa. Coimbra: Imprensa da Universidade e ALMEIDA, Manuel L. (introd. e rev.) (1981), Obras dos príncipes de Avis (…). Porto: Lello & Irmão.
27 Em 2012 Aires do Nascimento conjeturava que dado o elevado número de obras traduzidas que fazia parte da lista dos livros de D. Duarte, mesmo ponderando que algumas tivessem tido origem em empréstimos, aquisições ou heranças, esta produção seria muito provavelmente apoiada num grupo de copistas. NASCIMENTO, Aires A. do (2012) – Ler contra o tempo: condições dos textos na cultura portuguesa (recolha de estudos em Hora de Vésperas). Lisboa: Centro de Estudos Clássicos. Vol. 1, pp. 256-259.
28 Vários são os autores que até hoje debateram a questão da datação destes códices. O intervalo temporal sugerido acima, talvez seja, na minha perspetiva, a atribuição mais pacífica atendendo ao facto de algumas das datações estarem ainda envoltas em alguma polémica. Para a CGEL, Lindley Cintra localizou a sua conclusão no círculo de D. Duarte e nas primeiras décadas do século XV. Divergente posição foi assumida por Horácio Peixeiro que a considerou acabada por volta de 1450. CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, pp. CLXXXIX-CLXC e PEIXEIRO, Horácio Augusto (2009), Imagem e Tempo: Representações do poder na Crónica Geral de Espanha. Revista de História da Arte. Lisboa. Nº 7, pp. 152-177. Após o estudo formal e estilístico realizado na dissertação de mestrado (2013) defendo a década de 30 para a datação deste códice, TIBÚRCIO, Catarina Martins (2013) – A iluminura do Manuscrito 1 Série Azul (…). Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dissertação de mestrado em Arte, Património e Teoria do Restauro, pp. 149-164. Outro contributo para a resolução desta questão foi dado pelo artigo publicado em 2018, na Revista Mirabilia, TIBÚRCIO, Catarina Martins (2018) – A moda no M.S.A. 1 da Crónica Geral de Espanha de 1344: Contributo para a datação da iluminura. Mirabilia. Barcelona: Institut d'Estudis Medievals, Universitat Autònoma de Barcelona. Nº 26, 2018/1. Neste texto a autora, por meio de um pormenorizado estudo dos trajes representados na iluminura da CGEL, defende a feitura deste códice entre os anos 30 e o início dos anos 40 do século XV. No que diz respeito ao LCLE, Maria Helena Lopes Castro apadrinhou a tese de que o códice parisino do LCLE corresponde à cópia oferecida à rainha D. Leonor e que por esse motivo datará de cerca de 1440. CASTRO, Maria Helena Lopes de (1995) – Leal Conselheiro. Itinerário do manuscrito. Penélope. Nº 16, pp. 109-124. Aires do Nascimento, Horácio Peixeiro, João Dionísio e Filipe Moreira, com base em análises artísticas e paleográficas e estudos documentais avançaram a data de conclusão do códice para depois de 1450. NASCIMENTO, Aires A. do (2012) – Ler contra o tempo: condições dos textos na cultura portuguesa (recolha de estudos em Hora de Vésperas). Lisboa: Centro de Estudos Clássicos. Vol. 1, p. 517 e seguintes; PEIXEIRO, Horácio (1986) – Missais iluminados dos séculos XIV-XV: contribuição para o estudo da iluminura em Portugal. Lisboa. Tese de mestrado em História da Arte; DIONÍSIO, João; NOGUEIRA, Bernardo de Sá (2007) – Sobre a datação do manuscrito P do Leal Conselheiro, de D. Duarte: a fórmula que Deus perdoe. Ehumanista. Vol. 8, p. 123 e MOREIRA, Filipe A. Moreira (2018) – Fr. Gil de Tavira e a datação do manuscrito do Leal Conselheiro de D. Duarte. Mátria Digital. Nº 6, pp. 126-128. Para o LVBM e o LVBV, Adelino Calado apontou a década de 30 como data mais provável para a finalização de ambos os códices da Virtuosa Benfeitoria. Crê o autor que tenham sido copiados em simultâneo a partir de um arquétipo comum. CALADO, Adelino A. (ed. crítica, introd. e notas) (1994) – Livro da vertuosa benfeytoria / Infante D. Pedro / [colab.] Frei João Verba. Coimbra: Universidade de Coimbra, p. XVII.
29 Os autores também divergem em relação à datação deste segundo sub-grupo de códices. As balizas temporais fixadas neste estudo são aquelas que na minha perspetiva serão as mais bem fundamentadas, não obstante as muitas questões em torno deste assunto que ainda continuam em aberto. Quanto à CGEP, Lindley Cintra acreditava que este códice teria sido realizado e concluído em Portugal, em torno do ano de 1460. CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, p. DXI. No que concerne a CDDM, António Dias Dinis localizou a conclusão desta transcrição e sua iluminação, entre o último ano da década de 60 e os primeiros anos da década de 70, do século XV. DINIS, António Dias (1949) – Capítulo inédito da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses. Coimbra: Coimbra Ed., pp. 1-6. No tocante à CFG, Torquato Soares defendia que o códice de Paris é uma cópia do texto original datado de 1453. Esta cópia seria, segundo o autor, do princípio dos anos 60 do século XV. De acordo com Duarte Leite e Álvaro da Costa Pimpão, o manuscrito de Paris seria posterior a 1474 (morte de Zurara) e anterior a 1485 (data em que D. João II alterou as armas de Portugal). SOARES, Torquato de Sousa (introd. e notas) (1978) – Crónica dos feitos notáveis que se passaram na conquista da Guiné por mandado do Infante D. Henrique / Gomes Eanes de Zurara. Lisboa: Academia Portuguesa de História; LEITE, Duarte (1941) – Àcerca da "Cronica dos feitos de Guinee". Lisboa: Bertrand e PIMPÃO, Álvaro da Costa (1939) – A “Cronica dos feitos de Guinee” de Gomes Eanes de Zurara e o Manuscrito do Conde d’Estrées: Tentativa de Revisão Crítica. Lisboa. Para a VFJC, Maria Helena Mateus propôs uma data de conclusão anterior a 1466, data da morte do Condestável D. Pedro, o seu encomendante. Aires do Nascimento datou-o mais precisamente como sendo anterior a 1464. MATEUS, Maria Helena M. (coment.) (2010) – Vida e feitos de Júlio César. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2ª ed. e NASCIMENTO, Aires A. do (2003) – Nota mínima a “Vida e feitos de Júlio César: a questão da origem do manuscrito”. Razões e Emoção – Miscelânea de estudos em homenagem a Maria Helena Mira Mateus. Lisboa. Vol. II, pp. 157-166.
30 A este respeito ver nomeadamente, VEZIN, Jean (1981) – La reliure médiévale: trois conférences d’initiation. Paris; NASCIMENTO, Aires A. do; DIOGO, António Dias (1984) – Encadernação portuguesa medieval: Alçobaça. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda; LEMAIRE, Jacques (1989) – Introduction à la Codicologie. Louvain-La-Neuve: Institut d'Études Médiévales de l'Université Catholique de Louvain; RUIZ, Elisa (1998) – Manual de Codicologia. Madrid: Fund. German Sanchez Ruiperez; SZIRMAI, J. A. (1999) – The archeology of medieval bookbinding. Ashgate: Aldershot e CLEMENS, Raymond (2007), Introduction to manuscript studies. London: Cornell University Press.
31 No estudo codicológico à encadernação dos oito códices foram examinados individualmente, a cobertura exterior: material, apresentação (decorada ou não), cor, dimensão, abas, virados, localização do título e cadeias; a cobertura interior: material, estrutura, extensão e associação com a cobertura exterior; os planos: estado de conservação, material, recorte dos bordos e orifícios; os nervos: número, matéria, estrutura, forma, articulação com o plano, fixação, entrenervo e solidariedade com o corpo do livro; as tranchefilas: lingueta, sobrecabeçado, nervo e costura; as guardas: material, estrutura e aplicação; a costura dos cadernos; os cortes do livro; os apoios: brochos, fechos e recantos; e a decoração da cobertura. A relação de pontos a examinar, seguidas pelo estudo individual realizado aos oito códices foram retiradas de guias para a investigação codicológica das encadernações medievais propostas por Aires do Nascimento. NASCIMENTO, Aires A. do; DIOGO, António Dias (1984) – Encadernação portuguesa medieval: Alçobaça. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
32 Embora a vertente artística integre uma descrição codicológica, a abordagem aí realizada é, por norma, bastante resumida e superficial, pelo que, neste caso, o estudo artístico foi individualizado em resultado do detalhe analítico que a investigação comportou.
33 As operações de restauro que foram, no decorrer do tempo, efetuadas aos códices ocorreram maioritariamente antes do século XX circunstância que determinou a inexistência de quaisquer relatórios ou registos desses procedimentos.
34 De acordo com Léon Gilissen, os cadernos dos manuscritos gregos e anglo-saxónicos começam normalmente pelo lado carne, de tal modo, que tendo iniciado a sua investigação por códices originários destas paragens, julgou nessa altura, que a regra seria os cadernos apresentarem-se com os bifólios dispostos com o lado carne para fora. GILISSEN, Léon (1977) – Prolégomènes à la Codicologie. Gand: Éds. Scientifique. Storky-Scientia. S.P.R.L., p. 19. Em 2007 Raymond Clemens afirma que organizar um caderno com o lado carne para fora poderá, na verdade, não estar relacionado com uma influência insular direta, mas com a recuperação por parte dos humanistas ou pré-humanistas do final da Idade Média, dos modos de fazer da Antiguidade Clássica, época em que era costume começar os cadernos com o lado carne para fora. Embora esta tradição clássica se tenha mantido, ao longo da Idade Média, de uma forma mais vincada na produção de códices das regiões anglo-saxónicas, não será correto falar neste método como o único empregue naquela zona do globo, pois também se encontraram vários exemplos da prática contrária (começar os cadernos com a face pelo para fora). CLEMENS, Raymond (2007) – Introduction to manuscript studies. London: Cornell University Press, p. 15.
35 Um caderno é um conjunto de fólios dobrados ao meio (bifólios), colocados uns dentro dos outros, cosidos conjuntamente e simultaneamente ao nervo. Os fólios de um caderno são solidários quando o primeiro fólio complementa o último fólio, o segundo fólio complementa o penúltimo, o terceiro complementa o antepenúltimo e assim sucessivamente. Quando isso não se verifica estamos perante bifólios acidentados ou artificiais, compostos por dois fólios independentes unidos ao nível do festo (zona de dobragem) por talões, ou de fólios soltos. LEMAIRE, Jacques (1989) – Introduction à la Codicologie. Louvain-La-Neuve: Institut d'Études Médiévales de l'Université Catholique de Louvain.
36 Na corte de Filipe o Bom, Duque da Borgonha, os cadernos utilizados pelos escrivães régios eram comprados já cortados, regrados e montados. Eram adquiridos a ateliers especializados na produção de pergaminho, externos à corte régia. LEMAIRE, Jacques (1989) – Introduction à la Codicologie. Louvain-La-Neuve: Institut d'Études Médiévales de l'Université Catholique de Louvain, p. 114.
37 O capítulo da estruturação que se inicia com a estrutura e a sequência dos cadernos, surgirá neste artigo posteriormente à paleografia, uma vez que as considerações inferidas a partir da estruturação da página e sucessivamente da ornamentação (estudo artístico), como se verá adiante, corroboram as conclusões da paleografia. A estruturação da página incluiu ainda o exame doutros componentes codicológicos que por limitações de espaço não farão parte desta exposição, como as marcas de sequência, a empaginação e o picotamento.
38 Digo “com algum grau de certeza” pois esta é uma época muito particular no que respeita à caligrafia. Por iniciativa de D. João I, uma vez mais numa lógica de afirmação política, foi criada e desenvolvida a chamada letra joanina, a letra oficial do reino de Portugal, empregue em todos os documentos escritos emitidos pela corte régia e por toda a administração pública, pelo menos até ao final do reinado de D. Afonso V. Constatei que este padrão paleográfico joanino se aplicava igualmente aos códices de cariz literário executados por mandado dos reis e príncipes avisenses. Este é um tipo de letra que se pretendia una, representativa do novo poder real em Portugal. Assim sendo, quer na sua versão caligráfica ou librária, quer na sua versão cursiva é manifestamente regular, obedecendo a um mesmo modelo que sempre se repete, independentemente do autor, dificultando em muito, a identificação das mãos. Ver o estudo paleográfico que comprova a existência de uma letra joanina em FERREIRA, Ana Cristina (2012) – Análise paleográfica de uma escrita de Chancelaria Régia: a letra joanina, 1370-1420. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dissertação de mestrado.
39 Angulosidade (quantidade de traços retilíneos formando ângulos por oposição à quantidade de traços circulares), módulo (Altura / Largura da letra), ductus (a sequência dos traços que dão origem ao desenho final da letra. Critério de análise, para muitos autores, tendencialmente sugestivo ou especulativo) são algumas das características da escrita a serem examinadas pelos paleógrafos profissionais, aquando da tipificação das letras ou da identificação das mãos. Apenas as duas primeiras foram estudadas no âmbito desta investigação, dado o autodidatismo da autora nesta matéria. Outras como os maneirismos ao nível do desenho e da orientação das letras foram também alvo de observação atenta. Os resultados obtidos, embora devidamente justificados carecerão futuramente de novas incursões analíticas suportadas por conhecimentos que se desejam cada vez mais aprofundados nesta disciplina. Em todo o caso, a identificação das mãos encerra, mesmo para os mais experientes paleógrafos, uma série de problemas que os impedem de conseguir respostas exatas. Nas palavras de Bernhard Bischoff : « La comparaison entre les écritures de plusieurs manuscrits ouvre d’autres possibilités en permettant de déterminer et d’interpréter comme témoignages historiques des écritures individuelles et anonymes, un des exercices les plus captivants et les plus délicats de la paléographie. ». Afirma o autor que a margem de plausibilidade na identificação de diferentes mãos em diferentes códices ou dentro de um mesmo códice é bastante estreita. As mais variadas condicionantes estão em jogo, como por exemplo, a letra uniforme praticada pelos escribas – uniformidade que pode resultar da prática de um atelier ou de diretivas régias, como se verificou durante quase todo o século XV em Portugal, onde vigorou a letra joanina (ver nota de rodapé nº 38) – ou variações que podem dever-se a uma só mão e não a mais do que uma mão. A evolução da personalidade do escriba, o seu envelhecimento, ou outras circunstâncias poderiam ser responsáveis por uma mudança na maneira de escrever de uma mesma mão. Estas alterações formais da escrita sucediam habitualmente em textos que levavam anos a serem transcritos, alguns deles com interrupções, mais ou menos prolongadas, durante o trabalho de cópia. BISCHOFF, Bernhard (1985) – Paléographie de l’Antiquité Romaine et du Moyen Âge occidental. Paris: Picard, p. 53.
40 Diogo Gonçalves foi escrivão dos livros do rei D. Afonso V entre as décadas de 60 e 70 do século XV. VITERBO, Sousa (1901) – A livraria real especialmente no reinado de D. Manuel. Lisboa: Typ. Academia, pp. 59-60 e FREITAS, Judite Gonçalves de (1999) - «Teemos por bem e mandamos»: a burocracia régia e os seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460). Porto: Universidade do Porto. Tese de doutoramento em História da Idade Média, Vol. III.
41 O códice do Livro da Virtuosa Benfeitoria de Madrid (LVBM) contém no mesmo volume o Livro da Virtuosa Benfeitoria (LVB) e a tradução do De Officiis, de Cícero, em português, o Livro dos Ofícios (LO).
42 O Alcobacense 451 corresponde à primeira parte da tradução da obra Vita Christi, de Ludolfo da Saxónia, texto datado da segunda metade do século XIV. Foi transcrito por João Gonçalves e Frei Bernardo para a Abadia de Alcobaça, entre 1445 e 1446.
43 No fólio 56v do Alc. 451 encontra-se na margem de pé uma inscrição que diz: «Ata aq fez o escripvam dEl R», que à época, cerca de 1445-1446, era João Gonçalves. VITERBO, Sousa (1916) – Calígrafos e Iluminadores portugueses: ensaio histórico-bibliográfico. Coimbra: Imprensa da Universidade.
44 No caso do Livro da Virtuosa Benfeitoria de Madrid não é possível ilustrar o que é dito com imagens pois este códice não possui digitalização de livre acesso, nem tão-pouco foi permitida a recolha de imagens no momento da consulta, por parte da instituição detentora da obra, a Real Academia de História de Madrid.
45 Os restantes títulos de capítulos são muito resumidos limitando-se à abreviatura de capítulo (Cº) e à sua numeração em caracteres romanos, facto que inviabilizou uma conclusão minimamente fundamentada.
46 PEDRO, Susana Tavares (2012) – Apontamentos para uma descrição codicológica do códice BnF, Portugais 5. eHumanista. Volume 22.
47 Com o objetivo principal de datar e localizar a origem de códices medievais, Patrícia Stirnemann afirma que, mais do que as miniaturas em si, são outros trabalhos artísticos acessórios que as complementam, a elas e ao texto – que neste estudo defini como decoração pequena, e que dentro da decoração grande se encontram nos remates laterais e na filigrana e seus remates –, que atestam a ação de determinado copista, rubricador ou iluminador, oriundo de certo local e ativo em determinada época. Pois, conforme defende a autora: «They [the medieval manuscript artists] are also creature of habit, and their forms are relatively simple and easy to classify.» 47 STIRNEMANN, Patrícia (2008) – Dating, Placing, and Illumination. The Journal of Early Book Society for the Study of Manuscripts and Printing History. Vol. 11, p. 155). Ao aludir à realidade dos scriptoria monásticos traça um cenário que não tem paralelo com os ateliers de rua, por estes serem tendencialmente mais mutáveis na sua ação, em resposta às oscilações da procura. O quadro que a autora desenhou a este respeito é o seguinte: «Monasteries with large homemade libraries operate largely in a vacuum and tend to create ingrown families of books with similar script, ornament, and display script that we can structure in time. Renewal is dependent upon new recruits who bring with them new ideas, or it can stem from books that are exemplars, gifts or purchases» (STIRNEMANN, Patrícia (2008) – Dating, Placing, and Illumination. The Journal of Early Book Society for the Study of Manuscripts and Printing History. Vol. 11, p. 156). Julgo que este panorama poderá aplicar-se também ao universo da corte régia, produtora de livros manuscritos e iluminados, existisse ou não aí um scriptorium formalmente constituído, embora o meio da corte não fosse tão fechado quanto o seriam os meios monásticos. Presumo, todavia, que para o século XV, em Portugal, esse fechamento dos mosteiros não seria de todo comparável ao que eventualmente sucedera em séculos anteriores. Provam-no, por exemplo, os contactos constantes com o exterior, no domínio nacional e internacional, envidados na primeira metade do século XV, pelo abade reformista de Alcobaça, D. Estevão de Aguiar, no que dizia respeito a encomendas e compras de livros, mas também à sua produção no scriptorium da abadia. Ver a este respeito, por exemplo, GOMES, Rita Costa (Ed.) (2017) – A Portuguese Abbot in Renaissance Florence: the letter collection of Gomes Eanes (1414-1463). Firenze: Leo S. Olschki Editore e LOPES, Paulo Catarino; BARREIRA, Catarina Fernandes – Entre a corte e a normativa cisterciense: o Mosteiro de Alcobaça ao tempo do reformador D. Estevão de Aguiar (1431 – 1446). No prelo. Acredito que existia, no contexto da produção de manuscritos iluminados, uma forte ligação entre Alcobaça e a corte régia, realidade esta que espero demonstrar em publicação próxima. Por essa razão julgo que se pode atribuir a expressão utilizada por Stirnemann de «ingrown families», à decoração vigente na corte e em Alcobaça durante as sete primeiras décadas do século XV. Isto significa que em determinada época, que podia ser mais ou menos prolongada, e em certo(s) local(ais), se verificava a insistente repetência de um conjunto de elementos decorativos ou mesmo de programas decorativos, no seu todo, que viriam a ser paulatinamente alterado, pelo diverso momento de introdução de uns e da manutenção de outros, na exata medida da efetivação desse influxo, bem como da sua aceitação. Aconteceria eventualmente algo análogo com a escrita (mas que, como se sabe, envolvia outras questões, nomeadamente políticas), e até talvez com a própria construção do livro.
48 TIBÚRCIO, Catarina Martins (2013) – A iluminura do Manuscrito 1 Série Azul (…). Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dissertação de mestrado em Arte, Património e Teoria do Restauro, pp. 139-140.
49 Não disponho ainda das imagens dos fólios do LVBM que espero adquirir em breve.
50 Idem.
51 Alguns dos códices terão saído da corte régia pouco tempo depois da sua execução, como é o caso da CFG, que terá sido oferecida aos reis de Aragão, D. João II ou ao seu filho, D. Fernando. ALBUQUERQUE, Luís de (dir.); SOARES, Torquato de Sousa (coment. e transc.) (1989) – Crónica dos feitos da Guiné / Gomes Eanes de Zurara. Lisboa: Alfa, pp. 189-190 e PIMPÃO, Álvaro da Costa (1939) – A “Cronica dos feitos de Guinee” de Gomes Eanes de Zurara e o Manuscrito do Conde d’Estrées: Tentativa de Revisão Crítica. Lisboa. É possivelmente também este o percurso do LCLE, que independentemente de ter sido terminado na década de 40, ou na década de 50, é expectável que tenha saído da corte e de Portugal imediatamente após sua conclusão e que eventuais cópias tenham desaparecido, pois os relatos que dele fazem os cronistas desde Rui de Pina são muito pouco precisos e inclusivamente mostram desconhecer o título exato de ambas as obras. DIAS, Isabel (1997) – A arte de ser bom cavaleiro. Lisboa: Estampa, pp. 47-48. Outros terão permanecido na corte e em Portugal durante um largo período como é o caso da CGEL que terá sido oferecida a Pedro de Alcáçova Carneiro, oficial régio de D. João III e D. Sebastião, em meados do século XVI. CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, pp. CDXCIII-DI. A CGEP terá saído de Portugal só no século XVII. CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, p. DXI. A CDDM terá transitado para a família Meneses no século XVI. DINIS, António Dias (1949) – Capítulo inédito da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses. Coimbra: Coimbra Ed., pp.13-15.
52 De acordo com as teorias defendidas por Aires do Nascimento, em 2003 e por Maria Helena Mira Mateus, em 2010. MATEUS, Maria Helena M. (coment.) (2010) – Vida e feitos de Júlio César. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2ª ed. e NASCIMENTO, Aires A. do (2003) – Nota mínima a “Vida e feitos de Júlio César: a questão da origem do manuscrito”. Razões e Emoção – Miscelânea de estudos em homenagem a Maria Helena Mira Mateus. Lisboa. Vol. II, pp. 157-166.
53 CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, pp. DIV-DVII.
54 Declara Lindley Cintra que, com quase toda a certeza, o códice parisino da Crónica Geral de Espanha de 1344 foi mandado copiar pelo Condestável D. Pedro, a partir do original em cadernos que vem mencionado na lista dos livros de D. Duarte. Afirmava o filólogo que este códice é o mesmo que aparece no inventário da biblioteca do Condestável, com a entrada número 52. O códice da Biblioteca Nacional de França é a única transcrição do texto da Crónica de 1344 que estende a história dos reis de Portugal para além do reinado de D. Afonso IV até ao tempo do Condestável, incluindo acontecimentos importantes para D. Pedro, como o regresso do exílio, em 1456 e o falecimento de seu irmão, o cardeal D. Jaime (†1459). Este conteúdo narrativo, a inesperada subida ao trono de Aragão em 1464 e o atribulado reinado de dois anos que se lhe seguiu, levaram Cintra a acreditar que este manuscrito tivesse sido feito e concluído em Portugal, em torno do ano de 1460. A finalização apressada explicará a parca decoração que exibe. CINTRA, Luís F. Lindley (2009) – Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol. 1, 2ª edição, pp. DIX-DXI.
55 A datação do manuscrito de Paris da Crónica dos feitos da Guiné (CFG) não é, ainda hoje, unânime (ver nota nº 29). Os partidários da teoria de Torquato Soares, onde me incluo, defendem que D. Afonso V ordenou a Gomes Eanes de Zurara que pusesse por escrito os feitos do Infante D. Henrique relativos à conquista da Guiné. Porém, o escrivão régio acabou por não se confinar àquele período da vida do Infante, mas antes se alongou por todo o outro processo de seus fectos. O texto primitivo da Crónica dos feitos da Guiné foi terminado a 18 de fevereiro de 1453, conforme consta do explicit: «E acabousse esta obra na livrarya que este Rey dom Affonso fez em Lixboa, dezoito dyas de Fevereiro, sendo scripta em este primeiro vellume per Jogam Gonçalvez, scudeiro e scrivam dos livros do dicto senhor Rey…no anno de Jhesu Christo de mil e quatrocentos e cinquoenta e três annos». A carta com a qual se abre o texto da crónica, endereçada por Zurara a D. Afonso V, está datada de 23 de fevereiro do mesmo ano, ou seja, foi escrita cinco dias após a conclusão da obra. O códice de Paris será, segundo Torquato Soares, uma cópia tardia desse texto original. Inclui informações sobre a morte e testamento do Infante D. Henrique, que a primeira redação certamente não continha. Torquato Soares crê que estas informações adicionais tenham sido acrescentadas ao texto original de 1453, por Gomes Eanes de Zurara. Para o comprovar chama a atenção para o método de trabalho do cronista régio, ao qual o próprio alude durante o discurso: «(…)“storya”(…) que se aproveite assy como por forma per que ao dyante possa fazer outra obra mais sofeciente qual convenha aos merecimentos de tamanho princepe e (…) entençam por emendar alguuma cousa no que ante falleci». Para Soares, o primeiro texto da Crónica, escrito por Zurara, data de 1452-53, e foi sendo alterado nos anos subsequentes, para lá do ano da morte do Infante D. Henrique († 1460). O texto atualizado corresponderá à Crónica dos feitos da Guiné de Paris, não obstante poderem ter existido outras versões intermédias. SOARES, Torquato de Sousa (introd. e notas) (1978) – Crónica dos feitos notáveis que se passaram na conquista da Guiné por mandado do Infante D. Henrique / Gomes Eanes de Zurara. Lisboa: Academia Portuguesa de História, pp. 370-411 e ALBUQUERQUE, Luís de (dir.); SOARES, Torquato de Sousa (coment. e transc.) (1989) – Crónica dos feitos da Guiné / Gomes Eanes de Zurara. Lisboa: Alfa, pp. 199-205. Autores como Álvaro da Costa Pimpão e Duarte Leite rejeitaram esta hipótese. Costa Pimpão defendia que o manuscrito de Paris da Crónica da Guiné é resultado da junção de dois textos diferentes, de épocas também diferentes. Acreditava que foi redigido entre 1463 e 1468, depois de Zurara ter escrito a Crónica de D. Pedro de Meneses e antes de ter começado a Crónica de D. Duarte de Meneses. Para Duarte Leite a redação definitiva da Crónica da Guiné estaria concluída após 1474. Apresentava ainda, o autor, argumentos artísticos para apoiar a sua tese: afirmava que a circunstância de a iluminura do códice de Paris da Crónica da Guiné ser mais rica do que aquela que aparece na carta de Zurara ao rei, é facto que sustenta a ideia de junção tardia de dois textos independentes. De acordo com Duarte Leite, o manuscrito de Paris será posterior a 1474 e anterior a 1485, uma vez que os escudos reais do fólio 6r se apresentam numa composição já não utilizada em tempo de D. João II. Dagoberto Markl, também ele adepto da teoria da miscelânea tardia de textos, avançou com uma argumentação apoiada no problema do vinco do fólio 5 do retrato do Infante D. Henrique; no pretenso falseamento deste retrato que seria originalmente de D. Duarte e que teria sido erroneamente aproveitado no século XVI; e na «má qualidade» da iluminura, semelhante a outros manuscritos do século XVI que o autor tivera ocasião de observar. MARKL, Dagoberto (1988) – O retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa e os documentos. Lisboa: Caminho. Não caberá nesta nota o desenvolvimento merecido desta questão a partir do estudo codicológico e artístico realizado ao códice e que autoriza o rebatimento da teoria da junção tardia de textos distintos. Avanço apenas, por hora, com alguns pontos fundamentais da minha contra-argumentação. A ideia estilística de Duarte Leite em relação às diferenças entre a decoração filigranada da carta de Zurara e a decoração de letras capitais a cores e ouro do interior do códice, como foi já demonstrado no presente artigo, não constitui nenhuma prova de estarmos perante duas épocas distintas, mas pelo contrário, é a manifestação consistente da reutilização de um mesmo repertório decorativo que alterna entre iniciais filigranadas e iniciais a cores e ouro, empregue sistematicamente, pelo menos, nos primeiros três quartéis do século XV. A iluminura de «má qualidade» exibida pelo códice, segundo Markl, típica do século XVI, não será, de todo, um argumento artístico válido, tendo em conta a constância estilística que pauta os repertórios ornamentais, e que aqui também se manifesta, e o similar desempenho técnico dos iluminadores que compartilharam a feitura do grupo de códices, em alguns casos reproduzindo fielmente elementos decorativos trabalhados por outros seus companheiros, conforme ficou claro, mormente para a CFG. Por outras palavras, as bordaduras e as iniciais a cores e ouro da CFG, não são, de maneira alguma, tecnicamente inferiores ou estilisticamente apartadas da iluminura que se apresenta nos outros códices do grupo, tendo todo este labor livresco decorrido dentro de um intervalo temporal que abarca cerca de 40 anos (1430 a 1470). Isto não significa, como é óbvio, que durante o século XVI não tivessem sido reaproveitados modelos anteriores, como sucedeu naturalmente em todas as épocas. Mas isso também não significa, como penso que consegui evidenciar ao longo deste artigo, que aquilo que se vê na CFG seja um trabalho de inferior qualidade, do século XVI, pois todo o seu programa decorativo e não somente parte dele é testemunho de uma maneira de iluminar típica do século XV, em Portugal e de um local em particular: a corte régia. A datação dos códices medievais é um assunto fulcral para a sua compreensão global, mas é preciso ter em atenção que se trata de um processo muito complexo que envolve uma multiplicidade de fatores a ter em conta, que são objeto de estudo não só da História da Arte, ou da História, mas das mais variadas disciplinas, como, por exemplo, a codicologia e a paleografia. Em conjunto fornecem ao investigador uma diversidade de informação que lhe permite ir mais além no seu estudo. Como disse Denis Muzerelle: «(…) les manuscrits sont des objets historiques, et comme tels ils ne peuvent être correctement interprétés que s’ils ont été convenablement replacés dans leur contexte chronologique et géographique. (…) chaque manuscrit est un objet archéologique qui véhicule des informations sur le milieu dont il est issu – um millieu qu’il convient de définir, entre autres paramètres, par sa position dans l’espace et dans le temps. Les différences entre les deux aspects de cette relation (…) échappe à une majorité des chercheurs: à ceux notamment, pour qui l’histoire du livre et de l’écriture ne constitue pas le centre d’interêt primordial» (MUZERELLE, Denis (2008) – Dating Manuscripts: What is at stake in the steps usually (but infrequently) taken. Journal of Early Book Society for the study of Manuscripts and Printing History. Vol. 11, p. 174). Dizer ainda que, no que respeita à questão da junção tardia do retrato ao códice, ela será pouco provável, pois o bifólio onde se encontra o fólio do retrato não foi adicionado posteriormente ao término da cópia. O caderno é um quaterno regular onde não existe qualquer descontinuidade ao nível textual. Poderia ter-se dado o caso de que o fólio do retrato tivesse sido justaposto ao último fólio do caderno originando um bifólio artificial. Esta suposição será igualmente pouco viável, porque não está visível qualquer talão de junção, nem no princípio, nem no fim do caderno. Porém, não possibilitando, a atual encadernação, a ideal abertura do códice a 180º, a hipótese terá necessariamente de ficar em aberto, uma vez que não se pode afirmar com absoluta certeza de que se trata de um bifólio regular e não de um bifólio artificial cujas abas de junção (no caso terão de ser mínimas) possam estar ocultadas pela atual costura excessivamente apertada.
56 VITERBO, Sousa (1901) – A livraria real especialmente no reinado de D. Manuel. Lisboa: Typ. Academia, p. 3.
57 Conhecem-se as bibliotecas particulares, de D. Duarte, cujo conteúdo se encontra plasmado no Livro dos Conselhos de D. Duarte, DIAS, João José Alves (1982) – Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte: Livro da Cartuxa. Lisboa: Estampa; e a do Infante D. Fernando, CALADO, Adelino A. (ed. crítica) – Trautado da Vida e Feitos do Mui Venturoso Senhor Ifante Dom Fernando / Frei João Álvares. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis; DANTAS, Júlio (1921) – Os livros em Portugal na Idade Média. A livraria do Infante Santo. Anais das Bibliotecas e Arquivos. Vol. II, nº 6, Abr.-Jun.; e DINIS, A. J. Dias – Em torno do testamento do Infante Santo. Ultramar – Revista da Comunidade Portuguesa e da Actualidade Ultramarina Internacional. Lisboa. Ano X, nº 40, vol. X, nº 4, 2º trimestre, pp. 70-88. Poderá dizer-se que, embora não haja documentação que o clarifique, D. João I também teria a sua biblioteca, a qual terá legado ao seu filho primogénito D. Duarte. SILVA, Maria Manuela Santos (2014) – A rainha inglesa de Portugal: Filipa de Lencastre. Lisboa: Círculo de Leitores e em NASCIMENTO, Aires A. do (2012) – Ler contra o tempo: condições dos textos na cultura portuguesa (recolha de estudos em Hora de Vésperas). Lisboa: Centro de Estudos Clássicos. Vol. 1, p. 257. Talvez o termo biblioteca real não se aplicasse à realidade das cortes de D. João I e de D. Duarte, estando os livros encomendados, adquiridos e herdados pelos reis e príncipes guardados em bibliotecas particulares. Isso não invalidaria que estivessem acessíveis à nobreza cortesã, para leitura pessoal ou conjunta, tal como projetado mais tarde por D. Afonso V, como função primordial da sua biblioteca real.
58 O escrivão d’El Rei, João Gonçalves desempenhou estas funções no reinado de D. Duarte, na regência do Infante D. Pedro e no reinado de D. Afonso V, depois de ter obtido, da parte deste monarca, uma carta de perdão datada de 5 de novembro de 1451. Este perdão foi concedido na sequência do apoio dado por João Gonçalves ao Infante D. Pedro, ao lado do qual se bateu na Batalha de Alfarrobeira. A documentação histórica que atesta a sua presença na corte, durante o intervalo temporal considerado neste estudo: 1430-1470. FREITAS, Judite Gonçalves de (1999) - «Teemos por bem e mandamos»: a burocracia régia e os seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460). Porto: Universidade do Porto. Tese de doutoramento em História da Idade Média, Vol. III, reforçam a tese de que João Gonçalves terá redigido o LCLE (ca. 1440-50. Já Aires do Nascimento e Horácio Peixeiro suspeitavam que este escrivão régio seria o autor do texto do LCLE, também por comparação com manuscritos alcobacenses do século XV, entre eles o Alc. 451 NASCIMENTO, Aires A. do (2012) – Ler contra o tempo: condições dos textos na cultura portuguesa (recolha de estudos em Hora de Vésperas). Lisboa: Centro de Estudos Clássicos. Vol. 1, p. 517 e seguintes e PEIXEIRO, Horácio Augusto, «A iluminura portuguesa no século XV» in AFONSO, Luís Urbano; PINTO, Paulo Mendes (org.) (2014) – O livro e as interações culturais judaico-cristãs em Portugal no final da Idade Média. Lisboa: Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pp. 152 e seguintes), o LO do LVBM (ca. 1430) e rubricado alguns títulos de capítulos da CGEP (ca. 1460). Diogo Gonçalves terá entrado ao serviço do rei numa fase posterior, quando D. Afonso V já havia assumido o governo do reino. Foi escrivão d’El Rei, facto comprovado por carta régia datada de 27 de abril de 1462, onde se diz que Diogo Gonçalves era «nosso escripuam dos liuros», cargo que segundo Judite Freitas poderá ter ocupado até 1477, o que condiz com as atribuições de autoria do texto e filigrana da CFG e da CDDM. VITERBO, Sousa (1901) – A livraria real especialmente no reinado de D. Manuel. Lisboa: Typ. Academia, pp. 59-60 e FREITAS, Judite Gonçalves de (1999) - «Teemos por bem e mandamos»: a burocracia régia e os seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460). Porto: Universidade do Porto. Tese de doutoramento em História da Idade Média, Vol. III.
59 Obras esclarecedoras no que toca ao funcionamento jurídico-administrativo da corte régia para este período são, por exemplo, GOMES, Rita Costa (1995) – A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média. Lisboa: Difel e HOMEM, Armando Luís de Carvalho (1990) – O Desembargo Régio (1320-1433). Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica e Centro de História da Universidade do Porto.
60 VITERBO, Sousa (1901) – A livraria real especialmente no reinado de D. Manuel. Lisboa: Typ. Academia, p. 3.
61 VITERBO, Sousa (1901) – A livraria real especialmente no reinado de D. Manuel. Lisboa: Typ. Academia, p. 3.
62 Ao ter sido posta em causa a verdade dos acontecimentos descritos na Crónica da Tomada de Ceuta, o cronista solicitou a D. Afonso V uma viagem ao norte de África para se inteirar mais firmemente sobre aquilo que ia narrar na Crónica dos feitos da Guiné e na Crónica de D. Pedro de Meneses, crónicas que escreveu depois da terceira parte da Crónica de D. João I. Nessa altura, porém, D. Afonso V negou-lhe a autorização para a deslocação, que só adveio entre 1467 e 1468, aquando da composição da Crónica de D. Duarte de Meneses. DINIS, António J. Dias (1949) – Capítulo inédito da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses. Coimbra: Coimbra Ed., pp. 1-6.
63 A itinerância da corte régia associava-se preferencialmente a espaços urbanos, com especial enfoque para Lisboa, onde várias organizações régias se fixaram e com as quais o monarca estabelecia contactos frequentes, mesmo que indiretos. GOMES, Rita Costa (1995) – A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média. Lisboa: Difel, p. 251. MORENO, Humberto Baquero (1988) – Os Itinerários de El-Rei Dom João I (1384-1433). Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1ª ed.; MORENO, Humberto Baquero (pref., comp. e notas) (1976) – Itinerários de El-Rei D. Duarte: 1433-1438. Lisboa: Academia Portuguesa de História e MORENO, Humberto Baquero (1968) – Os Itinerários do Infante D. Pedro (1438-1448). Lourenço Marques: Revista Ciências do Homem.
64 Portugal era à época um reino constituído por várias cortes, cada qual com grande «autonomia política, administrativa e até cultural», realidade que se revelou durante a crise de 1438-39, onde se tentou, sem sucesso, revezar em cortes os diferentes grupos de poder, o que culminou no desastre de Alfarrobeira. GOMES, Rita Costa (1995) – A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média. Lisboa: Difel, p. 257.
65 GOMES, Rita Costa (1995) – A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média. Lisboa: Difel, pp. 226-227.
66 GOMES, Rita Costa (1995) – A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média. Lisboa: Difel, p. 230.
67 SILVA, José Custódio Vieira da (2002) – Paços Medievais Portugueses. Lisboa: IPPAR. 2ª ed. rev. e actualizada.
68 GOMES, Rita Costa (1995) – A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média. Lisboa: Difel, p. 133.
69 FREITAS, Judite Gonçalves de (1999) – «Teemos por bem e mandamos»: a burocracia régia e os seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460). Porto: Universidade do Porto. Tese de doutoramento em História da Idade Média, Vol. III., p. 333 e p. 344.
70 NASCIMENTO, Aires A. do (2012) – Ler contra o tempo: condições dos textos na cultura portuguesa (recolha de estudos em Hora de Vésperas). Lisboa: Centro de Estudos Clássicos. Vol. 1.; PEIXEIRO, Horácio Augusto, “A iluminura portuguesa no século XV”. In AFONSO, Luís Urbano; PINTO, Paulo Mendes (org.) (2014) – O livro e as interações culturais judaico-cristãs em Portugal no final da Idade Média. Lisboa: Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pp. 152 e seguintes e LOPES, Paulo Catarino; BARREIRA, Catarina Fernandes – Entre a corte e a normativa cisterciense: o Mosteiro de Alcobaça ao tempo do reformador D. Estevão de Aguiar (1431 – 1446). No prelo.
71 GOMES, Rita Costa (1995) – A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média. Lisboa: Difel, p. 155.
Auteur
Instituto de Estudos Medievais / Universidade Nova de Lisboa, catarina.tibrcio@gmail.com
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
História e Relações Internacionais
Temas e Debates
Luís Nuno Rodrigues et Fernando Martins (dir.)
2004
Minorias étnico-religiosas na Península Ibérica
Período Medieval e Moderno
Maria Filomena Lopes de Barros et José Hinojosa Montalvo (dir.)
2008
Património Textual e Humanidades Digitais
Da antiga à nova Filologia
Maria Filomena Gonçalves et Ana Paula Banza (dir.)
2013
Os Municípios no Portugal Moderno
Dos Forais Manuelinos às Reformas Liberais
Mafalda Soares da Cunha et Teresa Fonseca (dir.)
2005
A Historiografia Medieval Portuguesa na viragem do Milénio
Análise Bibliométrica (2000-2010)
Filipa Medeiros
2015
Ecclesiastics and political state building in the Iberian monarchies, 13th-15th centuries
Hermínia Vasconcelos Vilar et Maria João Branco (dir.)
2016
Da Comunicação ao Sistema de Informação
O Santo Ofício e o Algarve (1700-1750)
Nelson Vaquinhas
2010